Possuídos trata, acima
de tudo, de uma neurose contemporânea. Uma
não, várias. A inserção dos indivíduos na sociedade,
a luta constante por uma autonomia do corpo (e consequentemente
da ação) e a problemática das relações pessoais são
filtradas pelo olhar psicanalista do diretor William
Friedkin. O filme é todo composto
de um trabalho com os traumas e patologias típicos da
sociedade atual, vistos sob um aspecto crítico e talvez
complacente. Mais o segundo até do que o primeiro. Possuídos
não procura sistematizar uma lógica vigente da mente
humana e sobretudo seu comportamento
no dia-a-dia, tampouco compreender o funcionamento das
atitudes do homem, sejam elas ligadas a atos políticos
ou simplesmente mentais. Através de uma relação de causa
e conseqüência que se instaura na diegese
do filme, as questões levantadas são de certo modo respondidas
dentro da própria obra.
O enredo parte da chegada de Peter à casa de Agnes.
Ele traz uma infestação de minúsculos insetos presentes
em seu sangue, que são transmitidos a ela a partir do
contato sexual. A partir de então o casal se fecha,
entrando em desespero numa luta incessante contra os
insetos que parecem proliferar de maneira assustadora.
Ao redor deles, algumas pessoas tentam participar dessa
vida que se cria: Jerry, o
ex-marido de Agnes e R.C, sua companheira de trabalho.
Nenhum dos 4 personagens de
Possuídos está isento de distúrbios clínicos
(Agnes e Peter) ou de desvios comportamentais (Jerry e R.C). Partindo dos coadjuvantes é possível observar
um certo olhar de Friedkin
para questões políticas. A amiga de Agnes é mostrada
em sua rotina, alimentada pelo consumo de drogas e bebidas
alcoólicas. No entanto, tenta na justiça, junto com
sua namorada, a adoção do filho desta. Ora, mas se por
um lado o filme levanta a bola a respeito da adoção
de crianças por casais homossexuais, por outro o faz
justamente em um personagem claramente inapropriado
para exercer a função de formação de uma criança. Mais
do que uma crítica invertida ou entrelaçada com outras
pertinências, fica a impressão de que Friedkin
não se dá conta de seu ato. Já o tratamento de Jerry
funciona em caminho semelhante, transposto de maneira
diferente. O ex-marido de Agnes apresenta uma obsessão
por ela e, após sair da cadeia, quer retomar um lugar
na casa que outrora foi seu. No entanto, o faz de maneira
violenta, impondo plenos poderes conquistados pela força
física. A compulsiva obsessão de Jerry
é absolutamente recriminada no filme. Entretanto, mais
pelo personagem se aproximar de um vilão – que interfere
na continuidade da história de amor – do que pela sua
atitude comportamental. Ao abarcar variadas problematizações
polêmicas, Friedkin, ao não desdobrá-las, abre lacunas para interpretações
errôneas e provoca bastante esforço no espectador para
não ser visto como inconseqüente.
Mas vale a pena estar atento ao que parece ser a questão
central de Possuídos: as neuroses contemporâneas.
O filme abre margem para distintos olhares, fazendo-se
valer de uma série de ferramentas de linguagem que se
confundem e se entrelaçam no que finalmente constitui
um filme de terror. Há um intenso trabalho alegórico
que recai nos (inexistentes?) insetos criadores de feridas.
Não se sabe se eles existem e nem de onde eles vêm.
Sua própria representatividade é confusa, pois é possível
apontá-los como mal causador, mas sua identificação
é apenas presumível. Operam, ainda, em uma estrutura
viral que se instala no corpo de maneira indestrutível,
mas contornável. A isso se alia a abordagem psicanalítica,
pensando na atribuição de causas às neuroses discorridas.
Peter é claramente um indivíduo com distúrbios mentais
e/ ou psíquicos. Que fique claro: Friedkin
trabalha com patologias. Ao incorporar essa suposta
neurose (que deixarei para os especialistas clínicos
identificar, menos por preguiça e mais por ignorância)
que é relatada no filme, o diretor busca origens que
acarretaram tal comportamento. Nunca saberemos, entretanto, a genealogia dessa doença, de que forma
ela se criou (ou apareceu) e de que maneira ela funciona.
O filme opta por mostrar apenas situações dramáticas
de crises comportamentais. Não investiga, nem desdobra.
Apenas olha. E é justamente esse olhar que é carregado
de opiniões controversas e polêmicas (ainda que trabalhadas
superficialmente). Em nenhum momento o filme procura
a cura da doença. Da parte dos personagens, evidente que não. Mas a mão que rege a trajetória
narrativa guia o filme para a fetichização
das neuroses contemporâneas. Possuídos
corrobora de um pensamento vigente (ainda que
inconsciente) da beleza da depressão, dos traumas psíquicos,
dos comportamentos insanos, da solidão. A
frase “estou deprimido” já banalizada por completo
nos dias de hoje, ganha força no filme, que se mascara
numa história de terror. Possuídos aposta que as doenças não necessariamente
precisam ser tratadas, e que nelas está também contida
a própria cura. A partir da não-identificação ou do
isolamento, o indivíduo incorpora as mazelas a sua volta,
num afetamento mental e corporal
e se fecha numa doença que mais do que afetá-lo, fará
nutrir as afetações, incorporando-as e finalmente retirando-se
para outro universo.
Em Possuídos essa transposição para outro espaço
se dá em duas etapas. A primeira delas é o fechamento
do casal na casa de Agnes. Ela e Peter passam a viver
sozinhos, sem que necessitem de qualquer interferência
do mundo que acontece para além daquela bolha. Quando
um mero entregador de pizza se aproxima da casa, o casal
chega a entrar em pânico, com medo do que passa a ser
o outro. Aqui, ainda parece haver uma pequena crítica
a certos comportamentos atuais. Chega a ser patético
a procura por insetos ou contaminações nos pedaços
de pizza. Peter chega a colocá-los no microscópio, sem
retirar amostras ou colocar na lente, simplesmente enfiando
o pedaço de pizza no microscópio, sendo ainda capaz
de achar coisas lá. Essa situação
é reflexo do que acompanhamos no dia-a-dia, com
preocupações que beiram o ridículo (os diets,
lights e zeros da vida são
bons exemplos). Mas a crítica (se há) está somente contida
na ironia do filme diante da situação. Esta que não
mais se repetirá.
A segunda etapa se dá justamente no final do filme,
com a transposição literal do casal para um outro mundo,
a partir do suicídio. Fica evidente não haver qualquer
preocupação de libertação da doença. O casal nunca se
preocupa em tratar a neurose. Eles simplesmente se preocupam
em exterminar os insetos criados a partir da doença.
A cena final é o apogeu da libertação dos insetos que
criamos em nossas mentes, derivados de nossos traumas
pessoais e sociais. Mas para que controlar
uma doença se podemos simplesmente nos libertar
do universo que a promove? A pergunta ressoa forte em
Possuídos. E a resposta que o filme tende a endossar
é que de fato essa vida já não vale mais a pena. Partamos
para outra, repleta de loucos (como figura alegórica),
insanos, e inconseqüentes. Porque no final de tudo prevalece
a individualidade e nossa capacidade de sobrevivência,
seja ela qual for.
Raphael Mesquita
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