ENCONTRO COM MILTON SANTOS OU
O MUNDO GLOBAL VISTO DO LADO DE CÁ

Sílvio Tendler, Brasil, 2006

No fundo, no fundo, o título deste filme de Sílvio Tendler não condiz com o que é apresentado nas imagens oferecidas ao espectador. Ou até é, mas de maneira bastante parcial: o filme se constrói como uma espécie de partida de pingue-pongue, em que a cada tacada de um jogador Milton responde uma tacada do jogador Silvio. Um jogador, Milton, tenta com suas palavras evoluir um estilo especulativo, que entre agressividade e serenidade tenta compreender e responder com idéias novas (se verdadeiras ou falsas, aqui não cabe responder) às questões que o presente político/cultural do mundo apresenta. O outro, sendo ao mesmo tempo o juiz da partida, responde com imagens e concatenação de assuntos e procura ilustrar o que é falado a partir de insights "originais" – originais no sentido de que buscam evoluir aquilo que é dito pelo primeiro jogador. O problema é que ao passo que um jogador utiliza o raciocínio, o outro só utiliza frases feitas e clichês intelectuais de uma certa esquerda que teima em não se atualizar há 40 anos, como se nada tivesse acontecido no terreno das idéias (mesmo as de esquerda, mesmo as de esquerda revolucionária) desde Frantz Fanon. Resulta que num determinado momento vemos frases e argumentos de Milton Santos que no mínimo dão no que pensar, mas em seguida somos bombardeados por montagenzinhas de efeitos e artifícios retóricos que conceitualmente mal se colam uns com os outros, ou que descaradamente copiam filmes recentes como Memórias do Saque e A Corporação sem nem se aproximar da construção mais sólida de argumento – ao menos, da inscrição das afirmações bombásticas numa documentação mais extensa e embasada – que esses filmes fazem, ou então interlúdios veementes-engraçadinhos requentados que se aproximam em tom dos filmes de Michael Moore.

Em Encontro com Milton Santos, o que mais incomoda nem é essa maneira irritante de diluir a fala de Milton Santos na agenda das lutas políticas mundiais – especialmente as midiáticas, as que "são assunto" – dos últimos anos, mas a aparente desenvoltura com que passa pelo desenvolvimento das idéias e chega às conclusões que são, sempre, generalizantes, rasas na visão e, pior de tudo, jogadas todas no mesmo barco como se tudo fosse a mesma coisa, revelando enorme displicência em relação à inteligência. No fundo, o filme parte de uma série de depoimentos picotados de Milton Santos para dar vazão a uma colagem de todos os clichês do que é in dentro do cenário da política globalizada: críticas ao processo de globalização, ao consumo, ao crescimento das injustiças, à exploração da África e dos outros povos da América Latina, elogio aos movimentos políticos recentes (Sem-Terra, Argentina, Bolívia), ao esforço da mídia independente, aos intelectuais e figuras públicas que tentam exercer alguma diferença e chamar atenção aos problemas, etc. Ao fim, resta a sutil sensação de enganação, de algo que surge como um chamariz para aproveitar-se do nome do geógrafo falecido em 2001 e entregar algo completamente diferente. O bruto da entrevista e das conferências filmadas teria sido muito mais interessante, e definitivamente muito mais ousado. Como está, com esse nome, Encontro com Milton Santos aparece como nada mais, nada menos do que um filme-fraude, feito por alguém que gosta mais de slogans do que de idéias. Se Encontro com Milton Santos é um documentário, a única coisa que ele documenta é como um ideário cheio de clichês e palavras feitas pode matar o pensamento.

Ruy Gardnier