SANTIAGO
João Moreira Salles, Brasil, 2007

Goste-se ou não, Santiago tem um mérito que deve ser reconhecido: o filme provoca, ele gera impressões e posicionamentos. Ressaltado esse mérito, o de ser "instigante”, acho que é preciso apontar alguns dos seus problemas centrais - e me parece que todos têm a mesma origem: o personagem narrador-autor se culpa pela forma com que arquitetava um documentário, mas parece não reconhecer que sua confusão de propósitos (o “por que fazer a obra”) perdura até hoje. Não foi por interesse em Santiago, o mordomo, que o filme começou a ser feito nem tampouco foi por isso que ele ganhou sua forma final. E assim originam-se dois efeitos bastante negativos em Santiago, o filme.

O primeiro é que o personagem-título acaba se tornando um pouco aquilo que Hitchcock chamava de mcguffin, uma trama que parece ser central e na verdade serve apenas para entreter enquanto outra trama se constrói - como num filme em que um casal persegue uma maleta para ao fim sabermos que a trama não é sobre a maleta, e sim sobre o casal – e a maleta é então um mcguffin. Como Santiago, o mordomo, acaba se tornando um mcguffin em Santiago, o filme, pois todo o foco em sua figura é armado para que outra história seja contada em segundo plano e, ao final, descubramos que a sua trajetória não era o mais importante. À primeira vista, o que há de mais importante parece ser o mea-culpa a partir das falhas de um material documental.

Disto deriva o segundo efeito negativo, pois todo o discurso do filme passa a ter um tom próximo do religioso, com a criação de dois momentos do narrador-autor – manipulador e cheio de soberba no passado e agora capaz de reconhecer e expor a todos os seus próprios erros. Porque Santiago se apresenta como um ritual de mea-culpa, mas o que o filme traz de mais triste é que esta auto-crítica diante do personagem outrora desrespeitado parece servir apenas como estilo retórico. O narrador-autor talvez tenha imenso e sincero carinho por Santiago, seu falecido mordomo, e pela memória que guarda dele. Mas se Santiago, o filme, apresenta-se como um documentário que ao longo das filmagens não soube se aproximar de Santiago, o mordomo, ainda assim o resultado final também não parece ter em si qualquer disposição de procurar um retrato mais próximo ou mais atento. Doze anos depois, o narrador-autor segue usando Santiago como um personagem exótico, um tanto bizarro, capaz de explanações hiperbólicas e de ultra-estetizadas danças com as mãos. Vale notar que o filme não mostra qualquer interesse em procurar outras memórias afetivas de Santiago - fossem as suas raízes no exterior, fossem os seus vizinhos no Leblon ou qualquer outra coisa. Santiago, o filme, satisfaz-se com o material pretensamente “insatisfatório” de 1992. É o que basta para que construa o seu discurso.

Que, portanto, parece não ser motivado pela saudade de Santiago, e sim por um punhado de questões pessoais que ficam ocultas a maior parte do tempo e só em alguns instantes se deixam ver parcialmente. Quando o narrador-autor diz, por exemplo, que o filme foi retomado como forma de voltar à casa da Gávea. Ou quando ele simplesmente não diz outras coisas, como no uso de eufemismos para falar dos pais (“papai era um homem de negócios” para se referir a um banqueiro, “quando mamãe se foi” para se referir à sua morte). Mas, acima de tudo, é quando surgem as imagens de um filme caseiro da família Moreira Salles que parece se revelar a motivação para Santiago. São imagens que guardam relação somente indireta, aproximada, com o personagem-título. Essa é a artimanha que o personagem narrador-autor parece esconder ou ignorar: as imagens não são apresentadas somente por ter relação indireta com o personagem-título - ao contrário, parece mais que este personagem-título continuou sendo usado apenas por estar indiretamente relacionado àquelas imagens. O que elas dizem e o que elas escondem é o filme que o narrador-autor de Santiago talvez precisasse fazer e certamente ainda não fez.

Mas o filme que há, Santiago, caminha assim num fio de navalha entre coisas que mostra e coisas que não mostra; entre coisas que se acabaram e o material que sobreviveu; entre a memória das pessoas que se foram e as lembranças de quem segue adiante; entre o reconhecimento das falhas e a vergonha delas; entre a manipulação estetizante e a culpa associada a ela; entre a palavra do patrão-autor e a voz do irmão-mais-velho... Imprimido nesse fio de navalha que às vezes parece ser cortante, dizendo-se frágil para assim impor sua moral, Santiago apresenta uma dor muito evidente que incomoda e nos obriga a questionar seus procedimentos patológicos.

E, quanto a isso, não faz sentido comungar com a fragilidade dramática que nos é imposta. Ao fim do filme, seu narrador-autor, na voz segura do irmão, nos conta o final de um filme de Ozu para concluir, por sua própria conta, que “as coisas não têm sentido”. Isto não é um erro factual, mas parte de um equívoco retórico. Sejamos claros: coisas não têm sentido, coisas apenas existem. “As coisas estão no mundo”... Somos nós que damos sentido e encontramos significados nelas, como bem sabe o narrador-autor - pois é explicitando sentimentos e gerando uma profusão de sentidos que o filme se põe no caminho entre o ridículo e o sublime. Santiago padece dessas contradições e torna-se sofrível graças às pretensas "beleza" e "sinceridade" que apresenta para fugir de seu doloroso assunto – mas é aí, nessa vontade de falar da dor, que ele apresenta uma certa vitalidade, uma mórbida vitalidade.

Daniel Caetano