É bastante curioso como Medos
Privados em Lugares Públicos, no fundo, não é amado.
Como se fosse um puro evento de críticos (mas ao discutir
com eles, os críticos, nos damos conta de que o filme
não é tão amado assim no meio crítico, de que a superfície
midiática é enganosa, ou ao
menos truncada). O que retorna com freqüência: ele seria
sujo, quase inestético, não
amável, arredio (ou seja, o contrário de convidativo)
a ponto de não nos sentirmos familiarizados, mas face a desconhecidos, tão desconhecidos de nós, tão alhures,
tão outros que o filme não falaria conosco (e sobretudo
não falaria de nossa época).
uma sujeira intencional
É curioso porque me parece que poderíamos dizer
a mesma coisa de um outro filme de Resnais,
Muriel, ou o tempo de um retorno. Não é a primeira vez que há em Resnais esse gosto pronunciado por uma estranha sujeira (uma
sujeira com uma forma de distinção, uma trivialidade
passada pelo ralo da reflexão e de um trabalho de ourives),
algo de ingrato, de intencionalmente ingrato. Em Muriel,
havia esses interiores atrozes, esses
cenários kitsch, uma composição do quadro que
às vezes insistia nos detalhes incongruentes e não tentava
ser mais maligna que esse kitsch (mas antes raciocinar
sobre), uma luz ao mesmo tempo muito trabalhada e triste,
que formatava a sujeira desses interiores, sua tristeza,
sua incompletude (todo esse
bric-à-brac quase irritante, levemente obsceno, do
apartamento de Delphine Seyrig).
Qual é a nuance existente entre uma imagem suja por
ela mesma, burra, fracassada, insignificante, e uma
imagem “intencionalmente” suja, inteligente, pensada?
Eu conheço poucos cineastas (e diretores de fotografia)
que ousam a sujeira (talvez Chabrol),
de tanto que o amor pelo belo, por uma justa beleza
(uma beleza justa?), é aquilo que geralmente anima a
maioria dos cineastas (pois queiramos ou não, o cinema
é para uma parte um empreendimento de sedução, um empreendimento
cosmético, um empreendimento “de Arte”).
canção de amor ou sarabanda
A sujeira, a ingratidão da imagem como um comentário
do e sobre o mundo, então? Talvez seja isso, no fundo,
o que me agrada em Medos Privados em Lugares Públicos. A imagem não se contenta em ser,
ela comenta sua própria figuração, sua própria estranheza.
E é sem dúvida por isso que o filme pareceu cínico,
sem carne para alguns. O que a meu ver ele não é. O
que é figurado é já o fim de alguma coisa (desde o começo
do filme), como se Resnais
encenasse o fim de seu próprio cinema, o fim de seu
mundo. O fim, no sentido de que o belo teria desertado:
o fim do belo como uma porta aberta para a morte. Nada
a ver com o horrível Bergman e seu não menos horrível e detestável
Sarabanda,
como se me opuseram aqui.
Resnais foi certamente o grande
arquiteto de seu filme, o grande ordenador, não há,
parece-me, superioridade nem desprezo por seus personagens.
Lembro de um plano ignóbil em Bergman, quando o filho morre: o cineasta se contentava com
um plano visto de fora, através do vidro (a visão de
uma passante), sem nunca acompanhar o personagem na
morte. “Morra!”, parecia dizer esse plano, eu permaneço
do lado de fora, eu não vou te socorrer, eu não te acompanho,
eu fico distante, e de todo modo eu nunca te amei, lembra-te
desse primeiríssimo plano sobre ti, alguns minutos antes,
o rosto estatuado em um hediondo ricto, justamente para
te tornar ainda mais sujo e estúpido.
a loucura do autômato
Nada disso em Resnais,
jamais. Ele filma depois da morte, decerto. Mas em que
seria incômodo um filme que olha para você depois da
morte? O problema não está aí. O problema, a problemática
é talvez a do autômato. Parece-me que Resnais
nunca filmou outra coisa além de autômatos, seres mecânicos.
