Nas conversas
periódicas que nós aqui da Contracampo fazemos para
decidir pautas novas, volta e meia reaparece a idéia
de falar dos filmes que nunca chegam ao circuito brasileiro
(e alguns deles nem mesmo aos dois grandes festivais
internacionais do país), de tentar cumprir essa distância
até a invisibilidade de cineastas que só permanecem
assim por pura falta de oportunidade de contato com
os olhos do espectador brasileiro; e talvez com isso,
interessar alguns leitores na busca por estes filmes,
nos diversos meios alternativos de que dispomos hoje.
Há nessa idéia – e é por isso que talvez nunca a tenhamos
realizado integralmente – um tom melancólico indisfarçável,
uma lamentação pelo não-visto, que é bastante justificada,
mas que não escapa desse grunhido do “e se...”, que
acaba se desviando daquilo que está aqui, passando nos
nossos cinemas, chegando às nossas locadoras.
E assim,
fazer esta edição especial cobrindo toda a carreira
de John McTiernan, deveria ocupar o extremo oposto desta
preocupação com o não-visto: lidar com o super-visto,
com aquilo que nos chega sempre, do qual nos abastecemos
há anos. Mas é difícil ignorar que, mesmo estando do
lado de lá da balança, um olhar sobre a obra de McTiernan,
hoje, carrega os mesmos traços de invisibilidade, melancolia
e até mesmo alguma lamentação. As vias são tortas, evidentemente.
Primeiro, a exposição excessiva, deste que produziu
alguns dos maiores blockbusters dos anos 80 e 90. Depois
sua filiação a um modo de produção, mas também a uma
maneira de pensar o cinema, calcada no gênero, sobretudo
no filme de ação, que McTiernan levou ao alto e depois
assistiu (e filmou) a queda.
Foi sobre
os entulhos desse cinema defendido por McTiernan que
se construíram os novos padrões da ação e da aventura
no cinema contemporâneo, estes mesmos que nós aqui da
revista discutimos na edição 87, a respeito de filmes
como Homem-Aranha, Missão Impossível,
A Identidade Bourne. A invisibilidade se deu,
primeiro, na época do lançamento dos filmes, quando
McTiernan era tratado como não mais que um bom produtor
de sucessos (e que deixou de ser considerado quando
seus filmes já não eram tão bem-sucedidos assim). E
então, com a avalanche dos efeitos especiais e da computação
gráfica, esse cinema foi guardado na gaveta da anacronia,
da falta de validade e pertinência num mundo de imagens
tão diferentes das suas próprias (e não deixa de ser
curioso que a sobrevida dada à série Duro de Matar,
com seu 4.0, parece querer equilibrar-se exatamente
ali, entre o passado terreno da ação e seu presente
lunático, espacial, épico).
Aqui viria
a lamentação: voltar a McTiernan seria, portanto, um
golpe contra essa memória fraca do cinema, a recuperação
de um gênio perdido, em seu passado rigoroso e injustamente
esquecido. De fato, seria assim, não fosse o fato de
que, uma vez ali dentro de novo, uma vez reinstalados
na obra do cineasta, foi um presente rigoroso que descobrimos,
foi de uma força renovável que nos contaminamos. Mas
isto talvez tenha a ver com aquele primeiro dado lá
em cima, o da grande evidência de McTiernan em seus
dias de glória.
De quantos
cineastas, hoje em dia, podemos falar com a propriedade
(afetiva, antes de tudo) de quem assistiu todos os seus
filmes no cinema, no momento em que foram lançados?
De quantos cineastas que valiam à pena? McTiernan certamente
está nesse pequeno grupo que nós, jovens entre os 20
e poucos e os 30 e muitos, sabemos desde sempre. Foram
nas sessões de Duro de Matar, A Caçada ao
Outubro Vermelho, foram nas idas à locadora para
pegar O Predador assim que lá chegasse, que boa
parte de nós aqui da revista nos forjamos cinéfilos.
McTiernan fez, verdadeiramente, os filmes “que observam
nossa infância”. O retorno a seus filmes é um retorno
que acontece “por dentro”, de quem um dia ali já esteve
e que agora volta para conferir em que estado ficou
a casa em que foi criado.
