O INVENTOR DE ILUSÕES
Steven Soderbergh, King of the Hill, EUA, 1993

E então O Inventor de Ilusões é lançado em DVD, e na capa dele, logo acima do título, lê-se: “Do diretor de Traffic e Onze Homens e Um Segredo”. O que se poderia oferecer ao espectador na descoberta de um filme obscuro e pouquíssimo conhecido senão esta garantia de “produto de boa procedência” afiançada por dois outros filmes de sucesso? Curioso é que, para além da segurança mercadológica, existe algo ali naquelas duas referências que podemos de fato reverberar no filme de 1993. Antes de tudo, a habilidade que Steven Soderbergh tem para caminhar por gêneros tão diferentes, com as paradas eventuais naquele que ele próprio ajudou a inventar, o “filme independente americano”, este pequeno monstro. Vamos do thriller político ao filme-de-assalto sempre com a mesma disposição de trabalhar o gênero em movimento, não indo buscar nas fórmulas do passado um lugar no qual se instalar, mas sim um reativar das engrenagens, agora com sentido renovado: filmar um gênero no gerúndio, em seu “acontecendo”, como se sua duração ainda não tivesse se esgotado. Para isso, Soderbergh precisou abandonar aquilo que mantinha estes modelos estáticos, aquilo que, controversamente, era o que mais lhes parecia caro. Do filme-de-assalto eliminar a armação do golpe e esperar para que todos os efeitos mirabolantes apareçam na tela diretamente como ação, e não primeiro como apenas um plano a se pôr em prática; no thriller político, suspendê-lo daquilo que supostamente lhe daria força, da relação submissa com uma realidade pragmática do qual ele seria uma alegoria, fazer do painel generalizante um filme em que os dramas particulares não sirvam de metáfora para nada a não ser eles mesmos. E é ali, na devoção a um gênero e naquilo que dele foi preciso rever, que O Inventor de Ilusões vive.

Talvez fosse possível dar uma aula sobre o cinema clássico-narrativo americano com este tardio exemplar que é O Inventor de Ilusões, tal a dedicação de Soderbergh em amarrar a narrativa com tanta conseqüência, onde nenhuma informação é aleatória, onde nenhum objeto de cena rapidamente percebido em detalhe não deixa de voltar no fim da trama para cumprir um grande papel dramático, onde todo personagem tem sempre a medida exata, dizendo sempre as palavras justas, a um passo da tipificação mas sem nunca chegar lá, de fato. Primeiro temos o drama social, historicamente delimitado: estamos no Missouri, 1933, com a Grande Depressão arrombando as portas das famílias mais pobres. Nosso protagonista, Aaron Kurlander, está numa delas, e assim Soderbergh equilibrará esta trajetória nacional com os poucos meses que transformam a vida privada deste menino, como num romance coming of age típico (as memórias de A.E. Hotchner nunca deixam de parecer um recorte menos radical dentro da história de um Oliver Twist, por exemplo – e, aliás, a direção de Soderbergh faz lembrar bastante a adaptação que David Lean fez para o livro de Charles Dickens). Lidar com este pedaço da História através de sua reconstrução fiel seria, no entanto, se chocar com aquilo que o título em português do filme já anunciava, e que nos é colocado desde a primeira cena, desde a primeira imagem de O Inventor de Ilusões. Aaron é um contador de histórias nato, e que não se confunda isso com “mentiroso”. Quando diz à sua classe que recebeu um telefonema de Charles Lindbergh, poucas horas antes do vôo histórico que realizaria sobre o Oceano Atlântico, porque o piloto, seu amigo de longa data, queria dicas sobre o que levar para comer durante as 34 horas de duração de sua jornada, Aaron chega à raiz do storytelling, vive as emoções de cada passagem da história com entonação e ritmo precisos, busca reações do público, envolve-os numa rede de imaginação que é tão mais atraente e interessante que qualquer pedido por acuidade histórica e verossimilhança do relato.

