Nos comentários de Jack Nicholson
presentes nesta edição do DVD de Profissão: Repórter,
a respeito da penúltima cena do filme, que dá conta
da morte de seu personagem num longo e inacreditável
plano-seqüência em movimento, o ator comenta que perguntou
a Antonioni o porquê desta sua escolha – que obrigara
a produção a construir do zero um hotel inteiro no meio
do deserto espanhol, para possibilitar a saída insuspeita
da câmera através das grades de um dos quartos, um hotel
que “se partia em dois”, como
diz o próprio Nicholson, entregando o truque –, e contra
toda a justificativa retórica e estética que se pudesse
esperar, Antonioni responde simplesmente: I just
didn’t wanna film the death scene. “Eu só não queria
filmar a cena da morte”. Um dos mais famosos planos-seqüência
da história do cinema foi produzido, paradoxalmente,
pela vontade de não ver.
Antonioni tinha sido um diretor que, até ali, ou um
pouco antes, até o começo de sua carreira fora do cinema
italiano, assumira o ofício do cineasta justamente como
o trabalho imperativo da visão. Suas imagens precisavam
ser pontos de atração centrípeta, para as quais tudo
convergia, justamente para que estas coisas pertencentes
ao mundo pudessem, pela simples organização diante de
um dispositivo imitador do olhar (como é uma câmera),
pertencer agora também ao cinema. Retirados de sua auto-regulação
natural e então atraídos por este terceiro ator dos
dramas cotidianos, homens e mulheres não mais dividiam
entre si seus dissabores, decepções e parcas alegrias,
mas incorporavam neste jogo um horizonte, um fora-de-tela
para o qual sempre podiam se desviar, uma nova fonte
de ressonância dessas emoções, que não era presença
física, mas que se sentia como tal.
Pensemos numa construção recorrente em O Eclipse,
A Noite ou A Aventura: no clímax de uma
discussão entre um casal, ou mesmo na jornada solitária
de um deles, haverá sempre o momento em que um personagem
se colocará no primeiro plano da imagem, relegando ao
fundo desfocado tudo aquilo que, naquele instante, o
repele, e, em silêncio, deixará seu olhar se perder
na vastidão do que está para além dos limites do quadro.
O Antonioni que vai até O Deserto Vermelho é
justamente este que encontra os olhares perdidos,
que os reúne: o que consegue dizer a estes personagens
desolados que existe ali alguém disposto a fazer ecoar
esta desolação, tirá-la do tédio burguês e instalá-la
no limite das dores da existência, e para isso precisa
que eles se disponham às investidas deste olhar objetivo,
exterior, que sempre os encontrará, não importa se isolados
numa ilha ou perdidos numa mansão em festa. Ver, aqui,
significa dar sentido ao existir, significa oferecer
algum ponto de extravaso ali onde tudo parecia rumar
para a introspecção muda e fatal. O preço disso é o
oposto, acúmulo e convergência: ainda que se tenha aberto
um fora-de-tela para o qual olhar, é preciso que se
faça isso de dentro da imagem; ainda que se tenha
permitido viver de maneira íntegra a angústia do não-saber,
é preciso se deixar filmar durante a dúvida. Se o espírito
tenta se redefinir, tenta descobrir quem agora é, o
corpo, este que não muda, servirá sempre ao desejo de
observação do cineasta.
David Locke, protagonista de Profissão: Repórter,
seria, assim, a manifestação suprema deste circuito
criado por Antonioni. Temos um jornalista de televisão
que vive da realização de documentários sobre temas
políticos de sua época (portanto, alguém que também
exerce esse trabalho imperativo da visão), mas que,
em algum momento da vida, decide embarcar na fantasia
do duplo, se fazendo passar por um sujeito que conheceu
casualmente e que morre de maneira repentina. Um personagem
que são dois, um corpo que muda de roupa e assim também
muda de personalidade, um outro espírito, um outro ponto-de-vista
flutuante tentando se equilibrar com aquele que ali
já habitava, e assim se repetiria aquele mesmo acordo
tácito entre câmera e personagem já visto nos filmes
anteriores, não fosse o fato de que aqui acontece uma
cisão fundamental entre estes dois. Ela certamente começa
no próprio David Locke, que não encara nunca a dupla
personalidade como motivo de confusão mental. A identidade
não é uma questão: Locke se torna Robertson, abandona
o eu anterior e se dedica ao novo – e mais que isso,
uma vez que também não consegue criar qualquer relação
com esta segunda identidade, Locke é verdadeiramente
uma subjetividade sem sujeito, uma fonte humana de emoções
e ações que, no entanto, parece estar descolada de qualquer
meio material e histórico através do qual se manifestar,
como se prescindisse de caráter, de passado, de definição,
e apenas estivesse ali usando o corpo de Jack Nicholson,
e chamando-se eventualmente “Locke” ou “Robertson”,
muito mais para orientar aqueles com quem convive do
que necessariamente para dar conta de sua própria existência.
