O ECLIPSE
Michelangelo Antonioni, L’Eclisse, Itália/França, 1962

Big Bang!

O Eclipse
é particularmente marcante em relação a uma característica presente em muitos filmes de Antonioni: a narrativa como uma espera pelo desfecho, uma jornada de fadiga dilatada justamente para que o final sobressaia em maior intensidade. O filme dá todos seus sinais de cansaço, pede pelo fim, e este por sua vez vem como, a um só tempo, justificativa e revisão de todo o resto. O Eclipse apresenta aquele tipo de desfecho arrebatador que Blow Up reprisaria em versão singela e Zabriskie Point e Profissão: Repórter fermentariam consideravelmente. O final de Zabriskie Point, pra dizer a verdade, pode ser visto como a versão psicodélica do eclipse de O Eclipse. São duas das melhores seqüências de Antonioni, duas apoteoses abstratas, cada uma correspondendo a uma fase distinta na obra do diretor. Enquanto Zabriskie Point testemunha, na continuação de Blow Up, um impulso de dissolução em terras estrangeiras (o autor se apaga – e, dialeticamente, se torna ainda mais presente – para ser o receptor das palpitações, das impregnações atmosféricas de um espaço e sua cultura), O Eclipse, salvo um ou outro momento de tédio puro, é o filme mais “acabado” da tetralogia com a Monica Vitti, mais até que o posterior Deserto Vermelho. Todo o estudo plástico e estrutural do preto-e-branco iniciado em A Aventura (ok, O Grito já era quase a mesma coisa sem a musa Vitti) parece ter ali naquela seqüência final de O Eclipse um ponto de chegada do qual Antonioni é o artífice hiper-consciente. Se há algo a reprovar nos filmes dele da primeira metade da década de 60, aliás, é o excesso de controle sobre os efeitos – em outras palavras, o auto-maneirismo de certos planos saturados de plasticidade, de mestria gráfica, quiçá de antonionices, figuras de estilo recalcadas sob um desejo de pintura e de arquitetura que tornava os filmes peças de museu precoces. Mas O Eclipse, assim como A Aventura, realmente mantém, quatro décadas depois, aquela opacidade irredutível que sempre gerou fascínio em Antonioni, e que o faz escapar às armadilhas de marcas autorais levadas a sério demais.  

O que nutre as narrativas dos filmes de Antonioni é uma forma filtrada de mistério, talvez um mistério em estado puro. O Eclipse, exemplarmente, não pretende chegar ao segredo que há por trás da narrativa, pois esta é o próprio desenho desse segredo. O elemento secreto não está lá como ponto de chegada, mas sim como estrutura, como planta – no sentido arquitetônico: o desenho geométrico que precede a construção. No nível plástico, isso permite que Antonioni trabalhe o plano como um espaço vazio de sentidos a priori, uma superfície na qual ele pode livremente imprimir signos, mover peças, tratar personagens como manchas de tinta. No nível narrativo, isso significa que o diretor tem um plano traçado para seus personagens, embora eles não saibam. Podemos até suspeitar que o filme opera a dissolução simultânea de todos os mapas, geográficos e mentais, que estariam em sua base. Antonioni, contudo, não desvia de certas rotas preestabelecidas: continua valendo para os personagens de O Eclipse a mesma sina de desaparição e separação de A Aventura. Quando ameaçam desenvolver relações entre eles, os personagens somem na poeira, no vento, na noite, no eclipse.

A personagem de Monica Vitti em O Eclipse passeia pelo mundo munida de uma atenção redobrada; ela percebe detalhes visuais e sonoros numa quantidade acima do normal, está imantada aos movimentos e aos caracteres irrelevantes da realidade (mas irrelevantes somente de um ponto de vista não cinematográfico). O filme desvenda esses pequenos eventos escondidos entre as coisas, sem que os personagens se entreguem a situações concretas. Tudo permanece muito fluido e informe, nem mesmo uma relação amorosa consegue se concretizar, sendo apenas vivida em fragmentos – entre os personagens de Vitti e Alain Delon surge um namoro muito frágil, muito truncado. O Antonioni da era preto-e-branco vive um momento-limite: o uso do mistério como pretexto narrativo e como rede de segurança para a pesquisa formal já se torna por demais esquemático. A prova de que há uma fronteira sendo ultrapassada está no fato de que algumas partes do filme são realmente chatas, parecem feitas meio em piloto automático, soando como frias demarcações de estilo (a passagem para o colorido de Deserto Vermelho virá em boa hora). Fica faltando alguma coisa, possivelmente algum elemento forte na ficção propriamente dita, algo mais que cenas posadas e retraídas. Nas cenas na bolsa de valores essa impressão diminui, porque ali parece haver um elemento ficcional mais interessante (apesar de eu achar aquele “minuto de silêncio” feito em meio ao caos da bolsa uma ênfase desnecessária, e uma obviedade em termos tanto de efeito-cinema quanto de comentário irônico).  

Logo que o filme começa, Vitti abre as cortinas da casa de seu namorado, enquanto discute com ele, e a vista que surge pela janela é de um espaço estranhamente futurista e desconexo. O movimento do filme fica estabelecido como do interior para o exterior, mas sem sair da cápsula asfixiante de um universo mental confuso e paralítico. O espaço funciona como a continuação da fragilidade e da súbita desfamiliaridade em que os personagens são apanhados internamente. Os dez minutos finais irão condensar o movimento de “exteriorização” (embora nesse filme o espaço faça pouco mais do que refletir a interioridade, o que já é em si um clichê antonioniano), em tomadas externas que menos encerram do que congelam o filme. O final é quase um curta-metragem de bônus, um pequeno documentário poético sobre o dia em que a Terra parou. Há em Antonioni uma confessa influência do expressionismo abstrato, que permeia todo o filme e que nessa cena é levada ao extremo. O eclipse gera um lusco-fusco existencial, e de uma hora pra outra nenhuma presença é 100% assegurável.

Nos filmes de Antonioni, mesmo o desligamento narrativo mais radical nasce de um desabrigo subjetivo, uma sensação de perda de si totalmente colada às veleidades dos protagonistas. Essa sensação, quando identificada ao olho mecânico e impessoal da câmera, rende uma profunda neutralidade, quase um olhar de vigilância, tamanha a desafecção que veicula. A tarefa desse olhar é fazer uma minuciosa decupagem de espaços neutros, exatamente como na seqüência final de O Eclipse. A figura humana é aquilo que precisa sumir da frente da câmera, as pessoas evaporam em si mesmas, desaparecem como figura e se tornam descasos da matéria, transeuntes que estão no filme por acidente, corpos fugidios, comparáveis ao líquen e aos insetos, afogados na entropia do universo. Deve sobrar apenas o espaço. Temos a impressão de que o cenário vazio ali restante pode se prolongar para além do filme randomicamente, reproduzir-se ao infinito do fora-de-quadro (como em Mondrian). O regime figurativo é deglutido por uma espécie de hecatombe abstracionista. Na última imagem do filme, aquele close no poste de luz, é como se o diretor prestasse seu tributo, através da explosão do branco, às revoluções artísticas que havia herdado. Antonioni encontra na nova sensibilidade espacial da modernidade o solo fértil ideal para seu paisagismo abstrato – por isso ninguém pode dizer que ele reprova moral ou esteticamente os tecidos urbanos modernos, nem que os enxerga com negativismo. Nesse terreno ele é mestre. Os minutos finais de O Eclipse não só fazem valer o restante do filme, como estão entre os mais violentos investimentos de energia criadora do cinema de Antonioni.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD: Versátil)

 


















Imagens da seqüência final de O Eclipse





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