O CURANDEIRO DA SELVA
John McTiernan, Medicine Man, EUA, 1992

Para fechar o primeiro ciclo de sua carreira, aquele em que estabelece suas principais obsessões, em que vive mais integralmente a condição do operário ao mesmo tempo eficiente e atrevido, antes de pular no felicíssimo precipício que é O Último Grande Herói, pulo que tornaria sua experiência estética, dali para adiante, sempre a busca pela expansão (do tempo, do espaço, dos estados mentais de seus personagens e do espectador), parecia bastante natural que John McTiernan retornasse a O Predador, seu filme mais sintético, mais concentrado, para reencontrar nele novos sentidos, aplicar em sua matéria o acúmulo dos trabalhos realizados até então e, assim, poder seguir em frente com seu projeto de cinema. Estranho é que esse retorno aconteça justamente com O Curandeiro da Selva – mas, mesmo assim, como evitar o olhar para o rabo-de-cavalo cretino de Sean Connery e não ver ali o charuto onipresente e igualmente cretino de Arnold Schwarzenegger, como não ver em Lorraine Bracco a realização da mocinha-da-história que Elpidia Carrillo não pode ser no filme de 1987 por pura falta de oportunidade dramática? Como, diante de tudo aquilo que O Curandeiro da Selva nos apresenta, e apesar de todas as suas aparentes diferenças, não pensá-lo como a seqüência romântica de O Predador?

Estamos novamente no interior da floresta tropical sul-americana. Já sabemos que a incursão do herói por este ambiente é marcada pela frustração, uma simples ação de resgate se transforma num banho de sangue e na completa submissão ao inimigo. O Curandeiro da Selva compreende o tempo do remorso, aquele mesmo que Dutch não pode sentir pela perda de seus companheiros de luta contra o predador alienígena. Aqui, o Dr. Campbell interpretado por Connery está isolado da sociedade branca há anos, vivendo numa tribo de índios xavante, tendo assumido até mesmo o posto de pajé (o medicine man do título original), e sua posição ali não se dá por outro motivo senão por pura culpa, tendo em seu histórico uma tentativa frustrada de pesquisa por medicamentos que dizimou uma outra tribo inteira.

Este é um jogo que McTiernan já nos apresentara antes: a determinação de se livrar de um determinado lugar (em suas histórias, sempre apertado, opressivo) passava, obrigatoriamente, por um mergulho profundo destes personagens na própria natureza constitutiva daqueles ambientes. Foi assim quando Dutch só conseguiu sair da selva ao descobrir que se cobrisse seu corpo todo de lama, camuflando-se junto à vegetação, a visão de calor do predador não o notaria. Foi assim quando John McClane se deu conta que a única maneira de vencer os terroristas de Duro de Matar era usando contra eles o domínio que tinham das estruturas daquele arranha-céu. Mais ainda em A Caçada ao Outubro Vermelho, quando a única saída para que os americanos se livrem da ameaça do submarino russo em suas águas territoriais era assumir o controle deste submarino, colocando uma tripulação nacional para comandar a embarcação inimiga. Nestes três filmes, McTiernan acenava com a claustrofobia apenas para fazer a vitória final parecer mais libertadora: uma vez reintegrados ao “lado de fora” daqueles ambientes, estes heróis poderiam se dizer realmente transformados pela experiência anterior.

O Curandeiro da Selva apresenta esta mesma lógica, aumentada, sobretudo, pela presença da Dra. Crane de Lorraine Bracco, completo peixe-fora-d’água na tribo em que Campbell já é integrante histórico. Aqui, no entanto, o “lado de fora” perde de lavada, porque o valor maior, descoberto pelo contato humano puro e simples, quer entre os dois brancos, quer em sua relação com os indígenas, é integrar-se ao “lado de dentro”. Para quem terminara todos os seus filmes até ali com uma imagem do horizonte se abrindo para o protagonista, McTiernan dá à Crane um último plano em que a câmera consegue, no máximo, avistar a copa das árvores. Este limite físico restrito (estar entre a terra e a cobertura da vegetação) não esconde a atração irresistível por aquilo que caminha pelo meio dele: os homens, exatamente. A integração não é passageira, e aqui vale se sujar de lama do mesmo modo que Schwarzenegger fizera, não mais para escapar dali, mas para marcar uma nova ligação, positivamente simbiótica, com o meio. Assume-se a lama, e também as pinturas e adornos indígenas, porque agora os personagens de McTiernan fazem parte de algo maior.