O cenário da Depressão que Soderbergh oferece a seu protagonista não poderia ser outro senão um igualmente destacado da realidade, como se a sobrevoasse. Não apenas Aaron: todos os personagens de O Inventor de Ilusões aparecem suspensos, cada um vivendo sua própria relação com esta possibilidade (e muitas vezes obrigatoriedade) de escapar do mundo e se instalar em seu holograma. O pai é um imigrante alemão com muito pouco tato na relação com os filhos, afogado em dívidas, e quando finalmente consegue um emprego de vendedor ambulante, terá que exercê-lo em outros estados, e não no Missouri, como se ali qualquer tentativa de “fazer coisas a sério” fosse impossível – assim já tinha sido com o irmão menor, mandado a viver com um tio distante para que a família pudesse economizar dinheiro. A mãe enferma é mandada para um sanatório, e a maneira como se porta sugere que sua doença também provoque alguma alteração mental, uma leve demência, talvez. Do mesmo modo, a menina que mora no quarto ao lado e de quem Aaron levará seu primeiro beijo, entra em transe quando dança uma música romântica com o menino, mas paga o preço dessa ilusão positiva com um ataque epilético, que voltou a ter desde que o dinheiro para comprar o remédio acabou. O vizinho Sandoz, primeiro a ser expulso de seu apartamento por falta de pagamento, artista plástico que pintara um retrato de Aaron, não consegue se lembrar do menino quando, já vivendo numa pequena favela e tomado pela loucura que a pobreza absoluta traz, o vê passando num ônibus pela rua. Até mesmo o padrinho espiritual de Aaron, o malandro Lester, é anunciado num plano de aproximação da câmera que o engrandece na tela e faz seu estilo camiseta-branca-apertada e franja-caindo-na-testa supor um galã completamente inviável para o ambiente decrépito e desglamourizado do hotel em que todos ali vivem. O que diferencia estes personagens de Aaron é que apenas ele é senhor de suas ilusões, apenas ele é capaz de criar e controlá-las, enquanto os outros apenas se impregnam dela, quase inconscientemente, e é por isso que vão, um a um, abandonando o menino, incapazes de acompanhar seu passo, tragados pela roda histórica, que pode até ser desabonada, mas nunca esquecida. Soderbergh, ele também no controle das invencionices de uma arte ilusionista por excelência, é o único que não poderia nunca abandoná-lo.

Aaron (interpretado com um fôlego encantador pelo então garoto Jesse Bradford) é um problema com o qual cineastas sempre tem dificuldade em lidar. Estamos aqui diante de uma pessoa boa, naturalmente boa, e é complicadíssimo se confrontar com o bem sem fazê-lo parecer um truque de roteiro. Bom caráter, trabalhador, criativo, honesto, adjetivos colados à Aaron pelo professor que o entrega o prêmio de melhor aluno do ano, e todos eles são verdadeiros. Se um menino desses vai ao inferno, e se um diretor esteve com ele até ali, buscando nos closes o reflexo máximo do brilho de seus olhos, buscando nas suas histórias imaginadas o material para a imaginação de seu próprio filme, não há outra coisa a fazer senão ir buscá-lo lá embaixo. O Inventor das Ilusões mantém sempre uma aura alaranjada sobre suas imagens, um aspecto de golden age que combina muito pouco com a dureza dos anos em que se passa, mas essa luz sempre presente, sempre glorificando a ação como se tudo acontecesse ao entardecer, é uma das garantias que o filme pode dar a seu protagonista. Se sua trajetória de maturação exige que ele vá até o fundo do poço, o retorno, merecido, está logo ali à frente. Soderbergh oferece este mundo de trilha sonora de desenho animado, de perseguições de carro, de comentários cômicos, de superação e redenção, e tudo isso para que Aaron apenas continue sendo o golden boy que sempre foi – para, quem sabe eventualmente, ainda dividir conosco mais um pedaço de suas grandes idéias.

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Universal)

 








Aaron (Jesse Bradford), um verdadeiro menino de ouro



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