Goste-se ou não, Santiago
tem um mérito que deve ser reconhecido: o filme
provoca, ele gera impressões e posicionamentos. Ressaltado
esse mérito, o de ser "instigante”, acho que é
preciso apontar alguns dos seus problemas centrais -
e me parece que todos têm a mesma origem: o personagem
narrador-autor se culpa pela forma com que arquitetava
um documentário, mas parece não reconhecer que
sua confusão de propósitos (o “por que fazer a obra”)
perdura até hoje. Não foi por interesse em Santiago,
o mordomo, que o filme começou a ser feito nem tampouco
foi por isso que ele ganhou sua forma final. E assim
originam-se dois efeitos bastante negativos em Santiago,
o filme.
O primeiro é que o personagem-título acaba se tornando
um pouco aquilo que Hitchcock chamava de mcguffin,
uma trama que parece ser central e na verdade serve
apenas para entreter enquanto outra trama se constrói
- como num filme em que um casal persegue uma maleta
para ao fim sabermos que a trama não é sobre a maleta,
e sim sobre o casal – e a maleta é então um mcguffin.
Como Santiago, o mordomo, acaba se tornando um mcguffin
em Santiago, o filme, pois todo o foco em sua
figura é armado para que outra história seja contada
em segundo plano e, ao final, descubramos que a sua
trajetória não era o mais importante. À primeira vista,
o que há de mais importante parece ser o mea-culpa a
partir das falhas de um material documental.
Disto deriva o segundo efeito negativo, pois todo o
discurso do filme passa a ter um tom próximo do religioso,
com a criação de dois momentos do narrador-autor – manipulador
e cheio de soberba no passado e agora capaz de reconhecer
e expor a todos os seus próprios erros. Porque Santiago
se apresenta como um ritual de mea-culpa, mas o que
o filme traz de mais triste é que esta auto-crítica
diante do personagem outrora desrespeitado parece servir
apenas como estilo retórico. O narrador-autor talvez
tenha imenso e sincero carinho por Santiago, seu falecido
mordomo, e pela memória que guarda dele. Mas se Santiago,
o filme, apresenta-se como um documentário que
ao longo das filmagens não soube se aproximar de Santiago,
o mordomo, ainda assim o resultado final também não
parece ter em si qualquer disposição de procurar um
retrato mais próximo ou mais atento. Doze anos depois,
o narrador-autor segue usando Santiago como um personagem
exótico, um tanto bizarro, capaz de explanações hiperbólicas
e de ultra-estetizadas danças com as mãos. Vale notar
que o filme não mostra qualquer interesse em procurar
outras memórias afetivas de Santiago - fossem as suas
raízes no exterior, fossem os seus vizinhos no Leblon
ou qualquer outra coisa. Santiago, o filme, satisfaz-se
com o material pretensamente “insatisfatório” de 1992.
É o que basta para que construa o seu discurso.
Que, portanto, parece não ser motivado
pela saudade de Santiago, e sim por um punhado de questões
pessoais que ficam ocultas a maior parte do tempo
e só em alguns instantes se deixam ver parcialmente.
Quando o narrador-autor diz, por exemplo, que o filme
foi retomado como forma de voltar à casa da Gávea. Ou
quando ele simplesmente não diz outras coisas, como
no uso de eufemismos para falar dos pais (“papai
era um homem de negócios” para se referir a um banqueiro,
“quando mamãe se foi” para se referir à sua morte).
Mas, acima de tudo, é quando surgem as imagens de um
filme caseiro da família Moreira Salles que parece se
revelar a motivação para Santiago.
São imagens que guardam relação somente
indireta, aproximada, com o personagem-título.
Essa é a artimanha que o personagem narrador-autor parece
esconder ou ignorar: as imagens não são apresentadas
somente por ter relação indireta com o personagem-título
- ao contrário, parece mais que este personagem-título
continuou sendo usado apenas por estar indiretamente
relacionado àquelas imagens. O que elas dizem e o que
elas escondem é o filme que o narrador-autor de Santiago
talvez precisasse fazer e certamente ainda não fez.
Mas o filme que há, Santiago, caminha assim num
fio de navalha entre coisas que mostra e coisas que
não mostra; entre coisas que se acabaram e o material
que sobreviveu; entre a memória das pessoas que se foram
e as lembranças de quem segue adiante; entre o reconhecimento
das falhas e a vergonha delas; entre a manipulação estetizante
e a culpa associada a ela; entre a palavra do patrão-autor
e a voz do irmão-mais-velho... Imprimido nesse fio de
navalha que às vezes parece ser cortante, dizendo-se
frágil para assim impor sua moral, Santiago apresenta
uma dor muito evidente que incomoda e nos obriga a questionar
seus procedimentos patológicos.
E, quanto a isso, não faz sentido comungar com a fragilidade
dramática que nos é imposta. Ao fim do filme,
seu narrador-autor, na voz segura do irmão, nos conta
o final de um filme de Ozu para concluir, por sua própria
conta, que “as coisas não têm sentido”. Isto
não é um erro factual, mas parte de um equívoco retórico.
Sejamos claros: coisas não têm sentido, coisas apenas
existem. “As coisas estão no mundo”...
Somos nós que damos sentido e encontramos significados
nelas, como bem sabe o narrador-autor - pois é explicitando
sentimentos e gerando uma profusão de sentidos que o
filme se põe no caminho entre o ridículo e o sublime.
Santiago padece dessas contradições e torna-se
sofrível graças às pretensas "beleza"
e "sinceridade" que apresenta para fugir de
seu doloroso assunto – mas é aí, nessa vontade de falar
da dor, que ele apresenta uma certa vitalidade, uma
mórbida vitalidade.
Daniel Caetano
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