O
que é que quis dizer? Eis a pergunta que me é
posta com mais freqüência. Sinto-me tentado
a responder: quis fazer um filme, é tudo. Mas
se tentam saber porque o fiz, naquilo que pensei ao
fazê-lo, o que quis dizer, se querem em suma as
minhas razões e explique aquilo que é
quase impossível explicar tal como alguns impulsos
e intuições, escolhas morais e figurativas,
arriscam-se a chegar a um só resultado: estragarem
o filme.
Creio que aquilo que um realizador diz de si e da própria
obra não ajuda a compreender esta última.
Quando Manzonni fala do romance histórico não
acrescenta nada àquilo que já disse com
os promessi Sposi. O caminho que um realizador percorre
para realizar um filme está cheio de erros, dúvidas,
vícios, por isso a coisa menos natural que se
pode pedir ao realizador é que fale do mesmo.
No meu caso, e por aquilo que de mim mesmo conheço,
as minhas palavras, podem quando muito, servir para
precisar um estado de ânimo particular, uma vaga
consciência. Em suma, àquela pergunta preferiria
responder: aconteciam esses fatos no mundo em um período
considerável, via estas pessoas, lia estes livros,
olhava estes quadros, amava x, odiava y, não
tinha dinheiro, dormia pouco...
Mas o editor pede-me o prefácio e eu não
posso dizer que não, ainda que escrever não
seja assunto meu, ainda que me canse falar de mim. Será
um prefácio fragmentada e insuficiente, mas não
sei fazer melhor.
Creio que todos os realizadores têm em comum o
hábito de olhar atentamente para o interior e
exterior deles mesmos. Num determinado momento, as duas
visões aproximam-se e, como duas imagens que
se focam, sobrepõe-se. É deste acordo
entre visão e cérebro, entre visão
a instinto, entre visão e consciência,
que nasce o impulso de falar, de mostrar.
No que me diz respeito, no principio há sempre
um elemento exterior, concreto. Não um conceito,
uma tese. E há também um pouco de confusão
no principio. Provavelmente, o filme nasce justamente
desta confusão. A dificuldade consiste em pôr
em ordem. Estou convencido que depende não só
de atitude, mas também de um hábito de
fantasia.
Lembro-me perfeitamente como me ocorreu a idéia
de L’aventura. Encontrava-me em um iate com amigos,
acordava antes deles e sentava-me a proa, completamente
entregue a mim mesmo. Uma manhã dei comigo a
pensar numa moça que desaparecera da circulação
há anos e de quem não se tinha vontade
a saber nada. Nós a tínhamos procurado,
um pouco por toda parte, dias a fio, inutilmente. O
iate navegava em direção a Ponza, já
não muito distante. E eu pensei: e se estivesse
ali?
Por mais fascinante que a idéia possa ser, sou
incapaz de aceitá-la subitamente, Deixo-a ficar,
não penso nela, espero. Passam meses, anos. Deve
permanecer à superfície pelos seus próprios
meios no mar de coisas que vão se acumulando
com o viver: se assim for, é uma boa idéia.
Um realizador não faz mais do que procurar nos
seus filmes, que são documentos, não de
um pensamento concluído, antes sim de um pensamento
que se formula.
Londres, 1952. Uma viela sem saída. Casas de
tijolos enegrecidos. Um par de persianas pintadas de
branco. Um candeeiro. Um algeroz pintado de vermelho,
muito brilhante. Uma moto coberta por um oleado. Porque
chove.
Quero ver quem passa por esta rua que lembra Charlot.
Basta-me o primeiro transeunte. Quero um personagem
inglês nessas rua inglesa.
Espero três horas e meia. A escuridão começa
a desenhar o tradicional cone de luz do candeeiro e
vou-me embora sem ter visto ninguém.
Penso que estes pequenos fracassos, estes insucessos
de observação são ao fim e ao cabo,
frutuosos. Quando neles investimos longos momentos,
sem se saber como, salta cá para fora uma história.
O argumento de Il Grido surgiu-me ao contemplar
uma parede.
