UMA NOVA MANEIRA DE FAZER CINEMA

Depois de o haver pensado, durante anos, fiz finalmente um filme onde usei câmeras de televisão. Chama-se Il mistero di Oberwald e baseia-se numa peça de Jean Cocteau. Por quê esta escolha? Não foi uma escolha, mas um acidente e seria demasiado longo explicar as circunstâncias que levaram a tal. A história particular de um filme tem pouco interesse. O que conta é o filme em si. É uma experiência que queria fazer, e que fiz. E parece-me necessário falar dela, porque tive a impressão que este é um meio, que tem tudo o que é preciso para substituir a película tradicional. Tudo, à exceção de uma coisa da qual vou falar.

De princípio, dir-se-ia um jogo. Colocamo-nos defronte de um painel cheio de botões e ao mexer neles podemos acrescentar ou retirar cor, intervir na sua qualidade e no equilíbrio das vária tonalidades. Podemos, também, obter efeitos especiais completos e engenhosos, como os que se conseguem com o conjunto de máquinas tradicionais, ou mesmo, ainda mais sofisticadas. Em suma, rapidamente nos apercebemos que não lidamos com um simples jogo, mas com uma nova maneira de fazer cinema. Não televisão: cinema, se for isso que se pretende. Uma nova forma, por fim, de utilizar a cor como um meio poético e narrativo.

Em cinema, o problema da cor em si mesmo, não existe. O que existe, como sempre, é o cinema, do qual, entre outros, faz parte o problema da cor. É freqüente que, à custa de estarmos habituados a considerar a cor como parte integrante de um filme, a tomemos, muitas vezes, como qualquer coisa adicional e, até, um pouco marginal. Os produtores estão habituados a ler os argumentos a preto e branco, e os próprios argumentistas ao escrevê-los, não raras vezes, a negligenciam. Um script pode, portanto, de acordo com a opinião comum, ser realizado indiferentemente a cores ou a preto e branco.

Com as câmeras de televisão não se levante este problema. A televisão é, a partir de agora, a cores. O espectador que olha para a televisão preto e branco, sabe, ou sente inconscientemente, que lhe falta alguma coisa. Para mim, a realidade a duas cores é inerte e suscita apenas um interesse casual ou, na melhor das hipóteses, histórico. Mas em caso algum um interesse artístico. A esplêndida fotografia de Manhattan perturba-me, provoca em mim o a urgência da cor, e penso "Como é que isso seria se houvesse cor".

Com a câmera de televisão na mão, repito-o, partimos do princípio de que se estes instrumentos a reproduzem com tanta lealdade, é dela então que devemos partir para contar a nossa história. Mas não é este, o momento oportuno para me deter neste tipo de especulações.

Dispus de câmeras do tipo LKD 5, adaptadas para filmar quer exercícios exteriores quer interiores. São grandes, por causa do zoom que lhes aplicaram, um Angénieux 42 x 12. São muito potentes mas pouco maleáveis, apesar de, a partir de momento em que os cameramen se adaptam às exigências específicas das filmagens cinematográficas, deixaram de apresentar problemas. Todavia é necessário um controle e uma afinação mais freqüente do que quando usada em estúdios.

Devo ainda falar em outro aspecto técnico, pois constitui o ponto crítico de toda a operação: a transferência da imagem, da fita magnética para a película. Porque é que é um ponto crítico? Vou tentar explicá-lo com base nas frágeis noções que adquiri no decorrer da minha experiência.

A imagem televisiva, tal como a podemos ver no Cinescópio, é constituída por 575 linha horizontais. As linhas utilizadas no nosso padrão (padrão G, Sistema PAL) são exatamente seiscentas e vinte e cinco, que repetem todos os 25 segundos. Contudo, dessas 625 apenas 575 estão ao dispor do sinal de vídeo, ficando as outras reservadas a sinais de teste ou teletestes. O número de linhas por que é composta a imagem é um dos fatores determinantes da nitidez da própria imagem; para obter maior nitidez é necessário aumentar o número de linhas. Noutras palavras, se ampliarmos uma fotografia perdemos nitidez e ganhamo-la ao efetuar o processo inverso, e de fato na passagem da película à fita magnética, os resultados que se obtêm, são excelentes.

Pode objetar-se: Como é que ainda não se resolveu de forma satisfatória esse problema? Perguntei-o aos técnicos com quem trabalhava e responderam-me que teoricamente - e em parte na parte na prática – o problema fora resolvido, fabricando fitas cada vez mais ricas, que chegam por vezes às duas mil linhas, mas estão circunscritas ao exército americano. Evidentemente que a comercialização de tal produto acarretaria tais perdas, quer comerciais, quer industriais, que incitam as pessoas a deixaram, por ora, as coisas como estão. E ademais, afirmemos, uma tal exigência não se fez sentir, ainda, no mercado.

De qualquer modo, esta é a exceção que mencionei no princípio, quando falava da substituição da película pela fita magnética. Dizia eu, que a fita possuía todas as virtudes, à exceção de uma, e esta é precisamente o impacto que provocaria no mundo industrial, no filme, nas câmeras. Não pretendo entrar no campo da ficção política, mas tenho a impressão (e não é apenas a impressão) que existe como que uma conspiração em detrimento da fita magnética.

É pena, porque a experiência que tenho, convenceu-me que, em mais nenhuma área como a da eletrônica, andam poesia e técnica de mãos dadas.


Michelangelo Antonioni

Publicado originalmente em The Cinema in the Eighties, La Biennale, Monoscritti Veneziani, nº 1, setembro de 1979. Tradução de Paula Madeira Rodrigues