Mas isto
não é nada que vocês, leitores, não perceberiam ao percorrer
por conta própria cada um dos 11 textos que compõem
esta edição: nossa relação com estes filmes é de uma
proximidade enorme, e por isso mesmo tão saudavelmente
problemática. Cada um dos redatores puxa para o filme
que escolheu a alcunha de “obra-prima”, e não nisso
uma desvalorização da idéia, pelo contrário. Muitos
dos textos se aventuram na compreensão daquela mesma
contradição que tornou McTiernan um famoso invisível,
sua colocação entre a firmeza autoral, a restrição do
gênero e a diluição exigida pela indústria. Se artesão,
carpinteiro, autor ou gênio, talvez não consigamos definir
como valor absoluto. Mas no contato íntimo com a obra,
cada filme em particular nos mostrava um McTiernan diferente,
condicionado pelo momento de sua carreira, pelo momento
que o cinema mundial vivia, pelo que suas próprias obsessões
e recorrências passavam a desafiá-lo. E – surpresa nossa
– pelo momento que vivemos hoje, e pelo que hoje estes
filmes ainda conseguem ecoar.
O que
cada um dos filmes ecoa, tentamos colocar lá nos textos
que vocês lerão agora. Entre as complementações e as
contradições que estes textos oferecerão entre si, arrisco
dizer que uma coisa talvez se destaque, algo que está
na própria raiz desta revisão completa. Cito um exemplo.
Em A Caçada ao Outubro Vermelho, Sean Connery
interpreta o capitão de um submarino russo. Os primeiros
diálogos do filme, entre ele e seus subordinados, são
todos em russo, com legendas em inglês diretas na cópia.
Nos comentários do DVD deste filme, McTiernan começa
a explicação dizendo que, bem, Connery não é propriamente
um lingüista, e que por isso não seria possível levá-lo
falando outra língua até o fim do filme. Posto que,
em algum momento, Connery conversa com um burocrata
que está embarcado em seu submarino, ambos em russo.
Enquanto o sujeito lê uma passagem da Bíblia, a câmera
faz um longo zoom-in até enquadrar apenas sua
boca se mexendo, destacando exatamente sua fala, o som
da língua estrangeira e sua contraposição às legendas.
Uma vez que termina o movimento da lente, na passagem
de uma frase à outra e como que num passe de mágica,
o sujeito começa a falar inglês, com naturalidade, e
um zoom-out nos devolve ao plano geral, onde
agora também Connery fala em inglês. O recurso, McTiernan
confessa nos mesmos comentários, ele tirou de uma cena
de O Julgamento de Nuremberg, de Stanley Kramer.
Mas não faz tanta diferença. Importa é o seguinte: por
que fazer isso? Por que não assumir logo este acordo
tácito com o espectador, que supõe que todos os personagens
da ficção, não importa a origem, se comunicam em inglês,
este esperanto que deu certo? Ou mais, por que não disfarçar
simplesmente um sotaque russo em todos eles? Por que
insistir no russo verdadeiro, e depois fazer a troca?
E aqui, talvez, a mais importante pergunta: por que
fazer a troca de língua na nossa frente?
Arrisco
uma resposta. McTiernan nunca pensou no espectador por
aqueles mesmos parâmetros que ele próprio acabou sendo
marcado. Nunca nos viu como invisíveis, nunca nos supôs
como mentes niveladas pela capacidade de uma criança
de 12 anos. E, uma vez dentro de um sistema que força
esse tipo de nivelamento, nunca se lamentou por isso.
Pelo contrário, combateu a indiferença. Este close na
boca do burocrata não é mais que um “eu sei que vocês
estão aí, e é com vocês que me interessa dialogar”.
Diferente da maior parte do atual cinema hollywoodiano,
McTiernan não repele o espectador, não quer bombardeá-lo.
O lugar do espectador nos filmes de McTiernan sempre
foi lá dentro, na direção em que o close nos levou.
Se estes filmes nos permitem tanto espaço, se dependem
tanto da nossa participação para se efetivarem, se gostam
tanto de lidar com a idéia de que existe alguém ali
assistindo e investindo suas próprias idéias naquelas
imagens já prontas, se nos desafiam sem nunca perder
um certo senso de gentileza; em suma, se estes filmes
só existem se nós existirmos, e nunca à nossa revelia,
e se nós estamos aqui, vivos, no presente, com estas
pilhas de DVD’s nas mãos, então não há nada o que lamentar.
Assim, um dossiê da obra de John McTiernan vira uma
celebração. Da memória, mas também do agora. Do cinema
que permanece vivo e pulsante.
Rodrigo de Oliveira
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