Roma. Quarto dia de uma greve de lixeiros. Roma inundado
pela imundice, montes de porcaria colorida nas esquinas
das ruas, uma orgia de imagens abstratas, uma violência
figurativa nunca vista e, em contraste, a reunião
dos lixeiros entre as ruínas do Circo Massimo,
mil homens vestidos com as batas azuladas, mudos, em
ordem. A espera não sei de quê.
Uma história pode nascer também desse
modo: observando o ambiente que mais tarde será
o pano de fundo. É com freqüência
no cinema um modo eficaz, porque permite alcançar
facilmente uma coerência figurativa.
1962. Em Florença para ver e rodar o eclipse
do sol. Geada inesperada. Silêncio diferente de
todos os outros silêncios. Luz térrea,
diferente de todas as outras luzes. E depois o escuro.
Imobilidade total. A única coisa que me ocorre
é que durante o eclipse. Provavelmente, param
também os sentimentos.
É uma idéia que tem uma vaga relação
com o filme que estou preparando. É mais uma
sensação do que uma idéia, mas
que define já o filme quando ele ainda está
bem longe de ser definido. Todo o trabalho posterior,
as filmagens, foi sempre referido aquela idéia,
ou sensação ou pressentimento. Nunca mais
consegui prescindir dela. Deveria ter posto no genérico
de L’eclisse esses dois versos de Dylan Thomas:
"...alguma certeza, porém, deve existir,
se não de bem amar, pelo menos de não
amar.".
As idéia válidas para os filmes podem
até não ser as mesmas que servem na vida.
Se assim fosse, a maneira de viver de um realizador
coincidiria com seu modo de formar um filme,
as suas idéia praticas com as intelectuais. Porém,
muito autobiográfico que se possa ser, há
sempre uma intervenção da nossa imaginação
que traduz e altera a matéria. E não digo
nada de novo.
Nós somos as nossas personagens, na medida em
que acreditamos no filme em que estamos fazendo. Mas
entre nós e eles há sempre o filme, há
este fato concreto, preciso, lúcido, este ato
de vontade e de força que nos qualifica inequivocamente
que nos desliga da abstração para pôr-nos
com os pés bem assentes na terra. E assim, de
proletários, digamos, tornamo-nos em burgueses,
de pessimistas em otimistas, de solitários, em
alienados, em pessoas que querem estabelecer diálogo
e comunicar.
Nunca pretendi definir filosoficamente aquilo que faço
no cinema. A palavra "alienação"
não fui eu a inventá-la, há anos
que faz parte da bagagem crítica e filosófica
européia, de Marx a Adorno. Exprime, portanto,
um fenômeno real, um problema concreto da humanidade
que provavelmente se agudizou nos últimos anos.
Ora, não recuso esta temática: os meus
filmes estão ali e falam - no sentido literal
do termo – por si. Talvez não me tenha apercebido
do caminho que tomava, mas uma coisa é certa.
Procurei imediatamente não recordá-lo
ou mesmo esquecer-me dele. O que rejeito é a
acusação de "alienação"
feita ad personam.
Como se realizando um filme, vivendo este período
de tempo ao serviço de uma acontecimento, eu
não pusesse em jogo todos os meus problemas e
não os resolvesse, objetivando-os. Mas realizando
o filme tenho consciência, estou presente perante
mim mesmo, perante o meu ambiente, a minha história,
e estou alienado, na medida em que este fato me induz
a sofrer a alienação, a combatê-la
e a superá-la, fazendo um filme.
O maior perigo para quem faz cinema consiste
na extraordinária possibilidade de mentir que
ele oferece.
Os livros fazem parte da vida e o cinema nasce daí.
Que um acontecimento seja extraído de um romance,
de um jornal, de um episódio verdadeiro ou inventado,
não muda nada. Uma leitura é um fato.
Um fato, quando repensado é uma leitura.
Autenticidade ou invenção, ou mentira.
A invenção que precede a crônica.
A crônica que provoca a invenção.
