POSSUÍDOS
William Friedkin, Bug, EUA, 2006

A Topografia dos Sentimentos

A crença cinematográfica de William Friedkin se apresenta a partir de duas proposições bem simples:
 
1) A imagem cinematográfica encontra seu valor na superfície.

2) Se existe alguma profundidade dentro dessa imagem chapada, ela se dá pela forma como os sentimentos que desperta se disseminam por contágio.

É um cinema cuja lógica tem de ser física, absurdamente literal e materialista. Se há algo que sempre nos desconcerta em filmes como Operação França, Comboio do Medo, Parceiros da Noite ou Viver e Morrer em Los Angeles é o que estes filmes têm de um cinema de instalação que nos coloca num ambiente e a partir daí opera de maneira a explorá-lo diante do olhar do espectador num processo de abertura, em que tudo que estes universos despertam acaba sendo aos poucos dissecado pela câmera. Friedkin é uma espécie de cineasta geólogo cujos filmes se constroem no encontro de três operações topográficas que correm ao meio tempo: a da imagem plana, a do ambiente da ação, a dos diversos sentimentos e recalques que existem perdidos no ar.

Os dois planos iniciais de Bug apresentam com incrível concisão este projeto estético.


Primeiro
uma imagem deslocada, retirada já do terceiro ato, dentro do gosto de Friedkin de lançar diante do espectador algo inexplicável e desorientador.  Está ali estabelecido tanto um gancho dramático – uma garantia ao espectador incauto de que a calmaria inicial logo será interrompida – quanto uma estratégia estética, o gosto do cineasta por um certo tipo de imagem, ao mesmo tempo chapada e ampla.













O movimento de câmera que se segue nos entrega toda a mola propulsora que guia o projeto estético do filme. Enquanto a imagem se aproxima do motel em que quase toda ação se passa, recebemos no meio do que à primeira vista é só um exercício de estilo toda uma declaração de princípios. Pode não estar claro naquele instante, mas quando Bug acaba percebemos tudo que já estava apresentado ali: que a imagem cinematográfica existe a partir de um desejo de mergulhar nas superfícies, que tudo que é posto em cena tem um valor em si mesmo, que este é um filme orgulhosamente teatral na sua construção, que o que está em jogo aqui são os sentimentos que transpiram no ar.

Bug se diferencia de outros filmes de Friedkin, pelo que tem de entrega, pela maneira como filtra seu formalismo através de um trabalho mais direto com personagens, um filme menos centrado em atacar diretamente o espectador. O filme jamais funcionaria sem o excepcional trabalho da dupla de atores centrais (Ashley Judd e Michael Shannon) que se equilibram dentro do texto pantanoso. O princípio narrativo de Bug é a idéia de que a paranóia não passa de um desejo de ficção, logo a cada a ato o filme adentra mais no artifício e no comportamento patológico. Em suma, quanto mais Bug avança, mais adentra o absurdo; o triunfo de Judd e Shannon é que não há um instante em que o filme não pareça exato no que descreve. Bug é um filme de atores, mas ao contrário do que a expressão costuma sugerir, estamos bem distante de algum tipo de exercício narcisista voltado mais para afirmar a suposta excelência dos intérpretes.

Essa intensidade encontra seu complemento nas imagens de Friedkin. Nunca um cineasta discreto, Friedkin gosta de descrever sua estética como uma indução de imagem documental. Isso fala muito sobre o peso que corpos e objetos de cena e locações têm a cada imagem, mas esconde o artifício que acompanha. Porque o cineasta é antes de mais nada sempre um brilhante técnico a brincar com seus elementos (pensemos aqui no sofisticado trabalho de banda sonora, por exemplo) e Bug já a partir dos seus primeiros planos se revela um tour de force para seu cineasta tanto quanto para seus dois atores. Mas não se trata de um tecnicismo barato meramente exibicionista; pelo contrário: a exuberância técnica de Friedkin acentua o que Bug tem de intenso filme de entrega. Seu artifício é parte essencial do projeto sentimental-materialista sobre o qual o filme é erguido.

Bug é também um filme político, mas não no sentido que vem se afirmando. No cerne do processo paranóia de Bug está a crença do personagem de Shannon – um ex-militar – de que ele não passa de uma cobaia para experimentos do governo. Alguns críticos foram rápidos em ligar esta idéia e a atmosfera geral do filme como sinais de que estamos mais uma vez num filme crítico ao atual governo americano. Claro que Bug reflete a atmosfera em que foi feito, mas é bem cedo para concluir que William Friedkin passou por alguma conversão, ele permanece um dos mais claros e articulados cineastas da extrema direita americana. Pensar o contrário é ignorar a profunda ambivalência para com a paranóia de Shannon, tanto a maneira como ele a leva sério como uma demonstração de um sentimento de desespero, mas ao mesmo tempo quanto a acha risível como expressão política (pode-se tranqüilamente ver Bug como uma sátira aos thrillers paranóicos que pipocaram à época do auge crítico-comercial do cineasta, apesar de que tal leitura limita-se, e muito, às belezas do filme).

Onde se encontra o político, então? Como sempre em Friedkin, no mero fato do filme existir. De ser produzido como foi, fazer um filme a toque de caixa num quarto de motel vagabundo no meio do nada é para seu cineasta um ato político-libertador. Após uma década de parceria com a Paramount, onde ao mesmo tempo ele podia desenvolver com alguma calma seus projetos a despeito do retorno financeiro quase nulo (sua esposa era a chefe do estúdio) e se envolvia invariavelmente em longas dores de cabeça na hora da montagem, com resultados que variaram do cineasta perto do seu melhor (Caçado) e do seu pior (Jade), Bug é um retorno às origens de Friedkin, aos seus dois primeiros filmes de fato, The Birthday Party e Os Rapazes da Banda, ambos adaptações teatrais de estética e forma de produção bastante similares às do novo filme. Para cineastas da geração de Friedkin que ainda desejam afirmar seu projeto de cinema, um filme como Bug parece o único caminho e este novo trabalho do diretor tem um desejo confrontador de afirmar isso, rivalizado apenas pelos trabalhos recentes de Brian De Palma.

Mas Bug se afirma mesmo dentro do seu desejo materialista de dar massa à dor e paixão que transcorre naquele espaço. Uma história de amor dirigida por um cineasta brutal e físico que por isso mesmo se torna o encenador perfeito de tal material. O peso de Bug se multiplica em parte pela nudez emocional que ele exibe, mas muito porque o teor literal, quase exploit-experimental e pseudo documental, carrega a imagem de Friedkin como poucas vezes mesmo dentro da sua rica obra. Bug é um filme em que a dor reside não só na carne, mas no ar, transpirando em cada grão da película. O projeto de exploração espacial do cineasta é redimensionado na tradução mais concreta do conceito de contágio que animara diversos dos seus filmes anteriores. Um filme assustador, sem dúvida, mas não pelas razões esperadas.

Filipe Furtado