O BOSQUE BRANCO

Faz muito frio. Eu sei, vejo nos outros. O gelo me entraria nos ossos se eu o deixasse passar, isto é, se me distraísse. Mas tenho muito a fazer. Não que haja coisas específicas a fazer, pelo contrário, não faço absolutamente nada, ou seja, quem me vê certamente pensa assim. Mas não é verdade. Estou observando o bosque que aos poucos torna-se branco. Tenho até outras ocupações práticas de pouca importância, como controlar que todos desempenhem suas funções, indicar aos branqueadores os pontos do mato e os cumes das árvores ainda verdes: eles sabem que não quero manchas escuras, mas alguma sempre escapa, e se tingir uma moita é simples, o cume de um pinus pinea de quarenta metros, que do chão parece um gomo delimitado de verde, como vê o banqueador na escada, lá no alto da árvore, é um emaranhado de ramos e de vãos que nunca se termina de pintar de branco. O homem se debruça o mais que pode na escada que balança perigosamente e eu prendo a respiração porque é por minha causa que o homem está em perigo e apesar de não parecer, não sou insensível a estas coisas.

Mas, além dessas que são ocupações triviais, há uma outra que me preenche completamente, e é precisamente observar o bosque mudar de cor. No escuro, ou melhor, sob a luz dos projetores, busci entender como estarão amanhã essas árvores brancas, aliás acinzentadas, contra o céu cinza (uma camada de nuvens cobre o céu há uma semana), ao lado do cimento da fábrica, às suas torres. Já que a essas perguntas não posso ainda ter uma resposta intuitiva, por ser noite, continuo a pensar nisso de forma cada vez mais insistente. Para ser sincero, comecei há pouco a formulá-la. Quando disse que queria o bosque branco, a interrogação não existia, a frase apareceu espontânea, sugerida por uma imagem que me passou pela cabeça. Nem sombra de dúvida. Nem mesmo quando, depois de dizer que o bosque deveria ser branco, constatei que me olhavam como se tivesse ouvido falar pela primeira vez nessa cor, e é que o branco é uma cor. E imediatamente quiseram saber por quê, como se bastasse mudá-la, a cor, para ganhar-lhes o consentimento, como se, com o vermelho, com o azul, com o amarelo, que são – talvez ainda por pouco – as três cores fundamentais da escala cromática, a pergunta não tivesse mais razão de ser. Nunca gostei das perguntas, quando são dirigidas a mim, porque implicam um sentido bem determinado e forçam a empregar o nível do raciocínio, ao passo que muitas vezes quando trabalho estou sempre num nível inferior. E assim me acontece que as perguntas sejam puros sons, sem significado. São os momentos nos quais mais me sinto animal, isto é, me olham como se eu fosse, e talvez realmente o seja. Esse estado tem até suas vantagens, devo admitir, porque acabam por nos deixar em paz. Mas não é o caso dessa noite. Quem passa por aqui, movido pelas luzes, pelo barulho, pela nuvem branca ou sei lá por quê, porque as coisas que cativam a curiosidade nunca são as mesmas para todos, dessa vez fica na fila com os outros, quanto à curiosidade, e pergunta: por que brancas? Observa também, é verdade, todos aqueles trabalhadores que manobram uma enorme bomba montada num caminhão que produz, como dizia, uma grande nuvem branca, ou sobem em escadas altíssimas que se perdem no escuro ou movem projetores e geradores elétricos ou enchem latas de tinta ou queimam a grama da relva, que não deve ser branca, mas escura, queimam com bombas de mão que jogam gasolina incendiada como lança-chamas. O espetáculo deve ser alucinante, sobretudo visto através do véu de neblina produzido pela nuvem de tinta. Estamos todos brancos como moleiros. Os passantes param, observam, se divertem, e um pouco depois chegam perto e dizem com o ar de dizer tudo bem, entendi, ótimo, maravilhoso, só gostaria de entender uma coisa: por que branco?

Pode parecer estranho, a primeira vez que me ocorreu de ir ali para os testes do filme que tinha a intenção de fazer, formulei imediatamente muitas hipóteses sobre aquilo que poderia ser, digamos assim – mal – o sentido poético deste bosque que à primeira vista excluía tão peremptoriamente toda idéia de bosque. Buscava compreender por que a excluía, ao mesmo tempo buscando a angulação com a qual eventualmente a enquadraria. Primeiro de tudo o silêncio, que faltava completamente. Mesmo adentrando-o, coisa que fiz imediatamente, o bosque não revelava ruídos e tampouco os odores que lhe são típicos, mas era forçado a aceitar, embora em pouco número ,os que vinham da cidade, ou da periferia. Estava rodeado de estradas, assediado, carros, ônibus, motocicletas em repetição, até mesmo um trem, sob a base constante de um zumbido de máquinário misturado com assobios de vapor, e com o cheiro de uma fumaça amarela cheia de ácidos que empesteava toda a área. Zunido e fumaça vinham da grande fábrica (3 mil operários) construída no meu de um enorme pinheiral, cujo bosque atual é tudo que permanece, no momento. A fabrica funciona dia e noite. Uma vez perguntei ao diretor se ele poderia interromper por alguns minutos aquela fumaça que atrapalhava alguns planos meus. Resposta: "Sabe quanto me custa um minuto? Cento e cinqüenta milhões".

