POSSUÍDOS
William Friedkin, Bug, EUA, 2006
 

Possuídos trata, acima de tudo, de uma neurose contemporânea. Uma não, várias. A inserção dos indivíduos na sociedade, a luta constante por uma autonomia do corpo (e consequentemente da ação) e a problemática das relações pessoais são filtradas pelo olhar psicanalista do diretor William Friedkin. O filme é todo composto de um trabalho com os traumas e patologias típicos da sociedade atual, vistos sob um aspecto crítico e talvez complacente. Mais o segundo até do que o primeiro. Possuídos não procura sistematizar uma lógica vigente da mente humana e sobretudo seu comportamento no dia-a-dia, tampouco compreender o funcionamento das atitudes do homem, sejam elas ligadas a atos políticos ou simplesmente mentais. Através de uma relação de causa e conseqüência que se instaura na diegese do filme, as questões levantadas são de certo modo respondidas dentro da própria obra.

O enredo parte da chegada de Peter à casa de Agnes. Ele traz uma infestação de minúsculos insetos presentes em seu sangue, que são transmitidos a ela a partir do contato sexual. A partir de então o casal se fecha, entrando em desespero numa luta incessante contra os insetos que parecem proliferar de maneira assustadora. Ao redor deles, algumas pessoas tentam participar dessa vida que se cria: Jerry, o ex-marido de Agnes e R.C, sua companheira de trabalho.

Nenhum dos 4 personagens de Possuídos está isento de distúrbios clínicos (Agnes e Peter) ou de desvios comportamentais (Jerry e R.C). Partindo dos coadjuvantes é possível observar um certo olhar de Friedkin para questões políticas. A amiga de Agnes é mostrada em sua rotina, alimentada pelo consumo de drogas e bebidas alcoólicas. No entanto, tenta na justiça, junto com sua namorada, a adoção do filho desta. Ora, mas se por um lado o filme levanta a bola a respeito da adoção de crianças por casais homossexuais, por outro o faz justamente em um personagem claramente inapropriado para exercer a função de formação de uma criança. Mais do que uma crítica invertida ou entrelaçada com outras pertinências, fica a impressão de que Friedkin não se dá conta de seu ato. Já o tratamento de Jerry funciona em caminho semelhante, transposto de maneira diferente. O ex-marido de Agnes apresenta uma obsessão por ela e, após sair da cadeia, quer retomar um lugar na casa que outrora foi seu. No entanto, o faz de maneira violenta, impondo plenos poderes conquistados pela força física. A compulsiva obsessão de Jerry é absolutamente recriminada no filme. Entretanto, mais pelo personagem se aproximar de um vilão – que interfere na continuidade da história de amor – do que pela sua atitude comportamental. Ao abarcar variadas problematizações polêmicas, Friedkin, ao não desdobrá-las, abre lacunas para interpretações errôneas e provoca bastante esforço no espectador para não ser visto como inconseqüente.

Mas vale a pena estar atento ao que parece ser a questão central de Possuídos: as neuroses contemporâneas. O filme abre margem para distintos olhares, fazendo-se valer de uma série de ferramentas de linguagem que se confundem e se entrelaçam no que finalmente constitui um filme de terror. Há um intenso trabalho alegórico que recai nos (inexistentes?) insetos criadores de feridas. Não se sabe se eles existem e nem de onde eles vêm. Sua própria representatividade é confusa, pois é possível apontá-los como mal causador, mas sua identificação é apenas presumível. Operam, ainda, em uma estrutura viral que se instala no corpo de maneira indestrutível, mas contornável. A isso se alia a abordagem psicanalítica, pensando na atribuição de causas às neuroses discorridas.

Peter é claramente um indivíduo com distúrbios mentais e/ ou psíquicos. Que fique claro: Friedkin trabalha com patologias. Ao incorporar essa suposta neurose (que deixarei para os especialistas clínicos identificar, menos por preguiça e mais por ignorância) que é relatada no filme, o diretor busca origens que acarretaram tal comportamento. Nunca saberemos, entretanto, a genealogia dessa doença, de que forma ela se criou (ou apareceu) e de que maneira ela funciona. O filme opta por mostrar apenas situações dramáticas de crises comportamentais. Não investiga, nem desdobra. Apenas olha. E é justamente esse olhar que é carregado de opiniões controversas e polêmicas (ainda que trabalhadas superficialmente). Em nenhum momento o filme procura a cura da doença. Da parte dos personagens, evidente que não. Mas a mão que rege a trajetória narrativa guia o filme para a fetichização das neuroses contemporâneas. Possuídos corrobora de um pensamento vigente (ainda que inconsciente) da beleza da depressão, dos traumas psíquicos, dos comportamentos insanos, da solidão. A frase “estou deprimido” já banalizada por completo nos dias de hoje, ganha força no filme, que se mascara numa história de terror. Possuídos aposta que as doenças não necessariamente precisam ser tratadas, e que nelas está também contida a própria cura. A partir da não-identificação ou do isolamento, o indivíduo incorpora as mazelas a sua volta, num afetamento mental e corporal e se fecha numa doença que mais do que afetá-lo, fará nutrir as afetações, incorporando-as e finalmente retirando-se para outro universo.

Em Possuídos essa transposição para outro espaço se dá em duas etapas. A primeira delas é o fechamento do casal na casa de Agnes. Ela e Peter passam a viver sozinhos, sem que necessitem de qualquer interferência do mundo que acontece para além daquela bolha. Quando um mero entregador de pizza se aproxima da casa, o casal chega a entrar em pânico, com medo do que passa a ser o outro. Aqui, ainda parece haver uma pequena crítica a certos comportamentos atuais. Chega a ser patético a procura por insetos ou contaminações nos pedaços de pizza. Peter chega a colocá-los no microscópio, sem retirar amostras ou colocar na lente, simplesmente enfiando o pedaço de pizza no microscópio, sendo ainda capaz de achar coisas lá. Essa situação é reflexo do que acompanhamos no dia-a-dia, com preocupações que beiram o ridículo (os diets, lights e zeros da vida são bons exemplos). Mas a crítica (se há) está somente contida na ironia do filme diante da situação. Esta que não mais se repetirá.

A segunda etapa se dá justamente no final do filme, com a transposição literal do casal para um outro mundo, a partir do suicídio. Fica evidente não haver qualquer preocupação de libertação da doença. O casal nunca se preocupa em tratar a neurose. Eles simplesmente se preocupam em exterminar os insetos criados a partir da doença. A cena final é o apogeu da libertação dos insetos que criamos em nossas mentes, derivados de nossos traumas pessoais e sociais. Mas para que controlar uma doença se podemos simplesmente nos libertar do universo que a promove? A pergunta ressoa forte em Possuídos. E a resposta que o filme tende a endossar é que de fato essa vida já não vale mais a pena. Partamos para outra, repleta de loucos (como figura alegórica), insanos, e inconseqüentes. Porque no final de tudo prevalece a individualidade e nossa capacidade de sobrevivência, seja ela qual for.

Raphael Mesquita