Existe
no mundo, hoje, uma fratura muito grave entre a ciência
de um lado, projetada para o futuro e pronta a renegar
a cada dia o que ela era na véspera se isso lhe
permitisse conquistar uma pequena fração
desse futuro...
...e, do outro lado, uma moral enrijecida, imóvel,
da qual o homem se dá inteiramente conta e que,
no entanto, continua a prevalecer.
POR PREGUIÇA OU POR COVARDIA.
Desde seu nascimento, o homem se encontra imediatamente
entorpecido por uma série de sentimentos .Não
digo velhos ou caducos, mas completamente inaptos, condicionando-o
sem ajudá-lo, entravando-o sem jamais mostrar-lhe
a saída.
E, no entanto, o homem ainda não conseguiu –
aparentemente – se desfazer dessa herança. Ele
age, ele ama, ele odeia, ele sofre, levado por forças
e mitos morais que pertencem à época de
Homero, o que é um absurdo nos nossos tempos,
na véspera das viagens à Lua. Mas é
assim!
O homem está, então, disposto a se desfazer
de seus conhecimentos técnicos ou científicos
quando eles se revelam falsos. Nunca a ciência
tinha sido tão humilde, tão disposta a
se retratar. Mas no domínio dos sentimentos,
existe um conformismo total.
Durante esses últimos anos, nós examinamos,
estudamos os sentimentos, tanto quanto possível,
até o esgotamento. Foi tudo que pudemos fazer.
Mas não conseguimos encontrar sentimentos novos,
nem mesmo entrever uma solução para esse
problema.
Não tenho nem as pretensões nem a possibilidade
de encontrar essa solução. Eu não
sou um moralista.
Meu filme não é nem uma denúncia
nem um sermão. É uma história contada
por imagens e eu desejo que se possa ver não
o nascimento de um sentimento enganador, mas o modo
pelo qual podemos nos enganar nos sentimentos. Pois,
repito, nós utilizamos uma moral envelhecida,
mitos caducos, velhas convenções. E isso
de plena consciência. Por que nós respeitamos
uma tal moral?
A conclusão à qual meus personagens chegam
não é a anarquia moral. Eles chegam, na
verdade, a uma espécie de piedade recíproca.
Isso também é velho, vocês me dirão.
Mas o que nos resta se isso?
Por exemplo, o que vocês crêem que seja
esse erotismo que invadiu a literatura e o espetáculo?
É um sintoma, o mais fácil de perceber
talvez, da doença que afeta os sentimentos.
Nós não seríamos eróticos,
ou seja, doentes de Eros, se Eros fosse uma boa saúde.
E, dizendo boa saúde, quero dizer simples, adequada
à medida e à condição do
homem.
Há então uma doença. E como acontece
sempre quando há uma doença, o homem reage.
Mas ele reage mal e fica infeliz por conta disso.
Em A Aventura, a catástrofe é uma
impulsão erótica desse gênero: barata,
inútil, infeliz. E não basta saber que
é assim. Pois o herói (que palavra ridícula!)
de meu filme percebe inteiramente da natureza grosseira
da impulsão erótica que o domina, de sua
inutilidade. Mas isso não basta.
Eis um outro mito que cai, essa ilusão de que
basta SE CONHECER, analisar-se minuciosamente nas dobras
mais recônditas da alma.
Não, isso não basta. A cada dia se vive
"A Aventura", seja uma aventura sentimental, moral ou
ideológica.
Mas, se nós sabemos que as velhas tabas da lei
não oferecem mais que um verbo por demais decifrado,
por que permanecemos fiéis a essas tabas? Eis
uma obstinação que me parece tristemente
comovente.
O homem, que não tem medo do desconhecido científico,
tem medo do desconhecido moral.
Michelangelo Antonioni
(Publicado originalmente em
Cinéma 60, nº 50.
Tradução de Ruy Gardnier)
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