Não haveria, portanto, maneira de estabelecer com este
não-personagem a mesma relação centrípeta de antes,
não haveria como exigir dele a mesma disponibilidade
aos desejos investigativos da câmera, uma vez que qualquer
relação identitária se desfaz diante de alguém que não
nos pode garantir identidade nenhuma. O que faria, então,
Antonioni, se a objetividade de seu olhar aparece em
xeque, desafiada pela dimensão fugidia de tudo aquilo
que se coloca à frente de sua câmera?
Voltemos a Blow-up, de 1966, ali onde Antonioni
filmou pela primeira vez fora da Itália, começo de uma
quadrilogia involuntária formada ainda por Zabriskie
Point, o documentário Chung Kuo – China e
nosso Profissão:
Repórter, todos eles “filmes estrangeiros”. O fotógrafo
de Blow-up encarna um amontoado de clichês do
sujeito-produtor-de-imagens, começa disfarçando-se de
operário para fazer uma série de fotos proto-políticas
de denúncia social no interior de uma fábrica inglesa,
sem disfarçar o interesse claramente mercadológico desta
investida, depois se impõe arrogantemente sobre um grupo
de modelos posando para uma revista de moda, consciente
de que é ele quem consegue perceber ali a possibilidade
da arte onde elas e nós só vemos roupas estranhas em
mulheres muito magras. Essa soberania sobre aquilo que
registra com sua câmera chega ao máximo na descoberta
do casal de amantes se encontrando secretamente num
parque, e na futura interpelação da mulher fotografada,
quando Thomas responde que a ele foi dado o direito,
por esta operação simples de estar num lugar com uma
câmera e perceber uma situação de interesse, de capturar
este instante de privacidade e torná-lo público. Ora,
contra todo este aparente controle que o fotógrafo exerce
sobre o mundo de coisas que se colocam à sua frente
e que ele transforma em imagem, Antonioni o desafiará
com a intromissão de um elemento decisivo dentro desta
imagem supostamente controlada e que, no entanto, escapou
completamente do controle de seu produtor. Numa foto
ampliada e recortada inúmeras vezes, ali onde se via
apenas um arbusto, Thomas encontrará o corpo de um homem
morto, um corpo que esteve sempre ali, mas que seu olhar
imediato fora incapaz de perceber.
Impossível não pensar na trajetória deste fotógrafo
como um rearranjo ideológico do próprio Antonioni. Em
algum momento de sua obra, aquilo que se acreditava
como a capacidade de desvendar as implicações mais íntimas
de personagens em conflito estava se tornando, cada
vez mais, o estudo das evidências, de uma intimidade
trazida à superfície, tornada artefato de exibição,
com aquele olhar imperativo de antes sendo destituído
de um “trabalho” propriamente dito, e funcionando mais
como exercício de afirmação deste poder sobre a imagem
(a seqüência final de O Eclipse,
abandonando a presença física dos protagonistas
e investindo no lastro imaterial que eles deixaram pelos
ambientes por onde passaram é o maior anúncio dessa
supremacia de quem produz uma imagem de alguém, um controle
de tal maneira alardeado que pode até mesmo prescindir
deste alguém, e ainda assim afirmar algo sobre ele).
Blow-up é um ataque a essa imagem-totem, a essa
consideração absoluta daquilo que está no primeiro plano,
um apelo para que se enxergue ali alguma
perspectiva interna, abandonando a investigação dos
corpos e dos espíritos em nome de algo que esteja
para além deles (a metonímia dos sentimentos, uma angústia
particular que vira a angústia de uma geração, de uma
época), e que passe a se importar com aquilo que está
no interior da própria imagem, mas que a visão superior
e distanciada não nos permitiu enxergar.
