O DESERTO VERMELHO
Michelangelo Antonioni, Il deserto rosso, Itália/França, 1964

Michelangelo Antonioni é um desses cineastas aos quais a memória convencional da história do cinema pregou peças. Ele claramente está lá, no panteão das renovações formais da virada dos 50 para os 60, então não é questão de esquecimento. Mas se formos ver o que ficou guardado para a tradição, veremos apenas um conjunto de filmes, geralmente conhecido como "trilogia do tédio", tomar todo ou quase todo o reconhecimento. Pela novidade, pelo escândalo, pela elegância, pela economia de meios transformada em objeto chique ao escavar o vazio de uma burguesia ociosa. Bom, nada disso é mentira, e esses filmes de fato são bastante dignos de atenção. Mas quem decidir parar em A Aventura, A Noite e O Eclipse achando que já teve o essencial do cinema de Antonioni estará redondamente enganado. Na verdade, estará pegando apenas o começo do enigma.

Porque, logo depois de sua trilogia, Antonioni adensa sua busca, radicaliza sua forma, abandona um verniz de elegância mais palatável que abrandava a relação do espectador com seus personagens disfuncionais. Deserto Vermelho é o primeiro dessa série, e talvez o mais loucamente delirante, o mais excessivo, o mais intensamente em busca de uma forma tão confusa e desagradável quanto a sensação de deslocamento que oprime seus personagens. E, last but not least, é preciso falar que Deserto Vermelho é o primeiro longa-metragem em cores de Antonioni. E que, mesmo que ele só fizesse esse filme em cores, o trabalho de cor já seria um dado fundamental em sua carreira.

Opressão é uma palavra boa para começar a descrever a sensação de mal-estar que Deserto Vermelho deixa em nós. A começar pelo ambiente: fábricas, fumaça, lixo industrial, navios, corrimões em linhas retas e frias, cores primárias homogêneas que, ao invés de encher o ambiente de vida, se revelam "robóticos" por seu monocromatismo. Na paisagem, nada muito diferente: a natureza é ora vista como um pátio de descarga de lixo, ora como um deserto, e na maioria das vezes como uma várzea, um terreno inútil ou abandonado. Ou uma paisagem útil, ou o inútil da paisagem. E, correlato da imagem, há o som: uma verdadeira sinfonia de ruídos angustiantes vindos da fábrica, que a edição de som transforma em agressão sonora pura e simples (há até um espaço para o barulho "solar" na troca de telefonemas para caçar operários para substituírem aqueles em greve). Quando não temos a opressão sonora externa, temos a interior da personagem, num som agudo estridente que aparece toda vez que a condição de Giuliana (Monica Vitti, jamais tão bela, desorientada e lacônica do que aqui) parece piorar. Como ideal de vida a se almejar, não há muita esperança: o filho parece ser educado já para ser um pequeno cientista, uma cabeça calculante que incorpora em suas brincadeiras um robô de assustadores olhos luminosos e kits de química que já antecipam um futuro de carreira.

A pergunta que o filme não faz diretamente, mas faz aparecer no absurdo de cada seqüência, é: qual é o lugar do humano numa sociedade ocupada cada vez mais pelas operações industriais, pela especialização e segmentação do trabalho e pela ideologia utilitarista reinante? Em Deserto Vermelho, a angústia da alma dos três filmes anteriores ganha materialidade e surge no mundo. Através de Giuliana, o que o filme dramatiza é a fragilidade humana diante do enorme gigante industrial que o próprio homem cria: traumatizada por um acidente de automóvel, ela é uma mulher instável, indecisa, à beira de um comportamento totalmente patológico. E, por sua própria posição de precariedade e não-utilidade, é ela que "encarna" (na falta de melhor palavra) o substrato dos dramas humanos de seu tempo. Sua casa, tomada por decoração e móveis hi-tech que fazem com que mesmo no lar ela se sinta como numa fábrica, não é casa: o único lugar que oferece algum consolo espacial é a casa em reforma que ela pretende utilizar como algum tipo de loja (ela não sabe para vender o quê) . Paredes semi-pintadas em diversas cores diferentes, objetos fora de lugar, ausências e sobretudo um nada de utilidade: o que resta de ainda não-dominado pela lógica da produção e do trabalho.

