CONSTRUINDO IDENTIDADES; RESNAIS ANOS 70
Stavisky..., França/Itália, 1974
Providence, França/Inglaterra/Suíça, 1977

Em contraste às décadas anterior (1960) e posterior (1980), durante as quais filmou com uma maior freqüência, os anos 70 se passaram com Alain Resnais dirigindo apenas dois longas-metragens. Stavisky...e Providence. Estes podem não estar situados entre aqueles mais lembrados como marcantes na obra do cineasta. Estão dotados, no entanto, de características marcantes em sua filmografia e, embora guardando entre diversidades temáticas diversas, parecem de alguma forma sempre recorrer a um mesmo tópico: a construção de imagens e identidades.

Providence tem sua narrativa centrada num universo intrincado onde imaginação, memória, delírio e realidade se enlaçam e se confundem a todo instante durante a noite na qual o escritor Clive Langham (John Gielgud) tenta, entre doses de bebida e dores atrozes, criar um derradeiro romance. Em seu primeiro filme falado em inglês, Resnais preserva elementos básicos de sua obra, neste filme que, como outros de sua autoria, reproduz um fluxo de consciência atemporal durante o qual o escritor projeta seus desejos, emoções, sentimentos, transmutando seus familiares – filhos, cunhada, esposa falecida – em personagens de seu romance. As imagens que Clive inventa e reinventa em seu processo de criação delirante transmitem seus rancores e frustrações para com os parentes.

A direção de Resnais concebe Providence como um labirinto de imagens e sombras, onde as características e atitudes dos personagens vão de transmutando ao sabor do rumo que toam as emoções do pai-criador. Resnais, via Clive, vai concebendo uma narrativa que projeta toda complexidade de um processo autoral, e tudo que um autor consegue injetar de mais íntimo nesse processo. Resnais, por sua vez, vai fazer de seu filme uma mistura de sensações não muito lógicas, mas sempre coerente. Não esquece inclusive de banhar Providence em delicado humor e ironia. Preservando uma possível verve de humor britânico inerente ao texto original do dramaturgo David Mercer, mas injetando seu toque pessoal, como viria posteriormente a fazer em Smoking/No Smoking ou Medos Privados em Lugares Públicos, também originados na dramaturgia inglesa. É em Providence no entanto onde o humor um Resnais aparece de forma mais inusitada e desconcertante.

A conclusão do filme vem elevar um pouco mais esse teor de ironia. A meia hora final traz Clive de volta a uma suposta realidade durante a qual recebe a vista dos parentes. E aqueles vistos em sua obra-delírio como raposas cruéis – em especial o filho mais velho Claude (Dirk Bogarde) – aparecem agora como afáveis e cordatos para com a figura paterna decadente. No entanto, além da aparente paz reinante, o que torna o final de Providence extremamente incômodo é a artificialidade na qual ele se constrói, num visual de gritante simulacro de uma pintura impressionista. Resnais faz com que o mundo aparentemente imaginário do delírio noturno de Clive se imponha como mais real que o suposto presente idílico, concedendo ao espectador a sensação de entrada em uma nova ala do labirinto, mesmo ao final da projeção.

Valeu comentar inicialmente Providence para voltar no tempo até Stavisky..., um filme de narrativa mais linear e, à primeira vista, um pouco menos complexo. Acompanha o personagem título, interpretado por Jean-Paul Belmondo, um estelionatário charmoso e carismático, cujas falcatruas acabaram por detonar uma crise financeira na França dos anos 30. Se em Providence temos Claude construindo imagens e identidades para os que estão a sua volta, aqui vemos o personagem título – ou Alexandre como ele mesmo prefere – construindo as mesmas imagens e identidades para si mesmo. Mesmo apresentado através de fragmentos de memórias das figuras que o cercam, o Alexandre Stavisky que transparece é sempre um quebra-cabeças cujas peças seriam alguma faceta daquilo que ele concebe para si em algum momento.

Alexandre vai sempre trabalhar e ser trabalhado num processo cíclico de auto-reinvenção. Alexandre é o – ou um – personagem de Stavisky e vive num mundo ficcional que cria para si mesmo, onde o ato de perder dinheiro é fundamental para sua caracterização como um ser irreal, num contexto histórico de crise política, financeira e de constante transformação (leia-se aqui a Europa no intervalo entre as guerras mundiais e na depressão). Em determinado momento de Stavisky... o personagem é definido como "o arauto da morte de uma era".

Na última colaboração entre Resnais e o roteirista Jorge Semprún, temos o retrato de um contexto histórico apresentado da mesma forma fragmentada e elíptica como se vê o personagem título. Resnais e Semprún retratam de forma brilhante, ancorada em cores expressivas da fotografia de Sacha Vierny, o universo da superfície auto-ficcional de Alexandre em contraponto a uma realidade de turbilhão político representada pela passagem de Trostky pela França, o que já se define desde algumas das primeiras seqüências, numa montagem paralela que alterna a chegada do líder socialista em um carro pelo interior da França, e as imagens de Alexandre descendo pelo elevador de um hotel chique de Paris.

Uma coisa, porém, une Alexandre Stavisky aos personagens de Providence: em ambos os filmes, todos parecem ser prisioneiros de ambientes fora dos quais surgem como algo indefinido. Um processo muito próximo vivido pelos arquétipos de O Ano Passado em Marienbad. Resnais impregna seus filmes com imagens recorrentes do hotel Claridge (Stavisky...) e do palacete (Providence). Nesses espaços específicos os personagens interagem e de alguma forma não sobrevivem à distância de tais espaços. Como a família de Claude que silenciosamente desaparece ao fim de Providence ou Alexandre, que opta pela morte à opção de uma vida na distância e no exílio.


Gilberto Silva Jr.

 

 





O fluxo da memória em Stavisky... (1974)


Os contratempos do criador com
suas criaturas: Providence (1977)