O que mais chama atenção no
filme Cidade dos Homens é a sensibilidade aguçada
do diretor Paulo Morelli no tratamento da amizade entre
Laranjinha e Acerola. Partindo da interação entre os
dois excelentes atores (Darlan Cunha e Douglas Silva),
o filme é guiado pela amizade que já havia sido construída
e transmitida na série de TV. Completamente à vontade
em seus papéis, Darlan e Douglas, ou Laranjinha e Acerola,
são a corporificação da cumplicidade e do carinho entre
dois amigos. Somos convidados a viver juntos, como
que íntimos, suas aventuras e desventuras, justamente
no momento de transição da pré-adolescência para a
fase adulta (emblematizada pelo aniversário de 18 anos
de ambos). O momento de auto-afirmação passa pelo olhar
terno de Morelli, que é perspicaz o bastante para deixar
claro que não são os 18 anos que determinam a formação
de um jovem. Para tal, aproveita este gancho, ao explorar
as experiências vivenciadas (saída de casa, busca de
origens, relacionamentos amorosos, colocação profissional),
para demonstrar os processos de crescimento e descobertas
que perpassarão as formações dos dois garotos. Se outrora
pudemos acompanhar o crescimento das duas crianças
em meio à pobreza e a violência, agora podemos ver
seus desdobramentos e continuidades, em um tratamento
que privilegia o sensível.
Com a consolidação dessa maturidade por parte de Laranjinha e Acerola, vêm à necessidade
de se reforçar as origens. Assim, Laranjinha parte em busca do pai que, desde
os tempos da série, teve vontade de conhecer. O primeiro impacto, entretanto, é deparar-se
com a falta de informações, com o medo da frustração, com o esquecimento da família
e com as descobertas ingratas. No entanto, a determinação (e teimosia e coragem)
do garoto o faz querer passar a limpo as histórias vagas e sombrias que permeiam
a figura do pai. Quando finalmente o encontra, é reconhecido como filho, mas
rejeitado. Talvez não fosse o momento da acolhida. Mas o carisma e a vontade
de Laranjinha transpassam a barreira de isolamento que se coloca entre os dois.
Contando com a (incrível) ajuda de Acerola, que faz pesquisas e investigações
para o amigo – como a primeira ida à prisão – Laranjinha acaba por lentamente
conquistar o pai, seja nos pequenos momentos, seja fazendo com que ele assine
sua certidão de nascimento, ato legitimador do reconhecimento do filho. O futebol
que jogam juntos é emblema desta relação. Sozinhos em quadra, com uma bola velha,
os dois jogadores procuram se conhecer, examinam os passos do adversário, tentam
driblá-lo e dominá-lo de alguma forma. Nesse processo de descoberta, os dois
percebem a sintonia que há entre eles. Aos poucos, o confronto cede espaço à afetividade.
O futebol então se transforma no momento de comunhão entre pai e filho.
Neste ínterim, ocasionado pelas diversas e inesperadas circunstâncias da realidade,
Laranjinha e Acerola acabam por se afastar, seja pela obrigatoriedade de abandonarem
o morro, seja pela delicada relação que se coloca no triângulo formado com o
pai. A sugestão da traição de Heraldo, pai de Laranjinha, que culminou no assassinato
do pai de Acerola provoca um abalo na relação de amizade entre os dois. Paulo
Morelli, no entanto, na mesma medida em que parte de um conflito narrativo que
coloca os personagens um contra o outro, trabalha com sutileza essa relação de
amizade. Ainda que mal desenvolvida, a história ocorrida entre os pais dos protagonistas
abre espaço para o sentimento de dúvida por parte de Laranjinha. Ele se divide
entre o pai (o novo) e o amigo (o passado, o estar em conjunto). Suas escolhas
não são eliminatórias e ele tenta, de todos os modos, a conciliação dos pólos
afetivos. Até que parte de casa para o encontro com o amigo, quando sabe que
este está sujeito ao tráfico e às guerras nos morros.
Em Cidade dos Homens a violência não aparece como único elemento definidor
de tudo que rege a vida dos personagens. Sua presença é marcante, evidentemente,
mas não se coloca acima de tudo, ganhando importância demasiada, nem é vista
como temática central. Ao mesmo tempo, também não serve como pano de fundo para
o relato das histórias de Laranjinha e Acerola. Há uma imbricação espontânea
das trajetórias individuais com a realidade que se apresenta. A violência é parte
do cotidiano deste meio recortado. Portanto, ela está acoplada e enraizada na
trama narrativa. Ao contrário de Cidade de Deus, em que a violência se
sobrepunha e chamava a atenção para si, em Cidade dos Homens, o morro,
os traficantes, as drogas, as guerras, a violência, são vistas com espontaneidade,
sem deixarem de ser assustadoras. Paulo Morelli se esguia do “olhar de cima” e
de uma compreensão sociológica. O diretor parece não querer comprovar a existência
desse universo, já “descoberto” em Cidade de Deus. A sedução pelo poder
e pelo dinheiro proporcionados pelo tráfico (expressas em Caju) é contrabalançada
com o afastamento de Laranjinha, por exemplo. Se o primeiro se envolve neste
universo real (ou idealizado), o segundo se afasta por não se identificar. Este
duplo, entretanto, não é conflitante e provoca no espectador a necessidade de
tomar partido ou de compreender um a partir do outro. Os personagens marcam suas
existências pendendo entre o estereótipo (existente) e o individual (com suas
sensibilidades e particularidades).
