RESNAIS E OS FLOCOS DE NEVE NO ESTÚDIO

"Não, eu não acreditava muito no choque. Teria acreditado se estivesse em 1960, quando diante de um raccord estranho, a sensibilidade do espectador era tocada. Como a linearidade foi rompida em todas as suas formas nos últimos dez anos, não acredito que possamos criar um efeito de choque no espectador."1

Em A Vida é um Romance (1983), duas histórias passadas em um castelo em tempos distintos – uma no presente, outra quase um século antes – , sofrem a interferência de uma outra dimensão, cuja duração no filme é muito menor que a menor das histórias (a do passado), mas que é decisiva para o andamento da narrativa. Trata-se de um reino de conto de fadas, imaginado por crianças e aparentemente situado debaixo do castelo, que sofre um ataque de forças monstruosas, mas que reage e termina por reimplantar o amor no coração das pessoas. O filme vem logo depois de uma das obras mais intrincadas e intelectuais do diretor, Meu Tio da América, no qual as intenções sarcásticas estão camufladas num estudo visual das experiências do professor Laborit com o comportamento humano. Grosso modo, poderíamos dizer que a fase dos jogos formais e dos "ratinhos de laboratório" estaria encerrada, para dar lugar a uma outra fase, mais ligada às razões do coração. Finalizada a fase do choque com a quebra da linearidade, e também de constantes buscas temáticas em fontes literárias ou científicas, como em Stavisky (de 1974, com roteiro de Jorge Semprun, repetindo a parceria de A Guerra Acabou, de 1965), Providence (de 1977, com roteiro de David Mercer) e Meu Tio da América (de 1980, roteirizado por Jean Gruault, com base nas teorias de Laborit), além das parcerias mais conhecidas com Marguerite Düras (em Hiroshima Mon Amour, de 1959) e Alain Robbe-Grillet (em O Ano Passado em Marienbad, de 1961). A montagem agora serviria à cena, e somente a ela, não mais às experiências estéticas ou às investigações dos fenômenos da mente. Com A Vida é um Romance, que novamente teve a colaboração de Gruault, chegou a hora de inserir naturalmente na trama, de modo a tornar mais clara a relação entre os personagens, uma outra dimensão, a dimensão do amor.

É facilmente perceptível essa mudança, mas seria engano considerar que Resnais estaria renegando sua fase pregressa, ou mesmo optando por caminhos bem diferentes. É preferível a idéia de que o diretor tenha encontrado uma nova forma para chegar ao espectador. Depois dos complicados jogos formais, dos trabalhos sobre a memória, e das tentativas de se lançar dentro de um universo infilmável, por meio de imagens fragmentadas por uma montagem não-linear e de quebra-cabeça, vem um mergulho nas emoções dos personagens, um desejo de transformar em imagem a menor insegurança, o menor temor, mas sempre tendo em vista o caminho que se deve percorrer até encontrar o amor.

A mudança, então, não foi tão drástica. Modificou-se o tom, e um tanto o modo de percorrer o mesmo caminho. Porque, já em Marienbad, há o amor inatingível em meio aos jogos fugazes. Há sempre um ideal romântico, uma busca pela emoção crua e não calculada, um jorro de afeto represado, e quase sufocado pelo trabalho formal. Assim também acontece em Muriel (1963), no qual temos a impressão de que nos foi sonegado tudo o que não é o ápice de cada momento. A vida inatingível, fragmentada, um horizonte distante de emoções represadas. Em Hiroshima Mon Amour (1959) não era diferente, com o intenso amor entre um japonês e uma francesa se desenvolvendo por entre as camadas formais.

Caminho fascinante o percorrido por Resnais. Como se até 1980 a estrada fosse tortuosa, e dela saíssem outras, que não levassem a lugar algum. E a partir de A Vida é um Romance essa estrada se tornasse reta, sem imbricações, mas percorrida por personagens ainda mais densos e complexos. Em outras palavras, o cinema de Resnais passou a ser menos complicador, e ainda mais profundo. Pois o que em seus filmes era material bruto se lapidou em uma gama de possibilidades, reunidas todas, como sinaliza o refrão entoado no filme, em torno do "Amor! Amor! Amor!".