É notório que Ravenna era rodeada há vinte anos de imensos pinheiros e que hoje esses pinheiros estão morrendo. Vê-se a olho nu: árvores secas, retesadas, que, é apropriado dizer, vegetam sem esperança. Esta de que falo é a zona verde mais próxima à cidade, e por isso eu passava por ela todos os dias em meus passeios. Pouco a pouco, interessado como estava em olhar tudo aquilo que estava em torno do bosque, e que até o bosque espesso me ocultava, e eu nem sequer percebia, deixava que ele corresse pela janelinha do carro esperando encontrar a conhecida paisagem que vinha adiante. Assim o bosque perdia, a cada dia, sua característica natural. Não, não é exato dizer natural, mas aquela que em outros tempos era a sua característica, de bosque, natureza perfeita e única, mas agora substituível, já que agora o natural é que desapareça para dar lugar a um espaço novo a ser preenchido com outras formas, outros volumes, outras cores. Este bosque, em suma, estava se esfoliando como idéia para aparecer de vez em quando: a paisagem que se vê do escritório de X na cena número tal, o fundo da externa cena inicial, e por aí afora. Até assumir finalmente, e digo finalmente porque foi o resultado de uma obra de esclarecimento, um aspecto novo: o de problema, o problema número 1 da seqüência que vinha imaginando. Uma coisa, de fato, era certa, a saber, que aquele verde tinha de ser eliminado se eu quisesse que a paisagem adquirisse sua beleza original, feita de cinzas áridos, de pretos imponentes e, quando muito, de pálidas manchas rosas e amarelas, tubos ou cartazes distantes. Havia também verde, mas se tratava de uma fragilíssima chaminé que cortava horizontalmente a fábrica para assim alçar uma altura prodigiosa, elegante e potente em sua magreza, maior do que qualquer árvore. E, assim, quando o diretor de produção me avisou, pouco depois, que no domingo seguinte iríamos poder rodar a cena à frente do bosque e me perguntou o que seria necessário, tive subitamente a certeza, na medida em que se pode estar certo desse tipo de coisa, que o bosque deveria ser pintado de branco, um branco sujo que depois, se tudo desse certo, em technicolor resultaria cinza, como o céu daqueles dias ou como a neblina ou como o cimento.

Estas do céu – cinza –, da neblina e do cimento (que, entre outras coisas, se fabrica daqui dois passos em quantidades enormes) são semelhanças nas quais penso só agora, essa noite, na tentativa de encontrar a todo custo uma justificativa para a quantidade de trabalho que originei e de fazer calar dúvidas e preocupações que me saem de todas as partes. Primeira dúvida: o bosque branco dará o tipo de sugestão que espero? Segunda dúvida: não parecerá neve? Primeira preocupação: se cai geada a tinta vai embora. Segunda preocupação: se amanhã o sol, por uma dessas brincadeiras que esse misteriosíssimo objeto costuma fazer, resolve aparecer, todo esse cansaço terá sido inútil porque no lugar em que colocarei a câmera para o plano geral ficarei em contraluz e as árvores, ao invés de brancas, ficarão escuras, e sequer poderei mudar o ângulo porque pintamos um só lado do bosque. Se tivesse decidido, tento pensar não sem certa relutância, quase evitando pensar, se tivesse decidido marrom, o marrom apodrecido da terra invernal, ou seja, da terra sem vida, presumivelmente que efeito teria obtido? Fecho os olhos um momento, imagino sem qualquer emoção o bosque marrom. Reabro os olhos, olhos os trabalhadores meio enfraquecidos, são três da manhã, trabalham desde as seis de ontem, eu com eles aliás, mas o meu é um trabalho que não deixa qualquer marca, ao menos quanto à fadiga. O frio aumentou. A grande bomba montada num caminhão quebrou-se e o trabalho dos branqueadores tornou-se massacrante. Precisamos de mão de obra. Mandamos uma pessoa do lugar para procurar, nem que seja para tirar elas da cama. Do alto de uma escada cai uma bomba de mão, com seus quarenta metros de tubo. Não, não caiu, foi jogada de propósito pelo trabalhador que mexia com ela. É um tipo robusto, mas que já não agüenta mais e desce para o chão dizendo: "Quero meio milhão". O assistente de produção vira-se para os observadores: "Quem tem meio milhão para dar a esse senhor?" Ninguém ri. O branqueador vai embora levando consigo seu ajudante. Se os outros o seguirem, restarão partes do bosque a pintar?... A angústia dessa perspectiva é tal que acaba com todas as minhas dúvidas. Por que branco ou esbranquiçado ou cinza? Porque sim e pronto. Se quisesse, poderia falar por muito tempo e dizer-vos que ninguém se interessa pelas árvores nesse lugar, e que no pântano e nos canais chegam os expurgos da fábrica e as águas são pretas ou amarelas e assim não são mais água, é só perguntar aos peixes que têm a barriga cheia de petróleo. Em meio às árvores agora passam os navios, Ravenna é o segundo porto da Itália, sabiam? O mito da fábrica condiciona a vida de todos, as despe de imprevistos, escalpela, o produto sintético domina, e cedo ou tarde terminará por tornar as árvores objetos aquáticos, como os cavalos. Dar como certo o fim do bosque, fazer do cheio um vazio, submeter descolorindo esta antiga realidade à nova, que é entretanto sugestiva: não é isso que acontece há anos num fluxo que nunca se acaba?

Mas não quero falar disso, não quero explicar por quê. Tudo que posso, que devo dizer com dó no coração a meu diretor de produção, agora que é de manhã e que apareceu um belo sol e é impossível filmar, é que renuncio à cena. Nenhum bosque branco no filme. E esta é a razão pela qual escrevo.


Michelangelo Antonioni

(Publicado originalmente em Il deserto rosso di Michelangelo Antonioni, Carlo di Carlo org., Capelli editore, Bolonha, Itália, 1964. Tradução de Ruy Gardnier)

 

 





Imagem do lixo industrial ao lado da fábrica
no começo de Deserto Vermelho (1964)