Em
contraste às décadas anterior (1960) e
posterior (1980), durante as quais filmou com uma maior
freqüência, os anos 70 se passaram com Alain
Resnais dirigindo apenas dois longas-metragens. Stavisky...e
Providence. Estes podem não estar situados
entre aqueles mais lembrados como marcantes na obra
do cineasta. Estão dotados, no entanto, de características
marcantes em sua filmografia e, embora guardando entre
diversidades temáticas diversas, parecem de alguma
forma sempre recorrer a um mesmo tópico: a construção
de imagens e identidades.
Providence tem sua narrativa centrada num universo
intrincado onde imaginação, memória,
delírio e realidade se enlaçam e se confundem
a todo instante durante a noite na qual o escritor Clive
Langham (John Gielgud) tenta, entre doses de bebida
e dores atrozes, criar um derradeiro romance. Em seu
primeiro filme falado em inglês, Resnais preserva
elementos básicos de sua obra, neste filme que,
como outros de sua autoria, reproduz um fluxo de consciência
atemporal durante o qual o escritor projeta seus desejos,
emoções, sentimentos, transmutando seus
familiares – filhos, cunhada, esposa falecida – em personagens
de seu romance. As imagens que Clive inventa e reinventa
em seu processo de criação delirante transmitem
seus rancores e frustrações para com os
parentes.
A direção de Resnais concebe Providence
como um labirinto de imagens e sombras, onde as
características e atitudes dos personagens vão
de transmutando ao sabor do rumo que toam as emoções
do pai-criador. Resnais, via Clive, vai concebendo uma
narrativa que projeta toda complexidade de um processo
autoral, e tudo que um autor consegue injetar de mais
íntimo nesse processo. Resnais, por sua vez,
vai fazer de seu filme uma mistura de sensações
não muito lógicas, mas sempre coerente.
Não esquece inclusive de banhar Providence
em delicado humor e ironia. Preservando uma possível
verve de humor britânico inerente ao texto original
do dramaturgo David Mercer, mas injetando seu toque
pessoal, como viria posteriormente a fazer em Smoking/No
Smoking ou Medos Privados em Lugares Públicos,
também originados na dramaturgia inglesa. É
em Providence no entanto onde o humor um Resnais
aparece de forma mais inusitada e desconcertante.
A conclusão do filme vem elevar um pouco mais
esse teor de ironia. A meia hora final traz Clive de
volta a uma suposta realidade durante a qual recebe
a vista dos parentes. E aqueles vistos em sua obra-delírio
como raposas cruéis – em especial o filho mais
velho Claude (Dirk Bogarde) – aparecem agora como afáveis
e cordatos para com a figura paterna decadente. No entanto,
além da aparente paz reinante, o que torna o
final de Providence extremamente incômodo
é a artificialidade na qual ele se constrói,
num visual de gritante simulacro de uma pintura impressionista.
Resnais faz com que o mundo aparentemente imaginário
do delírio noturno de Clive se imponha como mais
real que o suposto presente idílico, concedendo
ao espectador a sensação de entrada em
uma nova ala do labirinto, mesmo ao final da projeção.
Valeu comentar inicialmente Providence para voltar
no tempo até Stavisky..., um filme de
narrativa mais linear e, à primeira vista, um
pouco menos complexo. Acompanha o personagem título,
interpretado por Jean-Paul Belmondo, um estelionatário
charmoso e carismático, cujas falcatruas acabaram
por detonar uma crise financeira na França dos
anos 30. Se em Providence temos Claude construindo
imagens e identidades para os que estão a sua
volta, aqui vemos o personagem título – ou Alexandre
como ele mesmo prefere – construindo as mesmas imagens
e identidades para si mesmo. Mesmo apresentado através
de fragmentos de memórias das figuras que o cercam,
o Alexandre Stavisky que transparece é sempre
um quebra-cabeças cujas peças seriam alguma
faceta daquilo que ele concebe para si em algum momento.
Alexandre vai sempre trabalhar e ser trabalhado num
processo cíclico de auto-reinvenção.
Alexandre é o – ou um personagem de Stavisky
e vive num mundo ficcional que cria para si mesmo, onde
o ato de perder dinheiro é fundamental para sua
caracterização como um ser irreal, num
contexto histórico de crise política,
financeira e de constante transformação
(leia-se aqui a Europa no intervalo entre as guerras
mundiais e na depressão). Em determinado momento
de Stavisky... o personagem é definido
como "o arauto da morte de uma era".
Na última colaboração entre Resnais
e o roteirista Jorge Semprún, temos o retrato
de um contexto histórico apresentado da mesma
forma fragmentada e elíptica como se vê
o personagem título. Resnais e Semprún
retratam de forma brilhante, ancorada em cores expressivas
da fotografia de Sacha Vierny, o universo da superfície
auto-ficcional de Alexandre em contraponto a uma realidade
de turbilhão político representada pela
passagem de Trostky pela França, o que já
se define desde algumas das primeiras seqüências,
numa montagem paralela que alterna a chegada do líder
socialista em um carro pelo interior da França,
e as imagens de Alexandre descendo pelo elevador de
um hotel chique de Paris.
Uma coisa, porém, une Alexandre Stavisky aos
personagens de Providence: em ambos os filmes,
todos parecem ser prisioneiros de ambientes fora dos
quais surgem como algo indefinido. Um processo muito
próximo vivido pelos arquétipos de O
Ano Passado em Marienbad. Resnais impregna seus
filmes com imagens recorrentes do hotel Claridge (Stavisky...)
e do palacete (Providence). Nesses espaços
específicos os personagens interagem e de alguma
forma não sobrevivem à distância
de tais espaços. Como a família de Claude
que silenciosamente desaparece ao fim de Providence
ou Alexandre, que opta pela morte à opção
de uma vida na distância e no exílio.
Gilberto Silva Jr.
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