Antes que os créditos iniciais
de Querô apareçam, há uma espécie de prólogo
que retoma o momento do nascimento deste menino protagonista,
uma lembrança vinda dele mesmo, que nos conduz com a
voz off até o ambiente prostibular onde sua mãe
vivia e trabalhava. Nessas poucas cenas, de caracterização
bastante excessiva, Carlos Cortez já estabelece aquela
que será a relação primordial entre seu filme e aquele
de quem pega o nome emprestado para o título. Entre
os palavrões gritados pela cafetina e o parto recém-acontecido,
Cortez busca o rosto de Maria Luísa Mendonça, mãe de
Querô, e não há nesse movimento qualquer sanha sensacionalista.
Já expulsa desse lugar, ela aparecerá na rua chorando
a dúvida entre seguir com a maternidade ou interrompê-la,
entregando o filho para adoção, e ali estaremos novamente
muito perto dos olhos da atriz. Decidida, abandona o
menino na porta do prostíbulo e sai pela rua, para mais
adiante se matar ao beber querosene (e assim marcar
involuntariamente seu filho com o apelido tornado identidade).
Agora estamos, como pelo resto do filme, diante apenas
deste menino, e um último plano fechado, no rosto do
bebê jogado na calçada, confirma esta relação pretendida.
Querô não tem medo dos closes, e se já nesse
prólogo se dispõe ao contato tão próximo com seu protagonista,
é porque sente que dali, e só dali, será possível percebê-lo
com a integridade que merece.
Há nessa proximidade, sobretudo, uma vontade de realidade,
expandida aqui para além da simples inserção de uma
câmera num ambiente de instabilidade, uma câmera que
se disponha a captar beleza e sujeira sem distinções,
essa espécie de fórmula de assimilação da verdade da
qual o registro documental estaria naturalmente investido.
Querô quer também a proximidade psicológica,
e aqui chega longe demais, transforma integridade em
totalidade, e se nutre das imagens mentais de seu protagonista,
atormentado não só com o passado de filho de uma prostituta
suicida, mas com todas as provações a que é submetido
no trajeto que o filme captura: o trabalho informal
e os pequenos furtos na região portuária de Santos,
a prisão e a fuga da Febem, a perseguição constante
dos agentes subalternos do poder e, sobretudo, o estupro
violentíssimo que Querô sofre na prisão, revivido a
golpes de flashback. As lembranças vêm em forma de clipe
alucinatório, com planos curtos desses momentos da vida
do menino, todos com a imagem alterada (como se, na
consciência, as cores do mundo fossem invertidas), agrupadas
por muito barulho e efeitos de montagem. Entre a realidade
do corpo e a realidade do espírito, somos repentinamente
instalados num espaço que repele nossa presença, e aquilo
que era o desejo de estar perto se torna uma invasão,
a necessidade forçada de se estar dentro.
Mais que um problema, essa volúpia sobre o espaço íntimo
do protagonista cria uma confusão. Porque a resposta
a essa atitude está no próprio corpo de Querô, e à cada
investida no realismo psicológico, Carlos Cortez opõe
um momento onde o que se realiza é a ficção pura, em
sua concepção mais clássica. Sobre o personagem que
criou no romance homônimo de 1976, Plínio Marcos dizia
que nem Deus olhava por ele, e a adaptação para o cinema,
como já se anunciava desde aqueles closes iniciais,
quer cumprir exatamente este papel ignorado até aqui.
A força de Querô, no entanto, aparece sempre
que essa obrigação divina é substituída por outra, igualmente
transcendental, porém mais próxima do chão, onde o que
existe é a simples encenação, não como a submissão do
protagonista a esquemas ficcionais determinados, mas
sim como um regime de colaboração entre um e outro.