Uma e outra unidas numa mesma autenticidade. A mentira
como reflexo de uma autenticidade a descobrir. No imediato
pós-guerra pedi aos mais importantes produtores
italianos que me enviassem pelo mundo afora para rodar
um documentário. Tinha mesmo em mente rodar uma
revolução, uma dessas revoluções
que de vez em quando ocorrem na América do Sul.
O filme que mais me desgostou não fazer foi Le
allegre ragazze del 24, ambientado nos anos revolucionários
do fascismo.
Propus também alguns romances. Mas, sobretudo,
assuntos originais. Dezenas de propostas. (Longo e penoso
este assunto do tempo perdido nas ante câmaras
ou ao contar histórias, ou a escrever páginas
e páginas inúteis. É bonito dizer-se
que talvez a experiência que tenha sido útil
é sempre uma experiência que a minha geração
tem que somar a uma outra, a da guerra: uma soma que
provoca medo).
Um dia inventei um filme olhando o sol: a maldade do
sol, a ironia do sol.
Há anos que tenho em mente esses versos de MacNeice:
"Pensem um número, multipliquem-no por 2,
tripliquem-no, elevem-no ao quadrado e apaguem-no."
Estou certo que poderiam tornar-se no núcleo,
ou, pelo menos, no símbolo de um curioso filme
humorístico. Indicam já um estilo.
Pensei também – num momento de desespero – em
encenar os primeiros capítulos da Introdução
à matemática, De Russel. Livro seriíssimo,
mas na minha opinião, rico em aspectos cômicos.
Por exemplo: "O número três não
é identificável como trio composto pelos
senhores Brown, Johns e Robinson. O número três
é algo que todos os trios têm em comum".
Ao trio dos senhores Brown, Johns e Robinson está
reservada uma parte já tocada pelo ridículo.
Ou então: "A relação mulher
– marido diz-se inversa à relação
marido – mulher". Já se está a ver
dois pares inversos e amigos e as ocasiões em
que se teriam envolvido. E ainda: "...O número
2 há uma entidade metafísica, de cuja
existência nunca poderemos ter a certeza e até
mesmo se a conseguimos caracterizar". Afirmação
alucinante, do ponto de vista do número dois.
De um número 2 protagonista.
São jogos, naturalmente, divertessiments que
indicam, contudo, como as coisas mais singulares podem
sugerir um filme. Deformação profissional
e sincera de reduzir tudo a imagens.
Há tempos encontrava-se em minha casa o escultor
do movimento Pop-Art Oldenburg. Uma observação
dele chamou-me profundamente a atenção:
que na Europa é-se mais teórico do que
prático, contrariamente ao que acontece nos Estados
Unidos. Devo dizer que influência do cinema nesse
sentido foi benéfica. A guerra e o pós
guerra, por exemplo, encontram-se no cinema ilustrações
de uma força e de uma verdade por vezes desconcertantes.
Isto depende da natureza mesma do meio, mas também
do fato de que ninguém mais do que nós,
homens do cinema, é levado a olhar.
Eis uma ocupação que nunca me cansa: olhar.
Gosto de quase todos os cenários que vejo: paisagens,
pessoas, situações. Por um lado é
um perigo, mas por outro é uma vantagem, porque
permite uma fusão completa entre a vida e trabalho,
entre realidade (ou irrealidade) e cinema.
Não se penetra nos fatos com a reportagem.
No pós guerra houve uma grande necessidade de
verdade e parecia possível fotografá-la
a esquina de cada rua. Hoje o neo-realismo está
superado neste sentido: cada vez há uma maior
tendência para criar a realidade própria.
O critério é aplicado até mesmo
aos longas-metragens de caráter documental e
aos jornais de atualidades, a maior parte dos quais
realizados segundo uma idéia pré-estabelecida.
Não o cinema ao serviço da realidade,
mas sim a realidade ao serviço do cinema.
A mesma tendência existe nos filmes de argumento.
Tenho a impressão de que o essencial é
quase dar ao filme um tom de alegoria. Isto é,
cada personagem age numa direção ideal
que concorda irracionalmente com as direções
alheias, até formar um significado que compreende
também a história contada mas que a supera
pela intensidade e liberdade de soluções.
