A primeira regra, para um músico que pretende
colaborar com Antonioni é esquecer que é
músico. Pode-se tomar essa fórmula ao
pé da letra. Ela tem como autor um homem que
compôs a música de quase todos os filmes
de Antonioni, exceto o último [A Noite,
nt], desprovido no fim das contas de qualquer música.
Antonioni tem com a música relações
muito pessoais: ele a detesta e ele não pode
viver sem ela – nec cum te, nec sine te vivere possum;
mas não se deve pensar que isso provém
de uma atitude qualquer. A repugnância que ele
experimenta em relação à música
é o fruto de uma longa meditação.
Sua única e verdadeira obsessão é
o cinema. Traduzir a vida na exata dimensão do
cinema; buscar o equivalente cinematográfico
dos valores humanos: é isso que importa para
ele.
Até que ponto a música encontra seu lugar
nessa busca? Ou melhor: qual é o papel da música
no cinema? O problema certamente não é
novo, mas nova é, me parece, a solução
que nós demos a ele.
Eu detesto, pessoalmente – é supérfluo
dizer –, os filmes transbordantes de música inútil
e barulhenta. Esse sistema conduz certamente à
vulgaridade.
Eu também não considero como válido
esse tipo de música de fundo que Cocteau um dia
teve a ocasião de definir como música
de mobiliário, que é quase um rumor
preexistente, onde um som vale o mesmo que um outro,
e onde tudo, podemos dizer, resulta por sujar a atmosfera
poética da obra. Eu penso ao contrário
que a música, para ser incorporada num filme,
deve ter sua função própria, que
é de sublinhar, sem nunca ultrapassar, tal ou
tal momento da narrativa; iluminar musicalmente certas
situações particulares; contribuir de
longe à textura dramática da obra, logo
ajudar o espectador a compreender seus planos mais secretos
e sobretudo a escavar o interior dos personagens.
Para que esses objetivos sejam atingidos, é necessário
que a música de um filme seja muito incisiva
e muito dosada. Uma experiência longa me permite
afirmar que os resultados mais eficazes podem ser obtidos
com as orquestras menos importantes. De minha parte,
em particular quando eu encontro um realizador da envergadura
de Antonioni – eu elimino a orquestra simplesmente.
Já depois de muitos anos, eu utilizo pequenos
conjuntos: um pequeno número de instrumentos
me basta muitas vezes para dizer tudo que eu preciso
dizer. Para Hiroshima, mon amour [dir. Alain
Resnais, 1959, ndt], eu usei uma formação
relativamente numerosa: nova instrumentos; em Crimes
d'Alma [Cronaca di un amore, 1950, ndt],
eu consegui, creio, à demonstração
mais precisa de minhas convicções em matéria
de música do tipo cinematográfico: eu
usei apenas um saxofone, e o "papel" foi magistralmente
executado por Georges Mûle do Conservatório
de Paris. Em Traviata 53 [dir. Vittorio Cottafavi,
1953. ndt], um solo de trompete com acompanhamento
de cordas e piano constituiu o comentário sonoro
da obra de Cottafavi; da mesma forma, no filme O
Batom [Il rossetto, dir. Damiano Damiani,
1960, ndt], um trompete e um coro de vozes brancas
utilizadas com muita parcimônia sublinhavam de
forma eficaz as cenas mais significativas do filme.
Na verdade, em Crimes d'Alma, eu acreditei ter
atingido o limite, chegando até a fazer da música
o esqueleto de si mesma; mas Antonioni queria ir mais
longe: aboli-la definitivamente ou apenas aceitá-la
se ela for exigida pela situação. Suponhamos
que um personagem entra numa sala de concerto; que numa
cena se veja as pessoas dançarem, ou um pedinte
tocar realejo, ou um orfeão numa praça,
ou uma noite na Ópera: a música que Antonioni
tolera no cinema é essa. A outra, a que eu componho
para ele, o coloca num estado de nervosismo às
vezes desconcertante.
Ele aborda os instrumentos musicais já prevenido
contra aquilo que eles vão interpretar. Durante
a gravação da trilha sonora, ele toma
lugar na cabine do lado do técnico, e mal os
instrumentistas começam a executar os primeiros
compassos ele já começa a tocar o fone:
ouvimos, na sala em que me encontro, sua voz irritada
e dolorida ao mesmo tempo: "Giovanni, não podemos
fazer sem esse instrumento?", ou então: "Desse
pedaço? Vamos eliminá-lo". E ele desliga
o fone.
É preciso notar que antes ele seguira e, posso
dizer, vigiou a música ao longo de sua composição,
sentado perto de mim, no piano, pedindo intermináveis
repetições, discutindo, sempre descontente,
sempre desolado, sempre inquieto. Ele se comporta, em
suma, em relação à música
como o homem que odeia uma mulher porque a ama demais.
Devo dizer que trabalhar com ele não é
sempre fácil. Homem de excelente cultura (é
bom saber que ele também estudou música
e que até mesmo por um tempo ele tocou violino),
ele é dominado por uma dúvida eterna,
como todos os espíritos em que prevalecem as
faculdades intelectuais. A inteligência é
o estado natural de seu ser: uma inteligência
que eu gostaria de qualificar de severa, que termina
por confiná-lo numa solidão profunda.
Me parece todavia que ele faz um esforço real
para escutar quem fala com ele. Apesar disso, nossa
colaboração sempre se efetuou no melhor
dos sentidos. Tive que consentir numerosos sacrifícios
trabalhando com ele: cheguei até a implorar,
quase com amargura, por trechos que eu tinha composto
no próprio espírito de sua poética.
Talvez fosse dele mesmo a razão, mas me custava
muito renunciar. Tenho certeza, no entanto, de ter sido
bem sucedido ao conduzi-lo em certas zonas poéticas
e fazer com que ele as aceitasse musicalmente,
sem que ele tivesse dúvidas.
Como se vê, existe uma boa osmose entre mim e
Antonioni. É a ela que se deve o triunfo harmonioso
de nossos esforços em algumas obras em que a
música, extremamente calculada, conserva intacta
sua função própria.
Giovanni Fusco
(Publicado originalmente em
Michelangelo Antonioni. Ed. Seghers. Paris, França,
1962. Tradução de Ruy Gardnier)
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