É esta dimensão de urdidura dramática que retira o protagonista
da condição de retratado e o coloca no centro de uma
mise-en-scène ativamente construída, onde toda
plataforma realista é contaminada por um apelo irresistível
de fabricação. Há sim um olhar revelador, mas ele só
se efetiva na investigação da própria cena, no modo
como cada situação pode se desdobrar em imagem, naquilo
que, ao contrário do que se podia imaginar do primeiro
longa de ficção de um diretor escolado no documentário,
diz respeito a uma decupagem extremamente precisa da
ação. Encantado com essa sua descoberta da invenção,
Cortez vai respondendo à disponibilidade de Querô em
se deixar filmar com a encenação de momentos de puro
cinema. É assim que vemos o menino, numa seqüência de
poucos planos, se apaixonar por uma jovem cantora gospel
num culto de igreja evangélica, tudo de modo tão carinhosamente
colocado já desde a primeira imagem, que antes de qualquer
inevitabilidade ou necessidade de recompensa a um personagem
sofrido, o que aparece é a própria oportunidade de colocar
Querô num lugar em que nunca esteve, diante da possibilidade
de materializar toda carga emotiva de que sempre apareceu
envolvido, e que sempre era frustrada, num momento onde
ela se realize sem qualquer impedimento. De volta ao
close, mas sem outra atribuição que não a da confirmação
de um sentimento, vemos as mãos de Querô e de sua amada,
juntas e entrelaçadas durante uma oração. A divindade,
no fundo apenas o poder de atuação sobre o destino de
alguém, sai do registro dos grandes temas responsáveis
(dar visibilidade a uma faixa da população marginalizada,
denunciar a ruína do sistema correcional juvenil) e
vem ao nível da disposição de um diretor em garantir
a um personagem tão espontâneo a chance de se mostrar
maior do que os limites que sua condição social e histórica
sempre lhe impuseram.
É assim, portanto, que se pode rimar o mesmo apagar
assustador de luzes na cadeia, na primeira vez como
anúncio direto da proximidade de um trauma, na segunda
já sob o silenciar tácito e terrível de um momento que,
para Querô e para o espectador, já fornece por si só
a sensação de um flashback. Do mesmo modo, teremos dois
planos curtos e decisivos para a construção desse protagonista,
num momento a faca incógnita que é jogada a seus pés,
como se iniciar uma rebelião estivesse naturalmente
a cargo dessa potência sensível absolutamente explosiva,
e na seqüência, a mão ensangüentada deixando uma marca
na parede, síntese de um trajeto colocado em crise.
Truques narrativos, como a disposição de faroeste que
Querô e o policial assumem no duelo final, tão definidores
dessa confusão positiva entre real e fictício.
E não há espaço melhor para essa dualidade que Maxwell
Nascimento, o jovem ator escolhido para encarnar Querô,
no que talvez seja a interpretação masculina mais marcante
do cinema brasileiro desde o Satã de Lázaro Ramos. Capaz
de equilibrar o ódio e a raiva (que seu personagem declara
como os únicos sentimentos que o movem) com a doçura
de quem descobre, até um tanto constrangido, que também
o amor lhe diz respeito, Nascimento acaba amortecendo
os descaminhos de Querô. Talvez por ele, por
esta versão que criou de um personagem tão estabelecido
(pelo próprio romance de Plínio Marcos, e pela rebarba
dele em Pixote, livro e filme), aquilo que parecia
uma mistura de focos acaba se concentrando num só, e
no último trecho, nada menos que arrebatador, estamos
lidando com a intervenção direta sobre qualquer senso
de realidade. Mais uma vez um filme brasileiro termina
com o sorriso de pura dúvida de seu protagonista, mas
se em O Céu de Suely aquela manifestação era
pura vontade de futuro, em Querô, destino já
devidamente traçado, o sorriso é quase o acúmulo de
todas as expressões agrupadas no rosto do protagonista
ao longo do filme inteiro, como se a alguém que se entregasse
tão instintivamente à aventura de descobrir-se pleno
só restasse este desfecho, narrativas da insistência
no amor.
Rodrigo de Oliveira
|