Não se trata de afirmar que o cinema dele se engrandeceu depois que deixou de ser moderno a todo custo. Nem que ficou menos inventivo por ser aparentemente mais simples. Na verdade, seu cinema mantém alguns traços e preocupações formais da época da nouvelle vague. A encenação presente em seus filmes, por exemplo, seja com Sacha Vierny, Ricardo Aronovich, Bruno Nuytten, Charlie Van Damme, Renato Berta ou Eric Gautier na direção de fotografia, nunca foi menos que primorosa, mesmo que picotada por experiências de fluxos para simular a ação da memória e dos pensamentos. Mesmo em Marienbad e Muriel, e também no seu primeiro longa, Hiroshima Mon Amour, existiu sempre um cuidado muito grande com a posição da câmera, a distância entre a lente e os atores, a movimentação deles dentro do rigoroso espaço delimitado pelo enquadramento. Mas havia o experimento, a necessidade constante de fragmentar o encenado, como meio de investigar e externar as imagens produzidas pela mente.

A fragmentação continua até hoje. Mas parece dissimulada, em perfeita harmonia com a narrativa. Não é mais uma fragmentação do choque, do combate ao academicismo. É uma fragmentação que se esconde por trás de uma encenação sublime, que deve muito ao teatro, origem da mise-en-scène. Exemplo perfeito é Mélo, uma obra-prima nem sempre compreendida. Os elementos cinematográficos estão todos lá, para quem quiser ver. No entanto, existe um respeito muito grande pelo teatro, pelo que o cinema pode dele apreender. Mélo é o filme chave para se entender essa operação realizada por Resnais, de tirar do teatro o essencial, e com isso iluminar o que no cinema também é essencial. Se temos uma câmera, e atores interpretando, temos então teatro + filmagem = cinema puro. O filme, baseado em peça de Henry Bernstein, começa com uma cortina vermelha que não se abre. O cinema entra com um artifício de laboratório, uma fusão. Fusões acontecerão diversas vezes no filme, assim como elipses, lentos travellings de avanço para se centrar em um único personagem, além da volta da cortina vermelha por duas vezes, dividindo o filme em três atos: flerte, consumação e desgraça. Ou procura, desencanto e superação. A luz, como em quase todos os filmes do diretor, incide, com maior ou menor força, só nos olhos do personagem, na frente ou no fundo da cena, ou em um único objeto, sempre fortalecendo uma situação específica, marcando a intensidade das emoções.

Nos cenários artificiais, o palco das emoções incertas

"... em estúdio é-se dono da luz. É a liberdade. (...) Detesto o sol, é um refletor que não se pode deslocar."2

Artifício é uma palavra incerta para Resnais, ainda que seja bem adequada. Do artifício, o diretor retira a verdade de seus personagens. Nos cenários feitos em estúdio, ele realiza com força a arte da construção de um mundo, sem medo de assumir que a luz só está ali porque ele assim escolheu, sem a necessidade de se guiar por uma fonte natural e factível de luz – uma janela ou um abajur, por exemplo. Ela está ali para destacar um fragmento inesperado da cena, uma parte do corpo que tudo entrega apesar de tudo querer esconder, como o olhar de desespero do marido diante da dúvida, no último ato de Mélo.

O melhor do cinema de Resnais se encontra na que pode ser considerada a trilogia das emoções incertas, que se inicia com A Vida é um Romance – um dos poucos, como Providence seis anos antes, que foram filmados bastante em exteriores –, passa por L'Amour à Mort (1984), e termina com Mélo, em 1986. Nesses três filmes se estabeleceu o núcleo de atores que acompanham o diretor até hoje: Sabine Azéma, Pierre Arditi e André Dussolier. Esses três atores magníficos parecem se revezar numa eterna ciranda amorosa, sendo que a atriz é sempre o amor de um deles – caso de A Vida é um Romance (porque Dussolier só aparece na história do passado) –, ou dos dois – caso dos dois outros filmes da trilogia. Em tais jogos amorosos podem ser observadas as mais ricas nuances sentimentais, as mais diversas reações, os mais nobres e os mais corriqueiros impulsos.