Mas o que ele filmou também, propriamente, é a loucura
do autômato, no sentido em que essa loucura é o que
escapa ao programa, tira o autômato de sua mecânica
para propulsá-lo, mesmo por uma fração de tempo do filme
(mas uma fração basta), no reinado da humanidade. Encontramos
momentos assim em Marienbad, em Muriel evidentemente,
na maioria dos seus filmes na verdade, mesmo em Meu Tio da América que parece o mais determinista de seus filmes (e
deus sabe se o determinismo é uma das pedras angulares
do cinema de Resnais, com o pessimismo que o acompanha – “isso recomeçará”, como dizem os heróis
de Hiroshima Meu
Amor). Há freqüentemente (sempre?) um momento mesmo
fracional (portanto), em que
isso racha, em que uma falha se revela (a loucura do
autômato) e instala a dúvida. É essa dimensão de dúvida
(o que temos diante dos olhos? um autômato, um humano? um humano autômato?) que me faz amar
o cinema de Resnais (e, depois,
os humanos de Medos Privados em Lugares Públicos não
são ameaçadores, eles sofrem; os de Sarabanda
são sádicos, eles fazem mal e se satisfazem, Bergman
incluso). Em nada um cineasta ideólogo, e por causa
isso, em nada um cineasta sectário, justamente porque
ele está preso na dúvida. Sarabanda, ao contrário, não abandona nunca o programa, ficamos em
uma pura lógica autocrata, uma lógica de condenação
(o lado pequeno juiz de Bergman
– e o plano da passante era o plano da sentença,
depois da execução).
graça sem graça
O que é, em Medos
Privados, essa fricção entre o automático, o programático
e a loucura (a dúvida)? É por exemplo o monólogo de
Arditi: menos um plongé em sua infância,
seu passado, com seu batalhão de explicações psicológicas,
do que uma abertura repentina, um buraco negro no qual
ele é deglutido e que não explicita em nada o programa
de seu personagem (mas por que ele se obriga a fazer
tais coisas, manter em sua casa o pai moribundo e execrável?).
Ou ainda Azéma cujos dois automatismos têm algo de profundamente obscuro
(e eles assim permanecem até o fim), de estranho mesmo
em seu procedimento. Podemos então achar que esse personagem
foi filmado com desprezo, sem graça, glauco,
o que ele é, aliás, glauco.
Mas me parece que sempre houve em Resnais uma espécie de graça sem graça, um cômico glauco (portanto). Um pouco como
existe em Shyamalan ou Lynch
(dixit meu amigo Jean-Philippe
Tessé) um burlesco não engraçado.
Uma graça sem graça, nada melhor para plantar a dúvida:
devemos rir ou devemos chorar? (ou eventualmente ter
medo?). A dúvida, a irritação, essa dimensão de imprevisibilidade
é verdadeiramente o que diferencia Resnais
de outros cineastas do programa como Dumont ou Haneke
(e, em menor medida, certos filmes de Bergman).
Neles os autômatos não são loucos, eles são autômatos,
isso é tudo.
autômato, mon amour
Eu me sinto muito tentado a aproximar Resnais
de cineastas como Kubrick
ou Spielberg, dois cineastas em que os autômatos nunca
são mais preciosos do que quando são um pouco humanos.
Eu experimento a mesma dúvida face aos humanos de Kubrick
e em menor medida aos de Spielberg (ao menos em alguns
de seus filmes). Humanizar um computador (2001),
duvidar que possa se tratar de um robô (AI)
porquanto tão humano, tão amante
(mesmo se esse amor é um automatismo); há algo de profundamente
retorcido nessa colocação da dúvida (e nessa cena de
2001 onde
o computador se mata, é o astronauta que age friamente,
mecanicamente. Sabemos muito bem, evidentemente, que
o computador debita seu programa, mas quem nos prova
que ele apenas debita seu programa? É nessa ambigüidade,
nessa dúvida, que nasce a vertigem). Os corpos mecânicos
em Kubrick são sempre um pouco
humanos, como os humanos sempre um pouco mecânicos (desse
ponto de vista, seu filme menos interessante é Laranja
Mecânica, legível demais). Cruise
em De Olhos Bem Fechados está curiosamente
um pouco mecânico, como aquele que o persegue em um
momento (clic clac, sua marcha parece quase
sincronizada). Em Spielberg é um pouco diferente porque
há muita psicologia (o mecanismo autômato não é tão
evidente). Mas não é surpreendente que Kubrick
tenha desejado que Spielberg realizasse AI, porque o caráter obsessivo dos personagens
spielbergianos é às vezes
inquietante ao ponto em que nos perguntamos se eles
têm algo de humano. O filho em Guerra dos Mundos está bastante inquietante
quando diz “eu
devo ir, eu devo ver aquilo”, ele quase não se parece
mais com ele mesmo; Cruise em sua obsessão de sobrevivência não está menos inquietante.
