QUERÔ
Carlos Cortez, Brasil, 2006

Antes que os créditos iniciais de Querô apareçam, há uma espécie de prólogo que retoma o momento do nascimento deste menino protagonista, uma lembrança vinda dele mesmo, que nos conduz com a voz off até o ambiente prostibular onde sua mãe vivia e trabalhava. Nessas poucas cenas, de caracterização bastante excessiva, Carlos Cortez já estabelece aquela que será a relação primordial entre seu filme e aquele de quem pega o nome emprestado para o título. Entre os palavrões gritados pela cafetina e o parto recém-acontecido, Cortez busca o rosto de Maria Luísa Mendonça, mãe de Querô, e não há nesse movimento qualquer sanha sensacionalista. Já expulsa desse lugar, ela aparecerá na rua chorando a dúvida entre seguir com a maternidade ou interrompê-la, entregando o filho para adoção, e ali estaremos novamente muito perto dos olhos da atriz. Decidida, abandona o menino na porta do prostíbulo e sai pela rua, para mais adiante se matar ao beber querosene (e assim marcar involuntariamente seu filho com o apelido tornado identidade). Agora estamos, como pelo resto do filme, diante apenas deste menino, e um último plano fechado, no rosto do bebê jogado na calçada, confirma esta relação pretendida. Querô não tem medo dos closes, e se já nesse prólogo se dispõe ao contato tão próximo com seu protagonista, é porque sente que dali, e só dali, será possível percebê-lo com a integridade que merece.

Há nessa proximidade, sobretudo, uma vontade de realidade, expandida aqui para além da simples inserção de uma câmera num ambiente de instabilidade, uma câmera que se disponha a captar beleza e sujeira sem distinções, essa espécie de fórmula de assimilação da verdade da qual o registro documental estaria naturalmente investido. Querô quer também a proximidade psicológica, e aqui chega longe demais, transforma integridade em totalidade, e se nutre das imagens mentais de seu protagonista, atormentado não só com o passado de filho de uma prostituta suicida, mas com todas as provações a que é submetido no trajeto que o filme captura: o trabalho informal e os pequenos furtos na região portuária de Santos, a prisão e a fuga da Febem, a perseguição constante dos agentes subalternos do poder e, sobretudo, o estupro violentíssimo que Querô sofre na prisão, revivido a golpes de flashback. As lembranças vêm em forma de clipe alucinatório, com planos curtos desses momentos da vida do menino, todos com a imagem alterada (como se, na consciência, as cores do mundo fossem invertidas), agrupadas por muito barulho e efeitos de montagem. Entre a realidade do corpo e a realidade do espírito, somos repentinamente instalados num espaço que repele nossa presença, e aquilo que era o desejo de estar perto se torna uma invasão, a necessidade forçada de se estar dentro.

Mais que um problema, essa volúpia sobre o espaço íntimo do protagonista cria uma confusão. Porque a resposta a essa atitude está no próprio corpo de Querô, e à cada investida no realismo psicológico, Carlos Cortez opõe um momento onde o que se realiza é a ficção pura, em sua concepção mais clássica. Sobre o personagem que criou no romance homônimo de 1976, Plínio Marcos dizia que nem Deus olhava por ele, e a adaptação para o cinema, como já se anunciava desde aqueles closes iniciais, quer cumprir exatamente este papel ignorado até aqui. A força de Querô, no entanto, aparece sempre que essa obrigação divina é substituída por outra, igualmente transcendental, porém mais próxima do chão, onde o que existe é a simples encenação, não como a submissão do protagonista a esquemas ficcionais determinados, mas sim como um regime de colaboração entre um e outro.

É esta dimensão de urdidura dramática que retira o protagonista da condição de retratado e o coloca no centro de uma mise-en-scène ativamente construída, onde toda plataforma realista é contaminada por um apelo irresistível de fabricação. Há sim um olhar revelador, mas ele só se efetiva na investigação da própria cena, no modo como cada situação pode se desdobrar em imagem, naquilo que, ao contrário do que se podia imaginar do primeiro longa de ficção de um diretor escolado no documentário, diz respeito a uma decupagem extremamente precisa da ação. Encantado com essa sua descoberta da invenção, Cortez vai respondendo à disponibilidade de Querô em se deixar filmar com a encenação de momentos de puro cinema. É assim que vemos o menino, numa seqüência de poucos planos, se apaixonar por uma jovem cantora gospel num culto de igreja evangélica, tudo de modo tão carinhosamente colocado já desde a primeira imagem, que antes de qualquer inevitabilidade ou necessidade de recompensa a um personagem sofrido, o que aparece é a própria oportunidade de colocar Querô num lugar em que nunca esteve, diante da possibilidade de materializar toda carga emotiva de que sempre apareceu envolvido, e que sempre era frustrada, num momento onde ela se realize sem qualquer impedimento. De volta ao close, mas sem outra atribuição que não a da confirmação de um sentimento, vemos as mãos de Querô e de sua amada, juntas e entrelaçadas durante uma oração. A divindade, no fundo apenas o poder de atuação sobre o destino de alguém, sai do registro dos grandes temas responsáveis (dar visibilidade a uma faixa da população marginalizada, denunciar a ruína do sistema correcional juvenil) e vem ao nível da disposição de um diretor em garantir a um personagem tão espontâneo a chance de se mostrar maior do que os limites que sua condição social e histórica sempre lhe impuseram.

É assim, portanto, que se pode rimar o mesmo apagar assustador de luzes na cadeia, na primeira vez como anúncio direto da proximidade de um trauma, na segunda já sob o silenciar tácito e terrível de um momento que, para Querô e para o espectador, já fornece por si só a sensação de um flashback. Do mesmo modo, teremos dois planos curtos e decisivos para a construção desse protagonista, num momento a faca incógnita que é jogada a seus pés, como se iniciar uma rebelião estivesse naturalmente a cargo dessa potência sensível absolutamente explosiva, e na seqüência, a mão ensangüentada deixando uma marca na parede, síntese de um trajeto colocado em crise. Truques narrativos, como a disposição de faroeste que Querô e o policial assumem no duelo final, tão definidores dessa confusão positiva entre real e fictício.

E não há espaço melhor para essa dualidade que Maxwell Nascimento, o jovem ator escolhido para encarnar Querô, no que talvez seja a interpretação masculina mais marcante do cinema brasileiro desde o Satã de Lázaro Ramos. Capaz de equilibrar o ódio e a raiva (que seu personagem declara como os únicos sentimentos que o movem) com a doçura de quem descobre, até um tanto constrangido, que também o amor lhe diz respeito, Nascimento acaba amortecendo os descaminhos de Querô. Talvez por ele, por esta versão que criou de um personagem tão estabelecido (pelo próprio romance de Plínio Marcos, e pela rebarba dele em Pixote, livro e filme), aquilo que parecia uma mistura de focos acaba se concentrando num só, e no último trecho, nada menos que arrebatador, estamos lidando com a intervenção direta sobre qualquer senso de realidade. Mais uma vez um filme brasileiro termina com o sorriso de pura dúvida de seu protagonista, mas se em O Céu de Suely aquela manifestação era pura vontade de futuro, em Querô, destino já devidamente traçado, o sorriso é quase o acúmulo de todas as expressões agrupadas no rosto do protagonista ao longo do filme inteiro, como se a alguém que se entregasse tão instintivamente à aventura de descobrir-se pleno só restasse este desfecho, narrativas da insistência no amor.

Rodrigo de Oliveira

 

 








Maxwell Nascimento, maior potência sensível de Querô