No
fundo, no fundo, o título deste filme de Sílvio
Tendler não condiz com o que é apresentado
nas imagens oferecidas ao espectador. Ou até
é, mas de maneira bastante parcial: o filme se
constrói como uma espécie de partida de
pingue-pongue, em que a cada tacada de um jogador Milton
responde uma tacada do jogador Silvio. Um jogador, Milton,
tenta com suas palavras evoluir um estilo especulativo,
que entre agressividade e serenidade tenta compreender
e responder com idéias novas (se verdadeiras
ou falsas, aqui não cabe responder) às
questões que o presente político/cultural
do mundo apresenta. O outro, sendo ao mesmo tempo o
juiz da partida, responde com imagens e concatenação
de assuntos e procura ilustrar o que é falado
a partir de insights "originais" originais
no sentido de que buscam evoluir aquilo que é
dito pelo primeiro jogador. O problema é que
ao passo que um jogador utiliza o raciocínio,
o outro só utiliza frases feitas e clichês
intelectuais de uma certa esquerda que teima em não
se atualizar há 40 anos, como se nada tivesse
acontecido no terreno das idéias (mesmo as de
esquerda, mesmo as de esquerda revolucionária)
desde Frantz Fanon. Resulta que num determinado momento
vemos frases e argumentos de Milton Santos que no mínimo
dão no que pensar, mas em seguida somos bombardeados
por montagenzinhas de efeitos e artifícios retóricos
que conceitualmente mal se colam uns com os outros,
ou que descaradamente copiam filmes recentes como Memórias
do Saque e A Corporação sem
nem se aproximar da construção mais sólida
de argumento ao menos, da inscrição
das afirmações bombásticas numa
documentação mais extensa e embasada
que esses filmes fazem, ou então interlúdios
veementes-engraçadinhos requentados que se aproximam
em tom dos filmes de Michael Moore.
Em Encontro com Milton Santos, o que mais incomoda
nem é essa maneira irritante de diluir a fala
de Milton Santos na agenda das lutas políticas
mundiais especialmente as midiáticas,
as que "são assunto" dos últimos
anos, mas a aparente desenvoltura com que passa pelo
desenvolvimento das idéias e chega às
conclusões que são, sempre, generalizantes,
rasas na visão e, pior de tudo, jogadas todas
no mesmo barco como se tudo fosse a mesma coisa, revelando
enorme displicência em relação à
inteligência. No fundo, o filme parte de uma série
de depoimentos picotados de Milton Santos para dar vazão
a uma colagem de todos os clichês do que é
in dentro do cenário da política
globalizada: críticas ao processo de globalização,
ao consumo, ao crescimento das injustiças, à
exploração da África e dos outros
povos da América Latina, elogio aos movimentos
políticos recentes (Sem-Terra, Argentina, Bolívia),
ao esforço da mídia independente, aos
intelectuais e figuras públicas que tentam exercer
alguma diferença e chamar atenção
aos problemas, etc. Ao fim, resta a sutil sensação
de enganação, de algo que surge como um
chamariz para aproveitar-se do nome do geógrafo
falecido em 2001 e entregar algo completamente diferente.
O bruto da entrevista e das conferências filmadas
teria sido muito mais interessante, e definitivamente
muito mais ousado. Como está, com esse nome,
Encontro com Milton Santos aparece como nada
mais, nada menos do que um filme-fraude, feito por alguém
que gosta mais de slogans do que de idéias.
Se Encontro com Milton Santos é um documentário,
a única coisa que ele documenta é como
um ideário cheio de clichês e palavras
feitas pode matar o pensamento.
Ruy Gardnier
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