A sensação de dia, de
ser atravessado por uma unidade de tempo que condensa
experiências (de forma a ser talvez a mais concreta
medida desta percepção abstrata), colore a obra de
Gus Van Sant de uma forma intensa. Não como dado que
organiza a narrativa (datas e passagens de tempo que
situam a história – humoristicamente satirizadas por
Buñuel em Um Cão Andaluz), mas como atmosfera
que embala atividades e sentimentos.
Have a nice day. A epígrafe de Garotos de Programa é também
o mote que ecoa no perambular de Scott e Mike, repleto de vivências efêmeras
e esparsas; de inesperados encontros e rumos imprevisíveis. E a trajetória
destes personagens – ou o que conhecemos dela – é, para Van Sant, uma questão
de estudo de atmosfera. Atmosfera do submundo de Portland; das estradas
de Idaho; da memória; de uma amizade. Nesta “meteorologia”, a observação
do céu, das paisagens, das mudanças de clima, torna-se questão cinematográfica.
O sol, o vento, as nuvens, as tempestades, os relâmpagos, são manifestações
em sintonia com as variações humanas, que o cinema pode melhor compreender
quanto mais afinado estiver com este etéreo captado pela câmera.
Assim como o balançar das folhas das árvores nos filmes dos irmãos Lumière
prenunciava a potência silenciosa da arte que nascia, as nuvens em movimento
de Gus Van Sant estabelecem uma conexão secreta entre homem e natureza, que seus
filmes testemunham sem alarde. Em Elefante, a tempestade que se anuncia
no avançar imponente de nuvens carregadas sugere que o tempo está para mudar,
que algo pesado irá impregnar o dia; em Garotos de Programa, as camadas
de nuvens correm, como as imagens tremidas dos sonhos em Super-8 de Mike, selando
a ligação íntima da paisagem com o interior do personagem. Estes planos fugidios,
do tempo esvanecente e das memórias imprecisas, trazem para o filme a dimensão
narcoléptica (e lacunar) de sua vida. O desenrolar elíptico da narrativa é o
de um road-movie sonolento, em que a “collage” de diferentes registros
e situações faz a disparidade das experiências ceder lugar a um único fluxo contínuo,
permeado de pequenas confidências.
Garotos de Programa se descobre arritmicamente; se deixa levar,
entregue a seus personagens. Mike é o jovem cuja alma parece residir exatamente
na estrada em que ele se encontra no início do filme, um vasto caminho
aberto entre pradarias que se estendem até o horizonte. Um não-lugar; espaço
paradoxal, ao mesmo tempo pura passagem e rota em uma mitologia
da conquista, filmado por Gus Van Sant como um espaço de absoluta imobilidade;
planície-tabula rasa, onde as motos morrem e onde Mike é capaz de deitar,
dormir e imaginar uma casa no centro do universo. Nesta paisagem apreendida
afetivamente (“my own private Idaho”), somos imersos, para transitar
livremente pelo universo emotivo de Mike.
É desta forma que Scott subitamente irrompe no filme: quando retorna ao cotidiano
do protagonista, trazendo à superfície um profundo afeto. Ele é o filhinho do
prefeito que resolveu se aventurar pelo underground, sendo apadrinhado por Bob,
o Falstaff de Van Sant. Mas Scott está em iminente desequilíbrio: anuncia que
vai se endireitar em breve e assume um tom de aventura proibida para os seus “anos
selvagens”. Neste movimento de declínio, ele pende para o amigo Mike; e, como “última
cruzada”, toma para a si a missão de ajudá-lo a encontrar a mãe. Os dois partem,
então, numa jornada que ganha um delicado caráter íntimo e termina por configurar
um novo equilíbrio para o microcosmo em torno de Mike.
Há três linhas narrativas intercruzadas em Garotos de
Programa:
a amizade
de Scott e Mike; a relação de Mike com o mundo, marcada pela narcolepsia e por
sua memória familiar; a dupla paternidade shakespeariana de Scott, com sua ascendência
burguesa e sua degeneração marginal. Mas apenas uma sensibilidade a guiar o filme:
a de Mike. Uma irremediável melancolia é, portanto, disseminada pelos dias que
as imagens sintetizam, no momento em que Scott rejeita sua declaração
de
amor,
cruzando um ponto de não-retorno em direção ao seu afastamento
da vida “livre”, desregrada, que compartilhavam. Em volta de uma fogueira, os
dois personagens conversam, evidenciando sua posição no mundo e o estado afetivo
de um em relação ao outro, numa das mais belas e tristes cenas de todo o cinema
de Gus Van Sant.
O “declínio” paradigmático de Scott carrega tudo consigo: prenuncia o falecimento
do
pai, de quem ele será o herdeiro, e condena Bob à morte, pela indiferença –,
selando a supremacia de uma ordem social sobre a liberdade de existir. Se antes
seu desvio particular era motivo de regozijo e possuía um efeito potencializador
da transgressão praticada como declaração de princípios, sua correção de rumo é o
lamento que só pode ser remediado através de radiante afirmação libertária. O
velório de Bob, promovido sob forma de uma alegre farra, por toda a “comunidade” que
liderava, acontece próxima e paralelamente ao velório formalíssimo do outro pai
de Scott, o ex-prefeito da cidade. A troca de olhares que se dá entre Mike e
Scott catalisa o peso da escolha deste e a infeliz distância que agora os separa.
Mas o dia muda – e, com ele, a atmosfera. Solto no mundo, Mike continuará descobrindo
as horas, sob as mais diversas companhias. Afinal, liberdade é tomar o mundo
para si. E não morrer de amor.
Tatiana
Monassa
(DVD: PlayArte)
|