Submetendo a película impressionada a um determinado
processo chamado latensificação,
conseguem evidenciar-se elementos da imagem que o processo
normal não consegue revelar. Por exemplo, a esquina
de uma rua iluminada pela luz débil de um candeeiro
só é perfeitamente visível em todos
os seus pormenores se a película é latensificada.
Este fato sempre me deixou perplexo. Significa – pensava
eu – que na película ficava registrada a impressão
das coisas debilmente iluminadas pela luz do candeeiros.
E ficava. Prosseguindo com o raciocínio, podemos
argumentar que a película é mais sensível
que a célula fotoelétrica, cuja agulha,
perante aquela luz nem sequer se mexe. Avancemos ainda
mais (no plano teórico, porque no plano prático
não podemos descurar outras considerações):
talvez a película registre tudo, com qualquer
tipo de luz, até no escuro, como o olho dos gatos,
como um aparelho militar americano de recente invenção,
e somente nosso atraso técnico não nos
permita revelar tudo o que há no fotograma.
Sabemos que sobre a imagem revelada existe outra mais
fiel à realidade, e sob esta outra ainda, e novamente
uma outra sobre esta última. Assim até
à verdadeira imagem daquela realidade, absoluta,
misteriosa, que ninguém jamais verá. Ou,
talvez até à decomposição
de uma imagem qualquer, de uma realidade qualquer.
O cinema abstrato teria, portanto, a sua razão
de existir.
Lá embaixo vive uma moça... Nem sequer
está apaixonada por mim. Onde li esta frase?
Poderia fazer dela o símbolo da nossa (minha
e dos meus contemporâneos) juventude em Ferrara.
Não tínhamos outra preocupação.
O cheiro do cânhamo (hoje na região de
Ferrara o cânhamo cedeu lugar a outros cultivos),
o dos restos das beterrabas nos carros que iam e vinham
das refinarias de açúcar, o do fumo, da
erva e do lodo. Todos estes cheiros que se misturavam
ao da mulher no verão, aos perfumes ordinários
nos bailes populares de inverno. As ruas longas e largas,
ruas de cidades de planície, belas e calmas,
como convites à elegância, aos ósseos
prolongados. As intermináveis conversas nas esquinas
destas ruas, pela noite fora com os amigos. O tema era
sempre a mulher. Às vezes, íamos as tabernas
beber vinho. Mas não gostava de embriagar-me,
de perder a consciência daquela ligeira depravação.
Ouras noites ia sozinho a um bairro popular e por lá
ficava toda noite com uma moça. Não me
arrependo de ter passado assim tantas horas da minha
vida. Sentávamos nas escadarias e por ali ficávamos
no escuro. À luz da lua via uma magnífica
arcada e por detrás o pátio seiscentista.
Sentia passos, vozes na escuridão. Lembro-me
de um menino que saiu porta fora perseguido por uma
voz:
"Vai buscar a puta da tua irmã!"
"Onde é que ela está?"
"Junto à muralha... A primeira que encontrares
de pernas abertas é ela".
A moça que estava comigo era meiga e fiel. Não
me deixava sair da cama dela antes do amanhecer. Por
que tinha medo que os jovens que estavam no bairro me
batessem. Voltava para casa de madrugada, ouvindo o
ruído das carroças nos seixos, Empoleirados
nas carroças, os carroceiros cantavam. Tinham
dormido como uma pedra, mergulhado a cabeça numa
celha de água, Bebido aguardente em um bar e
agora cantavam um canção improvisada,
sem alegria. Que não demoraria muito a dar lugar
aos palavrões. Às vezes também
eu subia para as carroças. Já não
me lembro dos diálogos que se trocavam mas, naquela
altura, pareciam-me extraordinários.
Entrava também em outras casas, casas sólidas
de cor de tijolo com as cornijas de barro, espaçosas,
seguras, onde estavam quase todas as moças "de
bem" da cidade. E também aqui acontecia
sempre o mesmo que nos bares populares, talvez de um
modo mais circunspecto, mas com uma desinibição
complexa e antiga, bem dentro da tradição
artística e histórica da cidade.