Há um fato determinante na trajetória de Cidade dos Homens: a existência
(e propagação) de Cidade de Deus. Não por o filme retomar questões já ali
existentes, ou por se infiltrar no mesmo espaço, com os mesmos personagens, mas
porque Cidade dos Homens é assimilado a partir de um condicionamento com
a estética e o tratamento já utilizados no filme de Fernando Meirelles. Se por
ora falamos que Paulo Morelli consegue se desviar do “olhar de cima”, sabemos
que há elementos de composição que poderiam nos direcionar a esta leitura. A
clara oposição de cores que há no filme, diferenciando brancos e pretos com muita
evidência, ou o brilho reluzente dos corpos negros e nus, ainda existem aqui
com o mesmo efeito dramatúrgico. A necessidade de salientar o que já é claro,
deturpando a mistura de cores e raças é, no entanto, amenizada pela familiaridade
com este tratamento estético. Portanto, mais do que nos prendermos à já batida
e comprovada crítica feita (com razão) a Cidade de Deus e sua obsessão
pela estética forjada, podemos ver Cidade dos Homens para além da imagem.
E certamente compartilhar das afeições entre as pessoas que o filme proporciona
pode ser o caminho mais gratificante, pois é nesse momento que a sensibilidade
consegue ultrapassar a camada maquiada e promover a emoção a partir das relações íntimas
e delicadas entre as pessoas. Bonitas e, muitas vezes, sutis.
Entretanto, é preciso fazer esforço para contornar a espremeção narrativa do
filme. Condensar uma série de televisão em 2 horas é evidentemente impossível.
Mas, se escolhermos um recorte específico (ou um plot narrativo) e não
nos desvencilharmos de todo o mundo que ele carrega, também não se chega a lugar
algum. È aí que Paulo Morelli falha: ao querer abarcar de maneira contundente
todos os elementos que atravessarão (ou atravessaram) os caminhos de seus protagonistas.
Se há essa sensibilidade natural (endossada, sim, pelas imagens de arquivo da
série),
não há necessidade de se condensar e justificar os elementos narrativos. Assim,
há seqüências constrangedoras, como a que Laranjinha e Acerola conversam na praia.
Instala-se a questão do pai – presença e ausência. Para Laranjinha a busca por
um. Para Acerola, a necessidade de se assumir como pai de seu bebê. O
diálogo é claramente
construtivo, no sentido de querer estabelecer pontos de partida para futuros
acontecimentos (narrativos).
Há momentos que não precisam de maiores explicações. A saída forçada da tia de
Madrugadão e Laranjinha do Morro da Sinuca é mostrada com muita acuidade. Antes “mãe” de
todos, acolhedora, compreensiva, mas também dúbia em relação ao tráfico e a violência
(enraizada na sua família), ela senta sozinha no meio fio, após deixar pra trás
uma vida construída para os filhos. São estes, ao mesmo tempo, que provocam sua
fuga. A disputa entre Madrugadão e Nefasto é parte integrante do todo narrativo.
Sem tiros na mão ou seqüências engraçadinhas, Cidade dos Homens não tenta
mostrar o funcionamento de um morro carioca. Parte de pequenos momentos (que
se extrapolam, por vezes culminando em guerras, que se espalham pelo Rio) para
pensar a inserção individual neste universo, gerador da divisão entre a proteção
e a insegurança, o tráfico e a pobreza, a polícia e os bandidos. Os personagens
de Cidade dos Homens estão sempre na divisa conturbada dos duplos existentes.
Quando o morro deixa de “ter um dono”, como diz Laranjinha, a situação fica flutuante.
E se parece ser caminho para o novo (mais esperançoso) é também espaço para o
incerto (o “mal” que pode se instalar).
Entre idas e vindas – marcadas pelos saltos de um morro a outro –, o (des)apego
com o espaço (e muitas vezes com o próximo) se apresenta sobrepujante, sem deixar
escolhas. Em Cidade dos Homens, e para Paulo Morelli, no entanto, os contornos
são possíveis: a crença no novo, presente entre as mãos dadas, e a amizade e
o cuidado (o olhar afetivo), acima de tudo.
Raphael Mesquita
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