Em A Vida é um Romance há o amor que termina por triunfar, com o reino imaginário influenciando e abrindo os corações de todos no castelo. Mas há também os flertes que nunca se completam, a carne de todos prestes a explodir de desejo, num ambiente propício para isso, ainda que todos pareçam se conter. É um filme perfeitamente equilibrado em suas partes, em que o que era aparentemente desconexo está em sintonia, e o que parece em sintonia se desconecta. Basta ver como cada personagem feminina reage à presença do personagem de Vittorio Gassman, brilhantemente escolhido como o centro desestabilizador de tudo. Ou perceber em Pierre Arditi a criança que se manifesta nas brincadeiras mais inconseqüentes, como na hora de cumprimentar a recém-chegada Azéma, por quem ele irá se apaixonar, sem ser correspondido.

L'Amour à Mort tem a morte como elemento de desequilíbrio. Azéma, quando perde seu marido Arditi, se fecha para o mundo, mesmo para as investidas de André Dussolier, que é casado, mas pleno de vida. A morte aprisiona a personagem, vítima de um amor que a impede de continuar vivendo. A neve cai entre um fragmento e outro, no que talvez seja o filme mais incômodo do diretor. Incomoda porque nele a neve funciona como um atenuador, e ao mesmo tempo como um aviso de que a montagem continua ali, a comandar os excessos, a policiar o manancial de emoções prestes a se quebrar. Talvez a opção de Resnais pela fragmentação, apesar de ser bem menos incisiva do que em Muriel ou Marienbad, seja um pouco exagerada, o que não impede que se encontre no filme um exercício de encenação como poucas vezes se viu.

Mélo é o filme súmula da trilogia. Entre o fabular de A Vida é um Romance, e o trágico de L'Amour à Mort, se situa a trama teatral e burguesa desnudada deste filme em que o que mais se aplica é a palavra harmonia. Harmonia entre cenários, luzes e cores. Mas também entre os atores que se movimentam como se o mundo coubesse naquele espaço da tela. Como se naquele retângulo mágico se pudessem reproduzir todas as espécies de traições e impulsos ordenados pelo coração. Mélo é acima de tudo um filme que parece afirmar que o cinema não tem como morrer, que os anos imediatamente anteriores, de medo do ocaso das imagens (que chegou a ser vislumbrado, de leve, por Resnais em A Vida é um Romance) chegavam inevitavelmente ao fim. Daí por diante, o cinema, ou um outro tipo de cinema (se acreditarmos em sua morte) se afirmaria, seus laços com as artes que se somam para que ele exista – teatro, pintura, música, literatura, arquitetura – estariam fortificados. Mélo parece reinaugurar o cinema, livrá-lo de uma morte relativa, mas oriunda de uma preocupação verdadeira, ou fazer o seu enterro definitivo para providenciar a ressurreição. Abraça, assim, seus antigos aliados, sem deixar de fazer um cinema aberto ao que tem de novo. Um cinema maíúsculo e renascido. É mesmo um feito o que Resnais nos entrega com Mélo, feito que exigiria muito mais espaço para ser esmiuçado com propriedade. É "a" obra-prima do diretor.

O que vem depois? Mais emoções incertas. A subestimada conexão com os quadrinhos, e com um humor que parece pertencer a um mundo onde balões de diálogo podem conviver naturalmente com atores, e animações fazem parte do mesmo terreno que as pessoas. O mundo de Quero ir Para Casa (1989) foi incompreendido provavelmente porque é um mundo que não se impõe limites, que não se dobra às necessidades de um controle, de um modo de se fazer cinema tido como oficial.

