O
meu primeiro contato direto com uma câmera uma
Bell and Howell de 16mm foi num manicômio. O
diretor era um homem altíssimo, com uma cara
que, com o passar do tempo, cada vez mais se parecia
com a dos seus doentes. Nessa altura morava em Ferrara,
a minha cidade natal pequena e maravilhosa, silenciosa
e antiga da planície paduana. Tínhamos
decidido, entre amigos, rodar um documentário
sobre os loucos. O diretor queria a todo custo me ajudar,
e se rebolava no chão para me mostrar as reações
dos doentes a certos impulsos externos. Estava, de fato,
decidido a rodar o documentário ao vivo, isto
é, com os próprios doentes. Tanto insisti
que, por fim, o diretor disse: "Experimente".
Colocamos a câmera, preparamos os projetores,
distribuímos os loucos pela sala conforme as
exigências do primeiro enquadramento, e devo dizer
que os loucos obedeciam com humildade, esforçando-se
por não cometerem erros. Neste aspecto éramos
comoventes e eu me sentia satisfeito com o decorrer
das coisas. Por fim dei ordem para se acenderem os projetores.
Estava um pouco emocionado. De repente a sala inundou-se
de luz. Os doentes ficaram por momentos imóveis,
como que petrificados. Nunca vi na cara de qualquer
ator um espanto tão profundo, tão total.
Foi um momento, repito. Depois, se passou uma cena indescritível.
Os loucos começaram a se contorcer, a gritar,
a rebolar no chão como fizera o diretor. Em pouco
tempo a sala se transformou num pandemônio infernal.
Os loucos procuravam desesperadamente se proteger da
luz, como de um monstro pré-histórico
que os fosse atacar, e os seus rostos que antes, quando
estavam calmos, conseguiam conter a demência dentro
de limites humanos, pareciam agora transtornados, devastados.
Era agora a nossa vez de ficarmos petrificados perante
aquele espetáculo. O operador nem sequer teve
força para por a câmera em movimento, e
eu não consegui dar qualquer tipo de ordem. Foi
o diretor quem teve de gritar "Parem! Apaguem as
luzes!". E na sala, agora à meia-luz e mergulhada
em silêncio, vimos um emaranhado de corpos que
se agitavam como nos últimos estertores de uma
agonia.
Nunca esqueci aquela cena. E foi devido a ela que começamos
a falar, sem o sabermos, de neo-realismo.
Isto se passou antes da guerra.
Depois a guerra chegou e assistimos a tantas outras
cenas de violência, para não dizer de loucura,
que nos habituamos a elas. Mas nos debates que se fizeram
aqui, na Itália, no pós-guerra, sobre
o neo-realismo, considerei sempre aquele documentário
nunca rodado como um texto clássico. O cinema
italiano parecia não saber se desvincular do
seguinte critério: a realidade, a verdade cada
vez mais verdadeira. A câmera escondida nas ruas
ou colocada por detrás do buraco da fechadura
para captar os aspectos mais secretos da realidade.
Os conceitos estéticos estudados na escola foram
varridos por esta vaga, pela necessidade de surpreender
a teoria com os fatos, com os filmes. E é preciso
que se diga que muitos desses filmes alcançaram
esse objetivo. A verdade é que a realidade à
nossa volta era, efetivamente, escaldante, excepcional.
Como ignorá-la?
Fazer um filme não é como escrever um
romance. Dizia Flaubert que viver não era o seu
ofício: o seu ofício era escrever. Fazer
um filme é isso mesmo: viver. Pelo menos para
mim (a comparação ilustre, esclareça-se,
pretende apenas valorizar o discurso). A minha história
pessoal não se interrompe enquanto rodo um filme:
é precisamente nessa altura que ela se torna
mais intensa. Esta sinceridade, este ser-se, de um modo
ou de outro, autobiográfico, este varrer no cantil
do filme todo o nosso vinho, o que é senão
um modo de participar da vida, de acrescentar algo de
bom (pelo menos nas intenções) ao nosso
patrimônio pessoal, de cuja riqueza ou pobreza
os outros serão juízes? É evidente
que, sendo um filme um espetáculo público,
as nossas coisas pessoas deixam, por seu intermédio,
de o ser, para se tornarem, também elas, públicas.
E no pós-guerra, nesse período tão
cheio de acontecimentos graves, tão plenos de
ânsias e de medos quanto aos destino do mundo
inteiro, era impossível falar de outra coisa.
Há momentos em que, para um homem inteligente,
seria desonesto ignorar certos fatos, porque a inteligência
que desiste no momento oportuno é uma contradição.
Acho que os homens de cinema devem estar sempre lembrados,
como inspiração, do seu tempo, não
tanto para exprimi-lo e interpreta-lo nos seus acontecimentos
mais crus e mais trágicos (podemos mesmo rir
deles, porque não? Gosto dos filmes divertidos,
embora não os faça, e entre os atores
que mais admiro contam-se também Danny Kaye e
Alec Guinness), mas mais para acolhermos dentro de nós
o seu eco, para sermos nós realizadores, sinceros
e coerentes conosco próprios, honestos e corajosos
com os outros. É a única maneira, me parece,
de estarmos vivos. Considero, porém, que aquele
critério da verdade cada vez mais verdadeira,
que esteve na base do neo-realismo italiano, levado,
às vezes, às conseqüências
extremas, é hoje em dia entendido num sentido
um pouco mais lato, e também mais profundo. Porque
hoje, num clima normalizado bem ou mal, pouco importa
o que conta não é tanto a relação
do indivíduo com o ambiente, mas o indivíduo
em si, em toda a sua complexa e inquietante verdade.
