Há
algum tempo, o único talento de Lars von Trier é a provocação
com finalidades publicitárias. Com Dogville,
conseguiu fazer o filme que, de toda história do cinema,
mais se aproxima do que Salvador Dali realizou com pintura
em matéria de falsa profundidade e gigantesca empáfia
que se passa por modernista. Resolveu seguir o filão
com Manderlay, se estrepou, e agora recorre a
um divertimento de meio de percurso, aderindo ao terreno
mais confortável e leve da comédia. Óbvio, em se tratando
de Lars von Trier, que despretensão e leveza são coisas
que nunca seremos capazes de encontrar em seus filmes.
Tampouco falta de espalhafato. Então, monta-se o teatrinho:
espalha-se aos quatro ventos que seu filme novo, O
Grande Chefe, teve seus enquadramentos e cortes
decididos por um computador. Pronto, mais uma vez forma-se
a celeuma em torno de uma falsa "grande" questão:
onde está o autor? onde está o sujeito
da enunciação? com a ausência da
intencionalidade muda-se o grau de intervenção
sobre as coisas? a escolha do "como" é
tão decisiva no cômputo geral?
Como se vê, são temas e temas a serem evoluídos
em trocentos trabalhos teóricos possíveis,
todos redundantes e velhos. Porque, para começar,
autor é aquele que faz as obras, não uma
essência perene que cuja alma paira sobre as obras
de arte. Em seguida, porque uma obra cinematográfica
é constituída tanto pelas decisões
ativas por parte do diretor quanto pelas contribuições
que outros profissionais, ou simplesmente o acaso, emprestam
ao filme e o diretor opta por incorporar ao processo
de trabalho. Assim, a princípio, é ridículo
que a questão da autoria seja sequer levantada
a partir de um filme tão nulo quanto O Grande
Chefe que se serve da provocação
a nível teórico para fazer esquecer a
pobreza de sua construção, sua deficiência
expressiva e pouco se fale dela ao se tratar,
por exemplo, de diretores que trabalham em regime de
liberdade quase completa na filmagem, seja Hou Hsiao-hsien,
Abel Ferrara ou Philippe Garrel. Mas aí já
estamos em digressão.
O Grande Chefe nada mais é do que uma
brincadeira velha de 45 anos. 45, precisamente, porque
já em 1962 um filme ficava brincando com o relativismo
do posicionar a câmera, que jogava com a aparente
impertinência de movimentos de câmera, como
se o jogo de planos e enquadramentos desenhasse uma
linha paralela à da trama, e não mais
fosse determinado por ela. Esse filme era Viver a
Vida e seu diretor Jean-Luc Godard. E se naturalmente
a manipulação e instância decisória
do autor/autoridade eram colocadas em questão,
ao mesmo tempo havia um talento no filmar e na crença
de uma beleza genuína que brota da imagem mesmo
que não haja um lugar obrigatório a colocar
a câmera. E se a brincadeira de O Grande Chefe
é velha, ela ainda sofre por não ter nem
a beleza radiante de Anna Karinna chorando ao ver A
Paixão de Joana d'Arc nem o talento de filmar
de Godard. Ao contrário, o máximo que
o filme faz é nos narrar uma comédia sem
timing sobre um ator que é contratado
para ser o "grande chefe" da empresa de forma
que o verdadeiro chefe passe por um subalterno oprimido,
e não por um ditador sovina e trapaceiro. Naturalmente,
a questão "autoral" se reflete na trama.
Definitivamente Lars von Trier não é bobo.
Porém, à luz do que simplesmente apresenta
como expressão material, O Grande Chefe
nada mais é do que um episódio alongado
de The Office ao qual se adiciona uma boa dose
de vanguardismo prét-à-porter e a figura
autoconsciente do narrador, LvT himself, que aparece
ao começo, fim e interlúdios para marotamente
nos dizer como interpretar e em que chave considerar
aquilo que vemos (uma simples comédia, nada para
pensar, diz no começo). Ora, como simples comédia
o filme é um fracasso total, uma vez que comédia
depende de agilidade, graça e timing (qualidades
que não aparecem nem nos melhores filmes do diretor,
Ondas do Destino ou Os Idiotas, que extraem
seus efeitos estéticos a partir do excesso e
da certa mão pesada na direção).
E, como exercício especulativo fazendo-se passar
por comédia despretensiosa, o filme não
se sai muito melhor. Resta ao menos a curiosidade bizarra
de um filme que quebra o eixo a cada corte e que em
cada enquadramento corta algum corpo humano pela metade
(por cima ou pelos lados). Bonito de ver não
é, nem lúdico, nem agradável. Mas,
aos desavisados e desinformados de plantão, "dá
o que pensar". Assim seja.
Ruy Gardnier
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