E a questão aqui parece mesmo a vontade de sair dos pequenos laboratórios narrativos para começar a lidar com a grandeza. Não que se descuide da carpintaria do gênero, muito pelo contrário. O Curandeiro da Selva se constrói a partir da mistura bastante equilibrada entre o filme de aventura e a comédia romântica, sobretudo pela aposta na velha oposição atraente entre um Campbell porra-louca e uma Crane caxias (com Sean Connery e Lorraine Bracco em sintonia finíssima), tudo isso recheado por expedições mata adentro e um sobe-e-desce constante de árvores e cachoeiras. A interação entre o casal, por exemplo, é repleta das tiradas típicas do cinema de ação, quando um personagem consegue sacar uma piada esperta mesmo quando diante do perigo iminente da morte.

Mas isso tudo parece ter encontrado um limite naquilo que McTiernan vê como seu próprio horizonte. Assim, todo o concerto de ações positivas (o encontro do casal, sua integração com a tribo, o sucesso nas pesquisas científicas), orquestrado por esta profusão de gêneros clássicos, esbarra num problema que escapa do controle dessa escola narrativa, desse diretor disposto a segui-la. Como em O Predador, a ameaça é invisível, um diablo devorador de hombres. Não mais um alienígena que assombra há décadas um pequeno povoado, mas uma doença terrena, o câncer, que Campbell bem define como “a grande peste do século”. A experiência íntima do doutor, sua jornada de culpa e redenção naquela aldeia, poderá extrapolar aquelas fronteiras, beneficiar todo o mundo, mas a fórmula da cura é perdida. Quando finalmente se consegue descobrir como reproduzir esta fórmula em laboratório, o hospedeiro dessa substância valiosa é dizimado junto com toda a floresta, derrubada pelo progresso de uma estrada que cortará a região.

McTiernan não vilaniza este progresso estúpido, e chega a fazer de seu maior agente (Miguel Ornega, funcionário da companhia responsável pela estrada, interpretado por José Wilker) um personagem doce, sinceramente tocado pela experiência científica e pessoal de Campbell. Eis o limite: o cinema de gênero é capaz de fortalecer suas próprias bases de maneira realmente notável, se renovando, propondo novos desafios a si mesmo, afiando diálogos inteligentes, filmando aventuras cada vez mais radicais, mas existem certas estruturas, certas narrativas inventadas pelo mundo real propriamente dito, com as quais a simples carpintaria de linguagem simplesmente é incapaz de lidar. O Curandeiro da Selva está lidando com um processo histórico que é muito maior que sua capacidade de fantasiar.

A resposta que McTiernan dá a esse desfecho incontornável é de uma sinceridade tocante, porque surpreendente. De um diretor conhecido pelos filmes de ação, produtos que geralmente associam seu sucesso a uma contagem altíssima de corpos mortos e dilacerados, vem um contragolpe de igual grandeza: a reação está nas pessoas, em seu espírito naturalmente agregador (diferente do que a eliminação em série nos filmes de ação sugeriria). O Curandeiro da Selva tem um verdadeiro projeto humanista, e o realiza por vias tão divertidamente tortas. McTiernan insiste em seqüências exoticizantes, onde vemos dúzias de bundas indígenas nuas contrapostas ao corpo vestido da Dra. Crane, mas não há nada de sociologicamente incorreto nisso. O que se quer ali é mostrar que essa distância dos corpos (no fundo também uma distância de mentes) precisa acabar, porque só pela reunião dessas potências humanas será possível combater os inimigos que se colocam à frente. A estrada destrói a aldeia e, junto, a esperança da cura do câncer. A reação? Não mais a fuga assustada de Dutch daquela floresta que só deixa marcas negativas. A seqüência romântica de O Predador: Crane e Campbell pintados como os índios, marchando lado a lado, não para fora da selva, mas cada vez mais no interior dela, lá onde existe esperança e, acima de tudo, companheiros com quem dividi-la.

Rodrigo de Oliveira

(VHS: Abril Vídeo)