RESSONÂNCIAS DE HOPPER EM MURIEL

Muriel, ou o tempo de um retorno é um filme de 1963, ou seja, feito quatro anos antes da morte de Edward Hopper, um dos maiores e mais populares artistas americanos do século XX. Influência declarada ou acidente do olhar (e arriscaria dizer que pouco importa, no fundo), a presença de Hopper em Muriel é um dado não só de composição, mas de diegese mesmo. Há esse olhar dos personagens de Resnais (e de seu cinema, por conseguinte), meio desgarrado, meio lasso, meio perdido, que está em muitas pinturas de Hopper. Assim como há em comum uma figura de criador perfeitamente consciente da solidão de suas criaturas, sem se tratar de um ponto de vista indiferente: eles se afetam com essa solidão, eles a sentem no ato de construção da obra. As criaturas não estão condenadas ao solitário de suas solidões, por assim dizer.




Automate (1927)


Os quadros de Hopper constantemente trazem lugares anônimos, esvaziados de alguma coisa, ou melhor, preenchidos por uma dimensão de vazio que antes era inédita na pintura ocidental. Hopper é um artista do anonimato, do isolamento (às vezes da solidão, mas não apenas). Talvez já houvesse na cena do bar de Hiroshima Mon Amour uma ambiência hopperiana: mesas vazias ao redor do casal, o ar impregnado de melancolia, uma introspecção intransponível, letreiros luminosos, um fundo ambíguo como o retângulo escuro e a fileira de luzes de Automate. A fileira de luzes é discreta no plano de Muriel em que Hélène (Delphine Seyrig) está absorvida em pensamentos. Algumas diagonais do plano se mantêm, mas o sentido dos pontos luminosos é contrário ao de Automate, da mesma forma que Nighthawks, a mais icônica de suas pinturas – que foi citada mais explicitamente por outros cineastas (Wenders em O Fim da Violência, por exemplo) – também recebe da câmera de Resnais uma rotação translateral.



Nighthawks (1942)


Resnais não cita Nighthawks, não insiste muito na semelhança. Podemos até dizer que foge dela: os planos em que se insinua são rápidos, fugidios, escapam da retina antes da pregnância. Isso contrasta com as linhas e cores fortes de Hopper, o estilo enfático de sua composição. A idéia de solidão em Muriel vem menos pela contemplação do vazio do que pelo superpovoamento do plano, o contraste entre as áreas escuras e as saturadas. Em ambos há uma mesma aparência de aquário, de alienação: os personagens de Muriel chegam a parar perto do vidro e olhar para dentro do bar, mas não fazem menção de entrar, como se aquilo fosse um microcosmo autônomo, fechado. Em Nighthawks, por não avistarmos a entrada do bar e a rua ao lado estar deserta, o vazio e a clausura ganham outro estatuto. O complexo dinamismo dos planos e da montagem no início de Muriel (em Hiroshima há algo de natureza próxima nos primeiros minutos de filme) cria uma certa sensação, por contraditório que pareça, de imobilismo. Os movimentos se repetem e se afobam como que para negar o próprio movimento, apresentá-lo como nada mais que uma ilusão. Resnais constrói um tempo que não dura, não passa (tampouco recua), mas se pregueia sobre si mesmo. Uma idéia de dobra espaço-temporal levada realmente a sério. O tempo, como experiência da duração, é um atributo do presente, não do passado. Neste, os personagens apenas testemunham o processo de sua desaparição, sua diluição na história do homem. Mas em Resnais tudo é passado, então o presente não tem espessura, não tem convicção. Justamente aí se insere a maior problemática: o tempo pregueado de Resnais não é reversível, não é o tempo "ideal" da dinâmica clássica, e sim um tempo histórico. O passado não pode ser recriado. Se um personagem está fortemente conectado ao passado, como estão os personagens de Muriel, seu investimento no presente se torna automaticamente falho, fragmentado – Bernard, o jovem ex-combatente, traumatizado de guerra, não pára quieto um só segundo, não completa nenhuma ação, sai de um pedaço de evento a outro, seu presente está clivado pela memória. Antes de garantir uma presença daquilo que mostram, as imagens de Muriel se dedicam às ausências que elas tornam possível identificar. Os personagens em si parecem ausentes, vivem na prisão do pensamento ou de qualquer outra coisa para a qual jamais haverá uma imagem suficiente. Também nesse aspecto Resnais se reconecta a Hopper: dois grandes poetas do autismo.



Drug Store (1927)

Em Muriel, Resnais filmou diversos planos com fachadas de lojas, cafés, hotéis, edifícios. Os personagens passam na frente de vitrines acesas, com manequins tentando chamar a atenção dos transeuntes. Lojas, farmácias, letreiros, chamarizes. Os lugares estão fechados, é tarde da noite, mas a vida de alguma forma já tomou esse aspecto de automatismo, de artificialismo, e é "natural" que vitrines continuem acesas e manequins continuem a posar. Eles olham as pessoas que passam – o olhar que os mortos ou os objetos inanimados enviam ao mundo dos vivos: eis um aspecto a compreender melhor em Resnais. Jamais poderemos ser voyeurs secretos, pois a própria imagem está olhando para nós. Desde Noite e Neblina ele nos deixa com essa impressão de que as imagens do filme nos olham.




Room in New York (1932)

Os personagens habitam interiores que não lhes pertencem. Enquanto Room in New York precisa do amarelo da parede e do vermelho do vestido para quebrar seu tédio cenográfico, o apartamento de Hélène em Muriel está atulhado de mobílias que acentuam seu não pertencimento àquele espaço e vice-versa (e de fato os móveis estão à venda). Quartos de hotel, aposentos com vista para a ferrovia, ou com vista para lugar nenhum, vagões e estações de trem, cafés e bares sem aconchego, sem sinais de acolhimento: lugares provisórios e impessoais, "perfeitos e poéticos lugares-comuns" (Sérgio Sant'Anna assim os definiu num conto de O Vôo da Madrugada).

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As comparações entre as imagens de Muriel e as pinturas de Hopper aqui selecionadas podem originar reflexões múltiplas, intensas, quiçá infinitas. Trata-se de aproximar duas obras riquíssimas, inesgotáveis. Complementando as breves linhas acima, que refletem apenas o esboço de um olhar para essas imagens, limito-me a dizer que um mesmo sentimento de angústia e beleza as perpassa. De resto, deixemos que as imagens falem por si mesmas.

Luiz Carlos Oliveira Jr.