O CINEMA DIRETO E A REALIDADE

O aparelho de tomada de vistas escondido atrás do buraco da fechadura é um olho de fofoqueiro que registra o que pode. Mas o resto? Tudo que se passa para além dos contornos da abertura? Uma abertura não basta; faça dez, cem, duzentas; coloque atrás delas quantas câmeras quiser e imprima quilômetros de película. O que você obtém? Uma montanha de materiais dentre os quais serão fixados não apenas os aspectos essenciais de um evento, mas também seus aspectos laterais, absurdos ou ridículos. A tarefa será de reduzir, de selecionar. Mas o evento real compreendia igualmente todos esses aspectos, ele comportava suas figuras transbordantes, esse excesso de matéria. Ao escolher, você o falseia. Diz-se também que você o interpreta. Eterno problema. A vida não é simples, nem sempre inteligível e a própria ciência histórica não consegue exprimi-la na totalidade: é a essa conclusão que já chegam, por caminhos diferentes, Strachey e Valéry, um historiador que fazia da história uma arte, e um poeta que desdenhava da história.

As experiências de Pudovkin são de resto suficientemente conhecidas. Pudovkin mudava a significação de certos closes ao mudar a ordem de sua montagem. Um homem sorridente que olha um prato de sopa é um glutão; se ele olha, com o mesmo sorriso, uma mulher morta, é um cínico. Para que serve então o buraco da fechadura, as duzentas câmeras, a montanha de material filmado? Esse tipo de cinema, derivado do neo-realismo italiano, se chama hoje de “cinema verdade” ou “cinema direto”. Seus defensores erigem em teoria sua objetividade absoluta. Concluiria-se que o meio ideal para eles seria essa máquina que observa e descreve, concebida por Silvio Ceccato, diretor do Centro de Cibernética da universidade de Milão. Não fosse o fato, difícil de ignorar, de que essa máquina necessita de um “programa”. Ela é capaz, com efeito, de atitudes diversas, de dar uma descrição, um julgamento moral, um julgamento estético, de explicar e predizer, de se opor ou de simpatizar. Ela fará muito mais, certamente, no porvir. Ela substituirá o jornalista, o repórter, no que tange os jornais; ela conduzirá automóveis. Mas mesmo assim, será preciso que a façamos reconhecer o endereço ao qual queremos que vá. Em uma palavra, ela tem necessidade de uma bagagem de noções e de ordens.

Que os cineastas do cinema-verdade, uma câmera Coutant sob o braço, se misturem à multidão para lá filmar suas enquetes, não muda nada; é preciso que uma idéia, um projeto, anime-os. Sem o qual seu aparelho permanecerá inerte, assim como permanecerá inerte, apesar de sua memória sobre-humana e seus milhões de conhecimentos, a calculadora mais potente do mundo se ela é desprovida de programa. Eu assisti recentemente, em Paris, a um filme sendo rodado. Registravam-se no som magnético as respostas dadas por uma mulher a perguntas improvisadas. Depois que essas respostas eram recopiadas, faziam a mulher aprendê-las de cor e rodavam a cena. A falsidade do resultado ao qual chegavam não fazia a sombra de uma dúvida.          

Em uma cidade próxima de Valdagno, parei para beber alguma coisa em um bar que se acha sobre um lugar onde venta bastante. Como o vento é fotogênico! Há outras casas ao redor do lugar, mas isoladas, e o vento se entranha entre elas, levantando nuvens de poeira que me envolvem depois se elevam acima de telhados onde a contra-luz as torna mais brancas. Do interior, a cena é ainda mais sugestiva. Um enorme vidro permite ver quase todo o lugar, fechado ao fundo por um muro que corta horizontalmente a paisagem. O céu, acima do muro, é de um azul que a poeira parece descolorir. Ele reencontra toda sua intensidade como por “fusão”, lá onde as nuvens de poeira se dissipam. Mas, coisa estranha, eu me desloquei bastante pela sala em busca do ângulo mais apropriado, não o encontro. Eu ficaria bem confuso se precisasse “enquadrar” o que vejo. Talvez a dificuldade venha do fato de que não tenho história para contar e assim minha imaginação visual se esvazie. Eu retorno ao balcão sobre o qual uma jovem moça pôs minha consumação: morena, de olhos claros, melancólicos. Vinte oito anos aproximadamente, um pouco deformada. Seus gestos são lentos e precisos. Ela olha os papéis lá fora, os ramos carregados pelo vento. Eu lhe pergunto se é sempre assim nesse país. Ela responde: “Behh!” Nada mais. Ela se instala sobre uma cadeira, um braço na direção da cafeteira, a cabeça apoiada sobre o braço. Ela parece lassa, sonolenta, ou indiferente, ou preocupada. Em todo caso ela permanece imóvel, e assim imóvel ela começa a ser um personagem.

Eu penso que isso também pode ser uma maneira de fazer “cinema verdade”. Atribuir a alguém sua história, mais precisamente a história que coincide com sua aparência, com sua atitude, seu peso, seu volume, em um certo espaço. Discretamente, eu me desloquei até atingir a extremidade do bar, atrás da jovem que, de certa maneira, se acha em primeiro plano. No fundo da sala, a janela oblíqua, a poeira que se depara contra o vidro e escorre como se fosse líquida. Daqui, com a jovem de costas, a relação entre o exterior e o interior é justa; a imagem, plena. O branco lá de fora – uma realidade como inexistente – está aqui dentro, as manchas sombrias – jovem inclusa – têm um sentido. A jovem em si mesma é um objeto. Uma personagem sem rosto, sem história. Que já conhecemos perfeitamente, de tanto que o plano é bonito!

Eu me aproximo e enquanto ela me prepara um outro copo eu pergunto seu nome: “Delitta”. – “Como?” – “De-li-tta”. – “Como o delito, o crime?” – “Sim, mas com um a.” Eu a olho, surpreso. “É meu pai”, ela explica. “Ele dizia que era um crime, em sua condição, colocar crianças no mundo. Mas minha mãe queria um e então ele disse tudo bem, mas nós o chamaremos de Delito. E como eu sou uma menina... Voilà”. Eu poderia questioná-la até a exaustão, segui-la passo a passo e ao longo do dia todo pelas ruas de sua cidade cheia de vento e em sua casa certamente própria e bem em ordem, eu estou certo de que não teria mais surpresas e que a única e absurda bizarrice de sua vida permaneceria seu nome: “Delitta como Delito, com um a”.

Michelangelo Antonioni

(Publicado originalmente na revista Études cinematographiques, nº 36-37, 1964. Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Jr.)