A
moral de um olhar
Jean-Claude Brisseau, ao longo
de toda a sua obra, sempre foi um cineasta marcado por
desencontros de olhares; entre espectador e obra, o
cineasta e seu público – não é a mesma coisa –, o filme
e seus objetos. Não é logo muito chocante observar que
Os Anjos Exterminadores
seja ele próprio todo erguido a partir de um grande
desencontro. Trata-se de uma oportunidade rara nos nossos
circuitos de encontrar esta figura única do cinema francês
contemporâneo e temo que ela esteja fadada a apenas
mais um desentendimento. Os Anjos Exterminadores talvez seja um dos filmes mais difíceis a
atracar por aqui recentemente, justamente na medida
em que é um dos mais profundamente simples. É também
talvez o mais potente filme político a chegar a nossos
cinemas este ano. Podemos começar fazendo três observações
rápidas sobre o cinema de Jean-Claude Brisseau:
I) Todos os seus filmes versam sobre o poder.
II) Ele é o maior cineasta do século XIX
III) Ele é o mais sincero dos cineastas.
Iniciemos pela provocação do século XIX. Não há nenhuma
ironia ou crítica nessa observação. Trata-se antes de
constatar que mais do que a maioria dos cineastas, há em Brisseau muito do que poderíamos chamar de pré-moderno.
O cinema de Brisseau, e mais do que nunca neste Os Anjos Exterminadores, por vezes nos
dá a impressão de estar diante de um filme rodado em
1881 e simplesmente perdido no tempo. É questão de reconhecer
que a arte de Brisseau tem mais a ver com Balzac ou
Flaubert do que com Godard ou Cocteau. Apesar de tudo
que existe de confessional e metalingüístico em Os
Anjos Exterminadores, nada poderia estar mais distante
do tipo de filme-processo que geralmente temos em mente
quando fazemos uso desta sempre questionável expressão
“cinema moderno”. Os
Anjos Exterminadores é um filme de dramaturgia,
um filme onde a expressão mise en scène
existe para denominar como o cineasta pinta com luz
de maneira a criar um espaço cênico que reflete um drama
e uma moral.
Drama e moral. Duas palavras algo pesadas que a discussão
mais séria do “cinema moderno” procura evitar, mas palavras
necessárias quando falamos de um filme como Os
Anjos Exterminadores. É aqui que esta herança século
XIX de Brisseau fica evidente. Porque Os Anjos Exterminadores acredita no seu
potencial dramatúrgico e se
entrega a ele, leva ao limite as possibilidades que
seus sentimentos e personagens levantam. Eis aqui um
pequeno conto sobre um artista destruído por sua curiosidade
e estupidez que poderia ser uma novela do século retrasado;
como filme contemporâneo, ele dura o tempo exato para
explorar as possibilidades materiais que seu drama permite.
Porque este cineasta tão fora de moda simplesmente não
escreve um livro, o leitor pergunta? Porque é um materialista,
oras. Porque acredita no corpo, porque só uma imersão
direta neste drama permitirá a ele se expressar. O que
não o impede de acreditar numa série de elementos que
a maior parte dos cineastas há muito decidiu ignorar.
A questão da moral é mais complicada na medida em que
Os Anjos Exterminadores lida com um tema que nossos preconceitos tendem
a esperar vir desacompanhado dele (ou então a surgir,
como por vezes no cinema americano, com aquela hipocrisia
à Cecil B. DeMille). Pois bem,
Os Anjos Exterminadores
é um filme recheado de longas seqüências onde belas
mulheres nuas se masturbam diante das câmeras ou se
agarram em gráficas cenas de lesbianismo, que ao mesmo
tempo é támbém obra de um cineasta profundamente católico
que nos leva numa odisseia moral de genuíno poder redentor.
Um filme sobre graça à sua maneira única e demente.
E sim, sem nenhum instante puritano. Não é nenhum acidente
que Brisseau escale Frederic van den Driessche, que
antes fizera o papel do objeto de desejo que se materializa
como por milagre no Conto de Inverno (1992) de seu amigo Éric Rohmer. Claro que também encontraremos esta sobreposição,
por exemplo, em Rossellini
(e na sua contraparte protestante King Vidor), mas este
encontro tende a se perder diante do longo entulho em
forma de teorização sobre neo-realismo que existe entre
nosso olhar e seus filmes. É uma qualidade que também
encontramos em certos autores franceses como Louis Ferdinand
Céline (com quem Brisseau tem muito em comum). Essa
instância religiosa que emana da tela tem muito a ver
com o modo como Os
Anjos Exterminadores nos encanta e redime, com a
experiência única que o filme representa.