É por isso que, em Profissão: Repórter, Antonioni
já não mais pode oferecer a seus personagens a possibilidade
do fora-de-tela. Blow-up criou a separação entre
o registro de uma imagem e a completa insurreição dela
enquanto universo particular que, momentaneamente, se
deixa capturar por uma câmera. O que nasce ali é uma
distinção entre filme e cinema, entre o recorte de um
momento específico do fluxo daquele mundo ficcional
e a existência continuada deste, independente de qualquer
olhar exterior. Antonioni se assume, finalmente, enquanto
ponto-de-vista igualmente subjetivo, e quebra a dinâmica
entre o olhar perdido de seus personagens e sua obrigação
de encontrá-los. Cada pedaço de vida desses funciona
por uma lógica própria, e o trabalho da visão já não
está condicionado à produção de um sentido: paga
tributo exclusivamente à sua própria condição
de parcialidade, à investigação de sua própria intimidade,
de sua natureza observacional. Ver, agora, significa
questionar a existência deste olhar.
O equivalente daquela construção típica dos primeiros
filmes se encontra no plano em que Locke concretiza
a mudança de identidade. Temos novamente dois atores
em cena, no momento crítico de sua relação, ambos novamente
com os olhares perdidos, mas aqui não há horizonte fora
do quadro. A investigação é interior, e qualquer ressonância
só poderá ser encontrada com aquele que se dispõe ao
seu lado. Robertson se perde no vazio da morte, e Locke
o encara de frente, absorvendo dele não mais que um último brilho
de vida, prestes a se apagar. Os rostos não se viram
para a câmera, mas para si mesmos, e cabe a ela, cabe
à Antonioni testemunhar o momento
em que algo certamente está acontecendo, mas ao qual
não teremos acesso imediato (e talvez nem mesmo a longo
prazo). Tudo acontece no dentro-da-tela, e ainda assim,
como o corpo que o fotógrafo de Blow-up nunca
suspeitou estar ali, tanta coisa ainda há nesta imagem
que nós mesmos produzimos e que, curiosamente, nunca
deixará de ter algum quociente de mistério, de desconhecido.
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Os olhos agora se perdem
para dentro da imagem
Falando sobre Chung Kuo, Serge Daney dizia que
no documentário encomendado à
Antonioni pelo governo chinês nunca poderia acontecer
aquilo que em Profissão: Repórter se dá quando
um chefe tribal africano é entrevistado por David Locke
e, diante da fragilidade das questões que o entrevistador
propõe, pega a câmera e inverte sua posição, passando
ele agora a filmar o jornalista que o inquiria. Ora,
isso que Daney chama de “reversibilidade”, onde a câmera
passaria pela mão de diferentes atores dentro de uma
cena, confundindo-a, também não é possível em Profissão:
Repórter. Vemos este momento através da recuperação
de filmes antigos de Locke que, agora supostamente morto,
sua ex-mulher e seu ex-patrão reúnem para assistir numa
pequena sala de edição, um momento de filme-dentro-do-filme
que Antonioni utiliza como mais uma das maneiras de
trazer ao palco a discussão sobre o lugar do olhar no
cinema. Esta reversão do sujeito-produtor-de-imagem,
no entanto, nunca se opera no filme propriamente dito.
Estamos aqui sempre diante de um único ponto-de-vista,
que já não é mais o do “filme”, da “condição burguesa”
ou da “estética moderna”, mas do próprio Antonioni enquanto
também ator desta cena, enquanto sujeito
ativo, que tem vontades e desejos, dúvidas e
certezas. Um sujeito que divide com Locke sua errância
pelo mundo, seu não-lugar, sua tentativa de buscar algo
sem que nunca se saiba, no entanto, o quê (é assim,
por exemplo, que por um longo trecho Profissão: Repórter
se torna o filme policial de perseguição mais radical
de todos os tempos, porque muito mais interessado nas
razões que detonaram a perseguição ou nas conseqüências
dela, seu interesse é a simples movimentação de corpos
pela estrada, essência e, ao mesmo tempo, extrapolação
das regras do gênero).
E então retornamos ao plano-seqüência da morte de Locke.
Assim que chegam ao hotel, o jornalista e sua namorada-de-viagem
brincam de transferir o olhar de um para outro, como
se passassem uma procuração
para que o outro assumisse, ainda que momentaneamente,
seu trabalho de visão. Maria Schneider fica à janela
do quarto, e Jack Nicholson, deitado, pergunta insistentemente:
“o que você pode ver?”. Ela reporta a ele aquilo que
seu olho percebe, e que está no dentro-da-tela, acontecendo
em seu interior, ainda que, neste momento, encoberto
pela cortina presa à janela: nós também, espectadores,
precisamos confiar a visão à personagem de Maria Schneider,
porque também não sabemos o que se passa do lado de
fora. “Um menino e uma senhora. Eles estão discutindo
sobre que caminho seguir... Um homem coçando seu ombro.