Por que a razão conto essas coisas e não
outras certamente mais interessantes? Talvez porque
são aquelas que sinto mais minhas. O resto caiu-me
em cima como uma avalanche e a única coisa que
eu podia fazer era agüentar. Além disso
sinto que, de um modo ou de outro, estão por
detrás de Cronaca di un Amore, de L’avventura,
de Deserto Rosso...
Por outras palavras: aconteceu que descobri a doença
dos sentimentos antes de descobrir a os próprios
sentimentos.
Não sei por que comecei a interessar-me pelos
sentimentos no cinema, mais do que por outros temas
mais candentes. Como a guerra, o fascismo, os problemas
sociais, a nossa vida de então. Não que
este outros temas me deixassem indiferentes, estava
dentro deles e vivia-os, ainda de que um modo muito
solitário. Deve ter sido uma experiência
sentimental minha terminada de modo inexplicável.
Deste fim, só a mim – e não aos outros
– devo perguntar o porquê. E este porquê
unia-se a todos os outros e, em conjunto, tornavam-se
em um só e desmesurado porquê, um denso
espetáculo que tinha o homem por protagonista.
O homem perante o seu ambiente. E o homem perante o
homem.
Esta é a minha única presunção:
de ter iniciado, sozinho, o caminho do neo-realismo.
Estávamos em 43, Visconti rodava Ossessione
nas margens do pó, e ainda no pó,
a poucos quilômetros de distância eu rodava
meu primeiro documentário.
O Pó de Volano pertence a paisagem da
minha infância; o Pó à paisagem
da minha juventude. Os homens que passavam no dique,
arrastando as barcaças, com uma corda a passo
lento, cadenciado, e mais tarde as mesmas barcaças
arrastadas em cortejo por um rebocador, com as mulheres
ocupadas a cozinhar, os homens ao leme, as galinhas,
as próprias roupas, verdadeiras casas ambulantes,
comoventes. Eram imagens de um mundo do qual, pouco
a pouco, tomava consciência. Acontecia isto: esta
paisagem, que até então tinha sido uma
paisagem de coisas, tranqüila e solitária,
e água barrenta e cheia de remoinhos, as filas
de choupos que se perdiam na neblina, a ilha Bianca
no meio do rio, em pontelagoscuro que quebrava a corrente
em duas, aquela paisagem movia-se, povoava-se de pessoas
e fortalecia-se. As mesmas coisas reclamavam uma atenção
diferente, uma sugestão diferente. Olhando-as
de uma maneira nova, apoderando-me delas. Começando
a compreender o mundo através da imagem, compreendia
imagem. A sua força, o seu mistério.
Logo que me foi possível, voltei àqueles
lugares com uma máquina de filmar. Gente del
Po. Tudo que eu fiz depois, bom ou mal, parte daqui.
Terminando o filme, pronta a cópia zero. As dúvidas,
ou arrependimentos, as lamentações. Fechados
nos próprios limites, tem-se vontade de voltar
atrás e recomeçar. Nada há de mais
acabado que um filme quando está acabado. Talvez
um edifício. Fica-se a nu, exposto aos olhares
e à ironia de todos, sem que haja a possibilidade
de contar a ninguém a própria aventura
pessoal, que não está registrada, nem
no filme nem no roteiro: uma recordação,
mas uma recordação curiosa, como um pressentimento,
da qual o filme mais não é que um testemunho
parcial, insuficiente.
Voltando a Deserto Rosso, lembro-me que disse
a Monica Vitti: "Talvez não tenha sido suficiente
mau". E queria dizer o seguinte: não pus
o filme a prova, antes de começá-lo, não
verifiquei se era suficiente mau. É uma prova
que seria sempre necessário fazer: acontecia
aos fatos aquilo que acontece a uma substância
posta em contato com seu reagente natural, que se revela
a si mesma, a sua composição, a sua verdade.