O que é que atormenta e motiva o homem moderno?
Quais são as ressonâncias que acolhe dentro
de si daquilo que acontece e aconteceu no mundo?
Estas são as questões que devemos, talvez,
levantar hoje ao prepararmos nossas histórias.
A propósito do meu filme O Grito, os críticos
franceses falaram de uma nova fórmula: o neo-realismo
interior. Nunca tinha pensado dar um nome àquela
que sempre fora, para mim, desde os tempos daquele documentário
sobre os doentes mentais, uma necessidade: olhar o homem
por dentro, ver quais os sentimentos, quais os pensamentos
que o motivam no seu caminho para a felicidade, a infelicidade
ou a morte.
Nunca pensei sequer em termos traduzíveis em
filme. Detesto os filmes programáticos. Tento
apenas contar, ou melhor, mostrar vivências e
espero que essas vivências agradem, mesmo que
sejam amargas. A vida nem sempre é alegre e é
preciso ter a coragem de vê-la por todos os prismas.
Mas deixo que seja o próprio filme, depois de
acabado, a revelar o seu significado. Se as idéias
existem em nós e somos sinceros ao exprimi-las,
acabam sempre por vir à superfície. O
importante é que a maneira de contá-las
seja apoiada por uma consciência calorosa e equilibrada.
O cinema de que gosto é aquele em que as imagens
transmitem um sentimento de verdade sem perderem a sua
força de penetração. Nada de enfatuações,
delírios, extravagâncias intelectuais:
as coisas vistas de frente e não ao contrário,
nem de esguelha.
Tenho de confessar que começo a me sentir pouco
à vontade: por que tantos argumentos teóricos?
A conclusão é sempre a mesma: o cinema,
tal como a literatura, é inútil se não
produzir a verdade e a poesia. Objetar-me-ão
que os filmes deste tipo são raros, ao passo
que os outros são mais numerosos e freqüentemente
mais lucrativos. É evidente que uns e outros
são necessários. Mas só os primeiros
são representativos, e neles se baseia o prestígio
de uma cinematografia. Direi mais: consideremos, embora
paradoxalmente, os chamados filmes artísticos
como vícios de uma produção inteiramente
virtuosa, isso é comercia. Poderemos concluir,
com Samuel Butler, que a função do vício
é manter virtude dentro dos seus justos limites.
Se a virtude tivesse campo livre seria insuportável.
Creio, assim, que seria insuportável uma produção
cinematográfica que fosse toda medíocre,
sem idéias e sem coragem. Logo, procurarmos com
todas as nossas forças fazer filmes bons é
mais que legítimo. Mas o que freqüentemente
acontece é que quem afirma coisas deste gênero
é olhado com desconfiança pelos produtores.
Assim, para além das dificuldades inerentes à
realização deste tipo de filmes, têm
de lutar contra essa desconfiança, que depois
se traduz por outros tantos obstáculos materiais.
Um realizador deve ser corajoso também nessa
luta, se quiser ter êxito. Em resumo: o ofício
do realizador é aprender a vencer os obstáculos
que encontra ao procurar fazer bem o seu trabalho. O
trágico é que precisa sempre dar provas
do seu talento à gente que não tem talento
nenhum.
Mas voltemos a O Grito, o meu último filme a
ser exibido nos Estados Unidos. Se é difícil
falarmos de nós próprios é ainda
mais difícil falarmos de nossas obras. É
certo que é um filme fechado, difícil.
"Humilde, de uma humildade misteriosa", conforme
escreveu o crítico. E talvez seja verdade. Há
pouco tempo eu próprio voltei a vê-lo e
fiquei espantado ao encontrar-me perante tanta nudez,
tanta solidão, à semelhança do
que acontece certas manhãs, quando fiamos assustados
com o reflexo da nossa própria cara no espelho.
Não sei se o público dos Estados Unidos,
que é expressão de uma experiência
e de uma cultura tão diversas das européias,
se sentirá à vontade perante uma história
daquele gênero. Espero que sim. Tenho muito medo
do público e também dos críticos.
Gostaria de poder preveni-los, explicar-lhes uma quantidade
de coisas antes de deixá-los ver um filme meu.
Não me lembro quem disse que os livros (e, portanto,
também os filmes, acrescento eu) deveriam ser
julgados por um magistrado perante um júri, tal
como se faz com os crimes, ouvindo-se depois a acusação
e a defesa.
Estou certo que quem o disse tinha toda a razão.
Michelangelo Antonioni
(texto publicado em Cinema Nuovo,
vol. VIII, nş 138, Março-Abril de 1959. Tradução
de José Luis Gesteira. Transcrição
e adaptação de Rodrigo de Oliveira)
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