Como muitos dos livros de Céline, Os
Anjos Exterminadores será visto como um filme rísivel
por platéias que se crêem sofisticadas. A piada, como
habitual, será sobre elas. Brisseau é simplesmente um cineasta que acredita
sinceramente em cada imagem e sentimento que produz.
Não há um momento de cinismo em sua obra. Ele é mais
sofisticado que este espectador, porque sabe que pela
força de suas habilidades de encenador pode dar forma
a toda a experiência dramática que seu material exigir;
e se isto significa se afundar em sequências que o senso
comum denomina ridículas, que seja; porque em suas mãos
elas serão sempre sublimes. E é aqui que o lado literário
e o religioso de Brisseau casam com essa entrega sincera.
Os Anjos Exterminadores
assusta porque é um filme que acredita em dar corpo
àquilo que preferimos manter à
margem, porque ao fazer isso é capaz de nos oferecer
o transcedental. Para vê-lo, somente precisamos de olhos
inocentes. Com todo o peso que o cineasta coloca sobre
cada uma das suas imagens belamente construídas (e raramente
vemos um filme onde cada quadro, cada feixe de luz seja
controlado com tamanho cuidado), elas nos atingem com
sua pureza, com o que elas têm de imaculadas.
Os Anjos Exterminadores
é um potente filme político na medida em que, como toda
a obra de seu autor, é um filme sobre o poder. O poder
do corpo feminino sobre o olhar, o poder do cineasta
como figura de autoridade diante de suas atrizes, e
a crônica do desentedimento dessas duas esferas de poder, que resulta numa
mútua brutalização, onde nenhum
dos participantes sai impune. Se algo diferencia Os Anjos Exterminadores do seu já excepcional filme anterior Coisas Secretas, é que naquele filme ainda
tínhamos uma estrutura de gênero onde o encontro do
drama de formação à Balzac com o mais vagabundo thriller softcore permitia as
suas cenas de sexo serem consideravelmente excitantes,
antes que o cineasta puxasse o espectador para seu lado
mais sombrio, em que a dinâmica do poder é dissecada.
Não temos tanta sorte em Os
Anjos Exterminadores (o maior dos dois filmes),
onde o peso do olhar de Brisseau já esta estabelecido
desde o primeiro plano. O que está em jogo nas suas
longas cenas de sexo é uma mise
en scène de projeções, um colapso entre corpo e olhar, entre
atriz e cineasta. Brisseau pode até estar usando o filme
como oportunidade para tocar em algo que se tornou ainda
mais caro para ele desde que enfrentou longas complicações
legais não tão diferentes das de seu alterego em Os
Anjos Exterminadores, mas o que está no cerne das
cenas de sexo tem pouquíssima relação com pornografia
ou mesmo desejo. É algo mais direto e inerente ao processo
cinematográfico como um todo, mas também algo que se
reproduz de maneira muito mais ampla em nossa experiência
moderna. Os Anjos
Exterminadores está todo contido neste duplo olhar
de van den Driessche, olhar que comanda e absorve, ao
mesmo tempo produtor e consumidor, assim como estas
cenas de sexo existem como elas mesmas e seu próprio
documentário. A tragédia de Os
Anjos Exterminadores reside justamente na impossibilidade
de equilibrar estas duas projeções, estas duas formas
de poder, estes dois estatutos da modernidade. Não se
pode ser consumidor e produtor
impunimente; cedo ou tarde se pagará um preço, mesmo
que Deus ou a criação artística possam redimir o cineasta,
e para aqueles que acreditam que o filme não passa de
uma elaborada apologia, vale apontar que o mesmo não
poderá se dizer das suas atrizes, que não só são aquelas
que a imagem expõe, mas também aquelas que no fim pagarão
o preço maior.
A força das imagens de Brisseau se localiza justamente
na sua capacidade de redimir este dilema: na maneira
que consegue dar corpo a estas duas esferas (o olhar
e o corpo). Dar
corpo a um olhar, eis um desafio a que apenas os maiores
cineastas se lançam. E Jean-Claude Brisseau o vence com sobras. Os Anjos Exterminadores nos encanta por isso, pela sua ambição, pela
sua simplicidade, visão e perspicácia; um filme maldito
talvez, condenado ao escárnio pela maioria dos cinéfilos,
mas no escuro da sala de cinema diante do poder de suas
imagens, só podemos celebrá-lo como mais do que um filme,
uma experiência única.
Filipe Furtado
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