Quando um filme está acabado, fica sempre uma
violência não expressa, um resto de matéria
ou de maldade que nos impele a retomar a peregrinarão
de um lugar a outro, para ver, interrogar, fantasiar
sobre coisas cada vez mais esquivas, tendo em vista
o próximo filme.
Lá embaixo, na rotunda do Grande Hotel de Rimini,
ainda fechado pelo arame farpado com que é cercado
durante o inverno. Duas meninas de mais ou menos 10
anos estão brincando. Uma dá a volta à
rotunda, de bicicleta. A outra estendendo as mãos
com desenvoltura e pousando-as sobre a areia faz o pino,
as saias sobre a cara, as pernas magras direitas no
ar. Depois, deixa-se cair para o outro lado e recomeça.
São duas moças pobres. A que anda à
roda de bicicleta, cada vez que completa um círculo
chama a amiga "Edna... Edna..." E depois continua,
numa cantilena "que amor... que dor!".
Desaparece. Reaparece. "Que amor... que dor!".
É de manhã, cedo; não há
ninguém na praia, a não ser estas duas
meninas e eu. Nenhum rumor além do mar e desta
voz débil que canta amor e dor.
Para mim, durante todo aquele dia, isto foi um filme.
O episódio, contudo, assim, não pode
ter qualquer sugestão e não é fácil
compreender como possa ter sugerido uma história.
Seria necessário ter ouvido a entoação
daquela voz para compreender. Era uma entoação
particular, fresca e atormentadora ao mesmo tempo: dava
àquelas palavras uma dimensão, certamente
não consciente, mas profunda, todo o mar, toda
a dor do mundo. As palavras eram absurdas na boca daquela
personagem, a entoação não.
Eis o limite dos roteiros: dar palavras a acontecimentos
que as recusam.
Escrever um roteiro é um trabalho verdadeiramente
cansativo, justamente porque se trata de descrever imagens
com palavras provisórias, que depois já
não servem, - e já isto não é
natural. A descrição não pode ser
mais genérica ou falsa, justamente porque diz
respeito a imagens muitas vezes privadas de referências
concretas.
Relendo este roteiro, o que mais sinto é
a recordação dos momentos que me levaram
a escrevê-los. Certas "réperages",
os diálogos com as pessoas, o tempo passado nos
ambientes onde posteriormente o acontecimento terá
vida, a gradual descoberta do filme na suas imagens
fundamentais, nas suas cores, na sua cadência.
Isto é talvez o momento mais importante. A elaboração
do roteiro é uma faze intermédia, necessária
mas transitória. Para mim, o filme, enquanto
filmo, deve relacionar-se com esses momentos para sair
bem, preciso reencontrar aquela carga, aquela convicção.
As discussões com os colaboradores na fase
de elaboração do roteiro, a pesquisa muitas
vezes fria e hábil de uma construção,
de uma solução sugerida pela experiência,
contribuem com certeza para articular o acontecimento
da melhor maneira possível. Mas arriscam-se a
esfriar o impulso inicial. Eis porque durante o trabalho
do roteiro há sempre um momento de crise, em
que se perde o sentido daquilo que se está contando.
Então nada mais resta a fazer do que interromper
e repensar o filme, tal como foi imaginado nas "réperages"
Tive uma outra sensação ao ler estes
roteiros, sem dúvida curiosa: uma espécie
de pasmo e irritação. Porque tendo já
os filmes impressos em mente, muitas coisas não
coincidem. E mesmo aquelas que coincidem estão
expostas de uma maneira pseudo-literária que,
justamente, irrita. Quem pensa que o roteiro tem um
valor literário está enganado. Pode objetivar-se
que, se uns não têm, outros poderão
tê-lo. Talvez. Mas então são puros
e verdadeiros romances autônomos.
Um filme não impresso em película
não existe. Os roteiros pressupõem o filme,
não tem autonomia, são páginas
mortas.
Michelangelo Antonioni
Publicado originalmente em Michelangelo
Antonioni. Sei Film. Turim, 1964. Tradução
de José Luis Gesterira.
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