Para fechar
o primeiro ciclo de sua carreira, aquele em que estabelece
suas principais obsessões, em que vive mais integralmente
a condição do operário ao mesmo tempo eficiente e atrevido,
antes de pular no felicíssimo precipício que é O
Último Grande Herói, pulo que tornaria sua experiência
estética, dali para adiante, sempre a busca pela expansão
(do tempo, do espaço, dos estados mentais de seus personagens
e do espectador), parecia bastante natural que John
McTiernan retornasse a O Predador, seu filme
mais sintético, mais concentrado, para reencontrar nele
novos sentidos, aplicar em sua matéria o acúmulo dos
trabalhos realizados até então e, assim, poder seguir
em frente com seu projeto de cinema. Estranho é que
esse retorno aconteça justamente com O Curandeiro
da Selva – mas, mesmo assim, como evitar o olhar
para o rabo-de-cavalo cretino de Sean Connery e não
ver ali o charuto onipresente e igualmente cretino de
Arnold Schwarzenegger, como não ver em Lorraine Bracco
a realização da mocinha-da-história que Elpidia Carrillo
não pode ser no filme de 1987 por pura falta de oportunidade
dramática? Como, diante de tudo aquilo que O Curandeiro
da Selva nos apresenta, e apesar de todas as suas
aparentes diferenças, não pensá-lo como a seqüência
romântica de O Predador?
Estamos
novamente no interior da floresta tropical sul-americana.
Já sabemos que a incursão do herói por este ambiente
é marcada pela frustração, uma simples ação de resgate
se transforma num banho de sangue e na completa submissão
ao inimigo. O Curandeiro da Selva compreende
o tempo do remorso, aquele mesmo que Dutch não pode
sentir pela perda de seus companheiros de luta contra
o predador alienígena. Aqui, o Dr. Campbell interpretado
por Connery está isolado da sociedade branca há anos,
vivendo numa tribo de índios xavante, tendo assumido
até mesmo o posto de pajé (o medicine man do
título original), e sua posição ali não se dá por outro
motivo senão por pura culpa, tendo em seu histórico
uma tentativa frustrada de pesquisa por medicamentos
que dizimou uma outra tribo inteira.
Este é
um jogo que McTiernan já nos apresentara antes: a determinação
de se livrar de um determinado lugar (em suas histórias,
sempre apertado, opressivo) passava, obrigatoriamente,
por um mergulho profundo destes personagens na própria
natureza constitutiva daqueles ambientes. Foi assim
quando Dutch só conseguiu sair da selva ao descobrir
que se cobrisse seu corpo todo de lama, camuflando-se
junto à vegetação, a visão de calor do predador não
o notaria. Foi assim quando John McClane se deu conta
que a única maneira de vencer os terroristas de Duro
de Matar era usando contra eles o domínio que tinham
das estruturas daquele arranha-céu. Mais ainda em A
Caçada ao Outubro Vermelho, quando a única saída
para que os americanos se livrem da ameaça do submarino
russo em suas águas territoriais era assumir o controle
deste submarino, colocando uma tripulação nacional para
comandar a embarcação inimiga. Nestes três filmes, McTiernan
acenava com a claustrofobia apenas para fazer a vitória
final parecer mais libertadora: uma vez reintegrados
ao “lado de fora” daqueles ambientes, estes heróis poderiam
se dizer realmente transformados pela experiência anterior.
O Curandeiro
da Selva apresenta esta mesma lógica, aumentada,
sobretudo, pela presença da Dra. Crane de Lorraine Bracco,
completo peixe-fora-d’água na tribo em que Campbell
já é integrante histórico. Aqui, no entanto, o “lado
de fora” perde de lavada, porque o valor maior, descoberto
pelo contato humano puro e simples, quer entre os dois
brancos, quer em sua relação com os indígenas, é integrar-se
ao “lado de dentro”. Para quem terminara todos os seus
filmes até ali com uma imagem do horizonte se abrindo
para o protagonista, McTiernan dá à Crane um último
plano em que a câmera consegue, no máximo, avistar a
copa das árvores. Este limite físico restrito (estar
entre a terra e a cobertura da vegetação) não esconde
a atração irresistível por aquilo que caminha pelo meio
dele: os homens, exatamente. A integração não é passageira,
e aqui vale se sujar de lama do mesmo modo que Schwarzenegger
fizera, não mais para escapar dali, mas para marcar
uma nova ligação, positivamente simbiótica, com o meio.