Um menino atirando pedras. E poeira. Tem muita poeira
aqui.”. Mais adiante, já com
os dois deitados na cama, lado a lado, Locke contará
a história de um homem que nasce cego e que vive assim
até os 40 anos, mas que por uma operação milagrosa passa
a enxergar, e substitui o deslumbre do primeiro contato
visual com o mundo por uma depressão profunda, à medida
que agora também vê a feiúra disto que, até ali, lhe
parecia a perfeição, uma depressão
que o leva ao suicídio dois anos depois.
A separação entre aquilo que sente o personagem e aquilo
que sente o filme também se aplica aqui, e nunca poderíamos
afirmar, não depois de toda a duração de Profissão:
Repórter, que Antonioni comungasse desta mesma descrença
de Locke. Primeiro, porque aquelas imagens que sabíamos
antes apenas por procuração, vistas pela garota através
da janela, nos serão recuperadas por
Antonioni tão logo o plano-seqüência final avance
na direção do pátio em que todas elas aconteciam. É
como se a vida tivesse armado suas ações cotidianas
aos olhos da personagem e o filme, “chegando atrasado”
– mas ainda assim profundamente interessado em ver,
por si mesmo, aquilo que só conhecia pelo verbo –, rebobinasse
a realidade, de modo que ainda pudéssemos acompanhar
o menino e a senhora discutindo, o velho se coçando,
um outro garoto atirando pedras, sem que nenhuma poeira
(nenhum intermediário entre nosso olho e a vida) estivesse
no caminho. Esta é a beleza do mundo, isto é o que o
tal cego da história primeiro enxergou, mas nosso deslumbre
não pode esquecer aquilo que já sabemos existir e que
o cego, no êxtase da nova experiência, nem suspeitava.
A feiúra é a própria morte de Locke, mas também não
caberia aqui escapar dela com um suicídio (ou no caso,
forjando um fim para o filme que evitasse o momento
da morte, que nos fizesse despedir de Locke quando ele
ainda estivesse vivo).
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Começo e fim do plano-seqüência:
um corpo sem rosto, uma morte invisível
Antonioni brigou consigo mesmo, com seus filmes anteriores,
para conquistar o direito de escapar, de produzir imagens
agora centrífugas, dispersas, e mesmo puramente imaginadas.
Foi Antonioni quem quis ver uma grande explosão em Zabriskie
Point, foi ele quem quis encenar aquilo com que
o personagem apenas sonhara, do mesmo modo como quis
ver nos espaços vazios da seqüência final de O Eclipse
as figuras ausentes de Monica Vitti e Alain Delon. Agora
ele se depara com algo que não quer ver, e exerce este
seu direito – ou melhor, filma esta falta de vontade.
E, para isso, o plano-seqüência, tornado aqui a única
maneira possível de se fugir da imagem da morte. Como
havia dito Pier Paolo Pasolini em suas Observações
Sobre o Plano-Seqüência, de 1967, este tipo de registro
é o limite realista máximo de qualquer técnica audiovisual,
porque é um investimento claramente subjetivo que pretende
a reprodução do presente. Pasolini ataca o plano-seqüência
como a tentativa de se alongar a vida no máximo possível,
forjando uma extensão temporal que “engana” a morte
ao prescindir da montagem, ao prescindir daquilo que,
de acordo com o teórico, é o que dá sentido
a nossa existência. “A morte realiza uma montagem
fulminante da nossa vida”, e assim filmar a morte de
Locke desta maneira, não filmando, não mostrando, e
ao mesmo tempo a envolvendo num plano que tenta reproduzir
a vida que ainda acontece, como se embalsamássemos Locke
num pedaço de existência evidentemente fadada a tal
“montagem fulminante” mas onde, idilicamente, temos
a sensação de que tudo ainda pode ser diferente, não
passar de um susto ou um engano (e é determinante que,
ao longo de todo o plano, nunca vejamos o rosto de Locke,
como se sua última mudança de identidade fosse a de
desaparecer por trás de um corpo sem face, sem aquilo
que o diferencia de todos os outros corpos), enfim,
filmar a morte de Locke desta maneira é traçar um limite,
que é moral acima de qualquer outra coisa. Antonioni
sempre lidou com a vida, mas até O Deserto Vermelho
acreditava que só era possível restituí-la no cinema
através de uma agenda de trabalho que inibisse sua manifestação
natural e a tornasse, portanto, dominável. Profissão:
Repórter é o lado oposto da moeda. Um cinema de
olhar fragmentário, às vezes contraditório, que pulsa na mesma batida daqueles
a quem acompanha. Um Antonioni que trabalha exclusivamente
com os tempos vivos.
Rodrigo de Oliveira
(DVD:
Sony Pictures)
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