Deserto Vermelho consegue a enorme façanha de ser fiel à desorientação de sua personagem. Pois, se num momento o filme se arma para ser um relato de encontro/interesse/relacionamento entre um homem e uma mulher (o homem é Corrado, interpretado por Richard Harris, amigo de longa data de Ugo, marido de Giuliana) e uma conseqüente superação do estado de letargia da personagem, ao longo da projeção essa expectativa é inteiramente quebrada e o fim do filme revela, pela repetição da locação do início, uma volta ao mesmo regime de estagnação. O que há, no fundo, é uma falsa viagem por um universo de "doce vida" em que o sexo é vivido meio como commodity, como petit gâteau simpático e trivial, em que a diversão se mistura com destruição (na cena do desmonte da parede) e, de forma geral, uma certa agressividade recalcada que é atualizada ali onde não se espera. Se há um espaço de liberdade, é o escape: a fábula que Giuliana conta ao filho sobre uma moça que vive sozinha numa ilha ensolarada, em que as pedras assumem formas humanas. Como se, jogado num mundo determinado pela transcendência da produção e do trabalho, a saída do humano fosse um isolamento primitivista com a natureza ela mesma tornada panteísta. Não à toa, quem canta para ela é "tudo", conta o mito.

Para um filme cujo uso de cor é tão famoso (o filme está na listinha dos dez melhores usos de cor em todo o cinema não-americano para Martin Scorsese), Deserto Vermelho nem oferece o deslumbre imaginado. A cor no filme funciona – sublime, impecável – num sentido de construção dramática, utilizando alguns tons pastosos, híbridos, insidiosos, saturando a imagem e dando a ela um sentimento arrastado dum espaço pouco agradável. Verde musgo ou vermelho exagerado, as cores não exercem uma função puramente ornamental (como os filmes geralmente elogiados como "muito coloridos"), mas funcionam para construir uma atmosfera e dar o tom de indefinição sentimental e asfixia em que vive a personagem de Giuliana. A sensualidade das cores e da construção arquitetônica das imagens que seria um traço característico do cinema de Antonioni depois de meados dos anos 60 só tem lugar em Deserto Vermelho no momento em que a imagem é tomada pela fábula que a mãe conta ao filho – sol, praia, pedras, tudo serve para dar um clima de exuberância de uma natureza sexualizada (imagem 4). Fora disso, não adianta procurar no mapa para onde ir: o mundo é inabitável.

Como grande especialista em construir espaço através de enquadramento, angulação e posição de câmera, Antonioni rapidamente começa Deserto Vermelho estabelecendo um espaço já impregnado de determinadas características, inscreve nele seus personagens e os faz interagir com o meio que os circunda. Assim, logo na primeira seqüência, Monica Vitti come um sanduíche tendo a sua frente o lixo tóxico despejado pela fábrica e, às suas costas, o fogo barulhento e constante que faz a chama que sai de uma chaminé (imagem 1). Note-se que seu vestido apenas a destaca parcialmente do ambiente – ela não está plenamente envolvida nele, mas se deixa contaminar, porque partilha do espírito: ela sente-se um dejeto no mundo que habita. Dentro da fábrica, as máquinas assumem dimensões gigantescas, transformando os humanos (aqueles que as criaram) em meros títeres, incapazes de fazer frente ao jugo de bestas tão colossais (imagem 2). Mais à frente do filme, lá por sua metade, um encontro de amigos, onde se discute sexo, as virtudes afrodisíacas do ovo de codorna e, aproveitando a confusão do espaço exíguo, às vezes algum homem mais ousado aproveita para alisar as pernas ou as costas de alguma mulher mais solícita. Esse clima de licenciosidade, pelo aproximado da câmera de Antonioni, pelo senso de desorientação dos reenquadramentos e pela falta de equilíbrio das linhas que os personagens desenham na imagem, dão ao todo um sentido de confusão e desconforto, uma idéia de que mesmo os momentos ociosos, livres, "felizes", são na verdade espaço de uma grande falta de liberdade (imagem 3).

Posteriormente, Antonioni iria fazer explodir tudo no deserto ou fazer seus personagens explorarem a África. Mas nunca em sua filmografia ele repetiu a façanha de criar um no man’s land tão desolador de desorientação perceptiva quanto em Deserto Vermelho. Uma obra prima do mal-estar (da civilização, naturalmente), em que o refinamento de Antonioni encontra um material híbrido para trabalhar, e mesmo assim o vence, por sua própria excelência. São essas vitórias as que mais contam.


Ruy Gardnier

(DVD Versátil)

 

 




Quatro imagens de Deserto Vermelho:


(1)


(2)


(3)


(4)