Assume-se a lama, e também as pinturas e adornos indígenas,
porque agora os personagens de McTiernan fazem parte
de algo maior.
E a questão
aqui parece mesmo a vontade de sair dos pequenos laboratórios
narrativos para começar a lidar com a grandeza. Não
que se descuide da carpintaria do gênero, muito pelo
contrário. O Curandeiro da Selva se constrói
a partir da mistura bastante equilibrada entre o filme
de aventura e a comédia romântica, sobretudo pela aposta
na velha oposição atraente entre um Campbell porra-louca
e uma Crane caxias (com Sean Connery e Lorraine Bracco
em sintonia finíssima), tudo isso recheado por expedições
mata adentro e um sobe-e-desce constante de árvores
e cachoeiras. A interação entre o casal, por exemplo,
é repleta das tiradas típicas do cinema de ação, quando
um personagem consegue sacar uma piada esperta mesmo
quando diante do perigo iminente da morte.
Mas isso
tudo parece ter encontrado um limite naquilo que McTiernan
vê como seu próprio horizonte. Assim, todo o concerto
de ações positivas (o encontro do casal, sua integração
com a tribo, o sucesso nas pesquisas científicas), orquestrado
por esta profusão de gêneros clássicos, esbarra num
problema que escapa do controle dessa escola narrativa,
desse diretor disposto a segui-la. Como em O Predador,
a ameaça é invisível, um diablo devorador de hombres.
Não mais um alienígena que assombra há décadas um pequeno
povoado, mas uma doença terrena, o câncer, que Campbell
bem define como “a grande peste do século”. A experiência
íntima do doutor, sua jornada de culpa e redenção naquela
aldeia, poderá extrapolar aquelas fronteiras, beneficiar
todo o mundo, mas a fórmula da cura é perdida. Quando
finalmente se consegue descobrir como reproduzir esta
fórmula em laboratório, o hospedeiro dessa substância
valiosa é dizimado junto com toda a floresta, derrubada
pelo progresso de uma estrada que cortará a região.
McTiernan
não vilaniza este progresso estúpido, e chega a fazer
de seu maior agente (Miguel Ornega, funcionário da companhia
responsável pela estrada, interpretado por José Wilker)
um personagem doce, sinceramente tocado pela experiência
científica e pessoal de Campbell. Eis o limite: o cinema
de gênero é capaz de fortalecer suas próprias bases
de maneira realmente notável, se renovando, propondo
novos desafios a si mesmo, afiando diálogos inteligentes,
filmando aventuras cada vez mais radicais, mas existem
certas estruturas, certas narrativas inventadas pelo
mundo real propriamente dito, com as quais a simples
carpintaria de linguagem simplesmente é incapaz de lidar.
O Curandeiro da Selva está lidando com um processo
histórico que é muito maior que sua capacidade de fantasiar.
A resposta
que McTiernan dá a esse desfecho incontornável é de
uma sinceridade tocante, porque surpreendente. De um
diretor conhecido pelos filmes de ação, produtos que
geralmente associam seu sucesso a uma contagem altíssima
de corpos mortos e dilacerados, vem um contragolpe de
igual grandeza: a reação está nas pessoas, em seu espírito
naturalmente agregador (diferente do que a eliminação
em série nos filmes de ação sugeriria). O Curandeiro
da Selva tem um verdadeiro projeto humanista, e
o realiza por vias tão divertidamente tortas. McTiernan
insiste em seqüências exoticizantes, onde vemos dúzias
de bundas indígenas nuas contrapostas ao corpo vestido
da Dra. Crane, mas não há nada de sociologicamente incorreto
nisso. O que se quer ali é mostrar que essa distância
dos corpos (no fundo também uma distância de mentes)
precisa acabar, porque só pela reunião dessas potências
humanas será possível combater os inimigos que se colocam
à frente. A estrada destrói a aldeia e, junto, a esperança
da cura do câncer. A reação? Não mais a fuga assustada
de Dutch daquela floresta que só deixa marcas negativas.
A seqüência romântica de O Predador: Crane e
Campbell pintados como os índios, marchando lado a lado,
não para fora da selva, mas cada vez mais no interior
dela, lá onde existe esperança e, acima de tudo, companheiros
com quem dividi-la.
Rodrigo de Oliveira
(VHS: Abril Vídeo)
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