Há filmes que permanecem na
memória coletiva ao longo dos anos. Há outros, que apesar
de extensa consagração à época de seu lançamento, vão
aos poucos caindo no esquecimento. Esse parece ser o
caso de O Homem Que Não Vendeu Sua Alma. Incensado
quando de sua estréia e vencedor de inúmeros prêmios
– entre eles Oscars para melhor filme e direção – o filme não persistiu
como clássico com o passar dos anos. Ao contrário de
outros trabalhos do diretor Fred Zinnemann,
como Matar ou Morrer (1952) ou A Um Passo
da Eternidade (1953), que conquistaram espaço duradouro
no imaginário de críticos e cinéfilos. As razões que
explicam tanto a resposta de primeira hora quanto o
esquecimento posterior, ficam patentes ao se rever o
filme.
O Homem Que Não Vendeu Sua Alma retrata o calvário
do pensador católico renascentista Thomas More, que
ocupou posição política de destaque na corte do rei
Henrique VIII e foi aos poucos caindo em desgraça ao
se indispor com o governante, quando este manifestou
o desejo de anular seu casamento com a primeira esposa
e se unir a Ana Bolena, num
processo que desaguaria em rompimento com a Igreja Romana
e proclamação do rei como líder da Igreja Anglicana.
Católico ferrenho e homem de firmes convicções,
More recusou-se a reconhecer a legitimidade da
união e da nova igreja, acabando por ser acusado de
traição e executado.
O Vaticano veio, posteriormente, a canonizar Thomas
More. E se não bastasse a santificação oficial, o filme segue o mesmo caminho, apresentando-o
como homem correto e justo, que em nenhum momento abre
mão das suas convicções, pessoais ou religiosas, mesmo
em prejuízo de seu prestígio político e da vida pessoal
de sua família. O trajeto para o martírio acaba sendo
inevitável. Daí surge uma das principais limitações
de O Homem Que Não Vendeu Sua Alma, o retrato
unifacetado e simplista do
personagem. Um poço de virtudes e abnegação, que não
podia ter outro destino se não o de tornar-se mártir;
vítima irrefutável de um tirano (Henrique VIII), um
corrupto (Thomas Cromwell) e um arrivista traidor (Richard
Rich). Curioso perceber que,
apesar de feito santo católico, Thomas More, como apresentado
no filme, poderia ser enquadrado no conceito, a princípio
paradoxal em sua essência, de um “santo nos limites
da ética protestante”. Apesar de defensor da doutrina
papal e de ver os reformistas
luteranos como “hereges”, More, dentro da inflexibilidade
de seus ideais, o tempo todo, mesmo durante seu julgamento
e nos instantes imediatamente anteriores à sua execução,
porta-se de maneira racional, nos limites de um pragmatismo
associado a um humanismo compatível com o momento histórico
do renascimento e da reforma religiosa, e distante do
sofrimento exacerbado com que se convencionou retratar
os mártires católicos.
Por certo esse verniz histórico e humanista foi o principal
responsável pela ótima aceitação do filme imediatamente
após sua chegada às telas. Como se não bastasse, O
Homem Que Não Vendeu Sua Alma parte da adaptação
de uma peça teatral igualmente consagrada
e premiada, escrita por Robert Bolt. Mas ao contrário dos roteiros que concebeu para
David Lean (Lawrence
da Arábia, A Filha de Ryan),
nos quais trabalha universos complexos e personagens
contraditórios, Bolt é aqui
demasiado respeitoso e solene para com seu próprio material.
O roteiro parte de uma estrutura dramática totalmente
esquemática e previsível. O melhor exemplo para isso
já se vê na primeira aparição da figura de Richard Rich (interpretado por John Hurt).
Quando ele é enquadrado já percebemos que será ele quem
irá, em algum momento do filme, trair o protagonista.
Toda a inflexibilidade de atitudes e pensamentos de
Thomas More parece igualmente ter contaminado a direção
de Fred Zinnemann. O filme
é uniformemente imerso em uma desagradável rigidez.
Essa rigidez já se manifesta a partir dos enquadramentos,
por vezes óbvios demais, ou por vezes até mesmo inadequados,
parecendo simplesmente não serem as melhores opções
para retratar a cena. Soma-se a isso uma montagem preguiçosa
e tudo contribui para que se questione, ao menos pelo
que apresentou em O Homem Que Não Vendeu Sua Alma,
o quanto Zinnemann teria conseguido
manter ao longo dos anos, o prestígio conquistado enquanto
cineasta.
Também não há como deixar de destacar – negativamente
– o ritmo impostado das atuações. O elenco se porta
a todo o momento num tom de solenidade teatral que remete
a um pretenso “padrão de qualidade” dentro da escola
britânica shakespeariana de atuação, contribuindo, porém,
para que os atores se comportem em cena mais como estátuas,
peças de museu. Mesmo que premiada e decantada, a atuação
de Paul Scoffield como Thomas
More não parece ultrapassar uma dureza monocórdia. Apenas
Robert Shaw, em sua breve
participação como o rei, tenta driblar em parte o excesso
de teatralidade. São mais razões para se repensar um
filme para com o qual uma revisão distanciada no tempo
não vem a ser nada generosa. E que só aumentam a impressão
que O Homem Que Não Vendeu Sua Alma já surgiu
como obra velha desde seu nascedouro.
Gilberto Silva Jr.
(DVD:
Sony Pictures)
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