Eles são teimosos como o pequeno andróide de AI, como o herói de Contatos
Imediatos de Terceiro Grau. Em Spielberg, tudo se
articula entre a resistência ao sistema (o seu, um sistema
exterior) e a submissão a esse mesmo sistema (último
em data sendo Munique).
Em Kubrick, sabe-se bem, é
quando o sistema degringola que lhe interessa. A cada
vez, em Spielberg, Kubrick,
Resnais, se afrontam o mecânico
e o vivo, mas sob formas e pensamentos bastante diversos
(e hoje se acha essa mesma dúvida em certos episódios
de Lost – mesmo se mais estritamente na instância
do roteiro que da figuração, da imagem). Mas tudo isso
está já se alongando demais... portanto
paro por aqui...
P.S: para retornar
a Resnais, pareceu-me (será
que eu fantasio?) que Medos Privados era recheado de taras da época, e que a secura desses corações era ao
mesmo tempo nossa secura política, moral, ideológica.
A moleza da estrutura era a moleza de nossas reações
face às ignomínias da época. Eu sempre acreditei que
não havia necessidade de bradar signos ostentatórios
de uma época para dela falar. Parece-me que é isso que
Resnais faz. E parecia uma
evidência, à visão do filme, escolher um novo bairro
para o transformar num objeto de ficção, mas é curioso
que ninguém antes dele, ninguém mais jovem que ele tenha
tido a idéia. Não, os jovens filmam a torre Eiffel,
o Bon Marché, em parte porque aquilo
tem a ver com uma forma de reconhecimento social que
os jovens cineastas franceses não encontram mais (e
no caso de Honoré isso funcionou, é seu primeiro verdadeiro
sucesso de crítica e público, como se fosse preciso
acertar a senha, prestar aliança) enquanto Resnais
não tem mais nada a provar e se permite a
completa novidade (um bairro de Paris nascido há apenas
alguns anos). Se isso não é uma prova de modernidade,
então não sei mais o que seria uma. Última coisa enfim.
Sempre me perturbaram, nos últimos filmes de Resnais,
essas visões estranhas, quase deslocadas como a pilha
de roupas em Amores Parisienses
ou essa neve duvidosa (cinzas) de Medos Privados.
A pilha de roupas (impossível não pensar em Noite
e Neblina) durante muito tempo me incomodou. Por que Resnais
faria aquela alusão incongruente, quase enervante? Parece-me
que há por trás disso uma profunda inquietude sobre
a desaparição do sentido dos signos. E contrariamente
a seus filmes mais antigos, onde se trata de desorganizar
as coisas para que elas se reorganizem (Muriel, Marienbad, Hiroshima – essa era sua modernidade, aliás), a presença de tais imagens permanece
sem objeto. É idiota, talvez, mas não posso me impedir
de ver uma ligação entre essa bizarrice e, por exemplo,
a forma que nossa época tem de ignorar certas referências
ao passado. Para ser trivial, peguemos o calendário
Les Dieux du stade (é ao mesmo tempo trivial
e anedótico). É estranho como a alusão a Leni
Riefenstahl (o título, o preto
e branco, os corpos esculpidos pela iluminação) e a
ideologia que vai junto disso, que eu saiba, ainda não
foram nem citados nem jamais se tornaram objeto de debate
ou ao menos de reflexões intrigadas, desabusadas, inquietas,
relativistas. Parece-me que esses signos em Resnais,
cujo sentido desagregado está portanto
lá, tomam uma atitude frente a essa estranha desaparição.
Jean-Sébastien Chauvin
(Publicado originalmente no blog
de Chauvin.
Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Jr.)
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