Mas vem também a parceria com Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, que renderia o díptico Smoking/No Smoking (de 1993, e baseado em peça de Alan Ayckbourne, dramaturgo do entre-guerras que também ofereceu a matéria prima de Coeurs), e o inacreditável Amores Parisienses (1997). O primeiro consiste em um filme de cinco horas divididas em duas partes: o "sim" e o "não" à tentação de fumar um cigarro, e todas as decorrências e possibilidades que surgiriam com cada opção. O lúdico tornado filme, o destino transformado em imagético. O segundo é uma brincadeira de inconseqüência apenas aparente, em que todos os personagens só sabem cantar. Geralmente com a voz de outra pessoa. Assim, Edith Piaf aparece quando o general nazista abre a boca. E melodias dominam, em meio às cirandas amorosas que Resnais tanto gosta de explorar. Em Amores Parisienses, o figuraça Lambert Wilson entra para a trupe do cineasta e não sai mais. Sua atuação é invariavelmente um alívio cômico. Não seria estranho se ele um dia afirmasse, como Victor Mature, que fez diversos filmes para provar que não era ator. Mas sua presença nos filmes de Resnais é sempre brilhante. O diretor parece se aproveitar de seu jeito canastrão. Ele desempenha a função desnorteadora e patética nos filmes. Como em Coeurs, em que interpreta um beberrão de falas desastradas, mas inusitadamente simpáticas. Ou em Pas Sur la Bouche (2003), em que ele faz um empresário americano mais próximo de um Jerry Lewis do que de um Alec Baldwin. A comicidade de seus gestos faciais combina perfeitamente com o estilo de humor do cineasta.

Humor afrontador

Esse humor de Resnais parece ter surgido com força apenas em Providence (1977), ainda que no filme anterior, Stavisky (1974), se possa encontrar alguns sinais, principalmente na atuação de Jean-Paul Belmondo. Mas o humor no diretor demora um pouco para se libertar de uma estranheza que parece se manter intencionalmente e com felicidade. Em Providence fica clara essa operação. São tantas as quebras de ritmo, as gags tortuosas, que ficamos nos perguntando se Resnais quer ou não implodir, em seus filmes, qualquer possibilidade de riso. O humor de Resnais parece o de Jacques Tati, temperado com o de Jacques Demy, mas com uma verve buñuelesca que extrapola o conceito de cômico e se aproxima de um estado vertiginoso e onírico.

Mas é num campo bem terreno que esse humor funciona. Assim, Providence parece um filme único, que ao mesmo tempo em que dialoga com uma época, se revela como algo suspenso no tempo. Um filme de E.T., feito por um diretor que parece se divertir com a negação do riso, ao mesmo tempo em que flerta abertamente com ele. Talvez seja necessário se despir de todos os conceitos de humor, desde Max Linder, passando por Jerry Lewis e culminando com Monty Python, para se divertir com o filme. Que essa excentricidade toda não desanime a quem ousar ver ou rever Providence, que é um primor de idéias conectadas propositadamente em desalinho. Um antifilme, se fosse assinado por João César Monteiro.

Resnais também assina o melhor momento do primeiro filme de Jacques Doillon, L'An 01 (1972). Neste filme, existe um mundo sem consumismo, ano 1 da obsolescência da mercadoria, onde todos iriam plantar o necessário para a sobrevivência. Trata-se de um filme irregular do ótimo Doillon, mas que recebe duas seqüências emprestadas de Jean Rouch (o mundo sem consumismo na África) e de Alain Resnais (o mesmo mundo em Nova York). Nesse curtinho episódio em p&b, temos outro exemplo perfeito do senso de humor bizarro do autor de Marienbad. O cômico brota da presença assombrosa dos arranha-céus, do asfalto cinza, do clima de fim de mundo que se observa no centro de Manhattan. Como não poderia deixar de ser, trata-se de uma comicidade ainda mais excêntrica do que a do restante do filme, todo ele pensado como uma peça de humor alegórico e estranho.

Está mais do que na hora de um retorno à sua filmografia, para comprovar que os tempos sisudos não o eram tanto assim, e que o mesmo diretor do quebra-cabeça autista e genial de Marienbad pode expor emoções à flor da pele, e desencontros amorosos com extrema sensibilidade, como em Coeurs. Não é um mundo tão diferente assim, mas é construído com coerência e um desejo muito forte de tirar o máximo que o cinema pode nos dar.


Sérgio Alpendre

1. Alain Resnais, em entrevista de 1983 para Serge Daney e Danièle Dubroux, em Cahiers du Cinéma, nš347, p. 35.

2. Resnais em 1983, em entrevista para Didier Goldschmidt e Jérôme Tonnerre, em Cinématographe nš 58, traduzida por Monique Rutler para publicação em catálogo organizado por José Navarro de Andrade para a Mostra Alain Resnais da Cinemateca Portuguesa, em março/abril de 1992, p. 100.

 

 





A Vida É um Romance (1983)


Mélo (1986)