Michelangelo
Antonioni é um desses cineastas aos quais a memória
convencional da história do cinema pregou peças.
Ele claramente está lá, no panteão
das renovações formais da virada dos 50
para os 60, então não é questão
de esquecimento. Mas se formos ver o que ficou guardado
para a tradição, veremos apenas um conjunto
de filmes, geralmente conhecido como "trilogia
do tédio", tomar todo ou quase todo o reconhecimento.
Pela novidade, pelo escândalo, pela elegância,
pela economia de meios transformada em objeto chique
ao escavar o vazio de uma burguesia ociosa. Bom, nada
disso é mentira, e esses filmes de fato são
bastante dignos de atenção. Mas quem decidir
parar em A Aventura, A Noite e O Eclipse
achando que já teve o essencial do cinema de
Antonioni estará redondamente enganado. Na verdade,
estará pegando apenas o começo do enigma.
Porque, logo depois de sua trilogia, Antonioni adensa
sua busca, radicaliza sua forma, abandona um verniz
de elegância mais palatável que abrandava
a relação do espectador com seus personagens
disfuncionais. Deserto Vermelho é o primeiro
dessa série, e talvez o mais loucamente delirante,
o mais excessivo, o mais intensamente em busca de uma
forma tão confusa e desagradável quanto
a sensação de deslocamento que oprime
seus personagens. E, last but not least, é
preciso falar que Deserto Vermelho é o
primeiro longa-metragem em cores de Antonioni. E que,
mesmo que ele só fizesse esse filme em cores,
o trabalho de cor já seria um dado fundamental
em sua carreira.
Opressão é uma palavra boa para começar
a descrever a sensação de mal-estar que
Deserto Vermelho deixa em nós. A começar
pelo ambiente: fábricas, fumaça, lixo
industrial, navios, corrimões em linhas retas
e frias, cores primárias homogêneas que,
ao invés de encher o ambiente de vida, se revelam
"robóticos" por seu monocromatismo.
Na paisagem, nada muito diferente: a natureza é
ora vista como um pátio de descarga de lixo,
ora como um deserto, e na maioria das vezes como uma
várzea, um terreno inútil ou abandonado.
Ou uma paisagem útil, ou o inútil da paisagem.
E, correlato da imagem, há o som: uma verdadeira
sinfonia de ruídos angustiantes vindos da fábrica,
que a edição de som transforma em agressão
sonora pura e simples (há até um espaço
para o barulho "solar" na troca de telefonemas
para caçar operários para substituírem
aqueles em greve). Quando não temos a opressão
sonora externa, temos a interior da personagem, num
som agudo estridente que aparece toda vez que a condição
de Giuliana (Monica Vitti, jamais tão bela, desorientada
e lacônica do que aqui) parece piorar. Como ideal
de vida a se almejar, não há muita esperança:
o filho parece ser educado já para ser um pequeno
cientista, uma cabeça calculante que incorpora
em suas brincadeiras um robô de assustadores olhos
luminosos e kits de química que já antecipam
um futuro de carreira.
A pergunta que o filme não faz diretamente, mas
faz aparecer no absurdo de cada seqüência,
é: qual é o lugar do humano numa sociedade
ocupada cada vez mais pelas operações
industriais, pela especialização e segmentação
do trabalho e pela ideologia utilitarista reinante?
Em Deserto Vermelho, a angústia da alma
dos três filmes anteriores ganha materialidade
e surge no mundo. Através de Giuliana, o que
o filme dramatiza é a fragilidade humana diante
do enorme gigante industrial que o próprio homem
cria: traumatizada por um acidente de automóvel,
ela é uma mulher instável, indecisa, à
beira de um comportamento totalmente patológico.
E, por sua própria posição de precariedade
e não-utilidade, é ela que "encarna"
(na falta de melhor palavra) o substrato dos dramas
humanos de seu tempo. Sua casa, tomada por decoração
e móveis hi-tech que fazem com que mesmo no lar
ela se sinta como numa fábrica, não é
casa: o único lugar que oferece algum consolo
espacial é a casa em reforma que ela pretende
utilizar como algum tipo de loja (ela não sabe
para vender o quê) . Paredes semi-pintadas em
diversas cores diferentes, objetos fora de lugar, ausências
e sobretudo um nada de utilidade: o que resta de ainda
não-dominado pela lógica da produção
e do trabalho.
Deserto Vermelho consegue a enorme façanha
de ser fiel à desorientação de
sua personagem. Pois, se num momento o filme se arma
para ser um relato de encontro/interesse/relacionamento
entre um homem e uma mulher (o homem é Corrado,
interpretado por Richard Harris, amigo de longa data
de Ugo, marido de Giuliana) e uma conseqüente superação
do estado de letargia da personagem, ao longo da projeção
essa expectativa é inteiramente quebrada e o
fim do filme revela, pela repetição da
locação do início, uma volta ao
mesmo regime de estagnação. O que há,
no fundo, é uma falsa viagem por um universo
de "doce vida" em que o sexo é vivido
meio como commodity, como petit gâteau
simpático e trivial, em que a diversão
se mistura com destruição (na cena do
desmonte da parede) e, de forma geral, uma certa agressividade
recalcada que é atualizada ali onde não
se espera. Se há um espaço de liberdade,
é o escape: a fábula que Giuliana conta
ao filho sobre uma moça que vive sozinha numa
ilha ensolarada, em que as pedras assumem formas humanas.
Como se, jogado num mundo determinado pela transcendência
da produção e do trabalho, a saída
do humano fosse um isolamento primitivista com a natureza
ela mesma tornada panteísta. Não à
toa, quem canta para ela é "tudo",
conta o mito.
Para um filme cujo uso de cor é tão famoso
(o filme está na listinha dos dez melhores usos
de cor em todo o cinema não-americano para Martin
Scorsese), Deserto Vermelho nem oferece o deslumbre
imaginado. A cor no filme funciona sublime, impecável
num sentido de construção dramática,
utilizando alguns tons pastosos, híbridos, insidiosos,
saturando a imagem e dando a ela um sentimento arrastado
dum espaço pouco agradável. Verde musgo
ou vermelho exagerado, as cores não exercem uma
função puramente ornamental (como os filmes
geralmente elogiados como "muito coloridos"),
mas funcionam para construir uma atmosfera e dar o tom
de indefinição sentimental e asfixia em
que vive a personagem de Giuliana. A sensualidade das
cores e da construção arquitetônica
das imagens que seria um traço característico
do cinema de Antonioni depois de meados dos anos 60
só tem lugar em Deserto Vermelho no momento
em que a imagem é tomada pela fábula que
a mãe conta ao filho sol, praia, pedras, tudo
serve para dar um clima de exuberância de uma
natureza sexualizada (imagem 4). Fora disso, não
adianta procurar no mapa para onde ir: o mundo é
inabitável.
Como grande especialista em construir espaço
através de enquadramento, angulação
e posição de câmera, Antonioni rapidamente
começa Deserto Vermelho estabelecendo
um espaço já impregnado de determinadas
características, inscreve nele seus personagens
e os faz interagir com o meio que os circunda. Assim,
logo na primeira seqüência, Monica Vitti
come um sanduíche tendo a sua frente o lixo tóxico
despejado pela fábrica e, às suas costas,
o fogo barulhento e constante que faz a chama que sai
de uma chaminé (imagem 1). Note-se que seu vestido
apenas a destaca parcialmente do ambiente ela não
está plenamente envolvida nele, mas se deixa
contaminar, porque partilha do espírito: ela
sente-se um dejeto no mundo que habita. Dentro da fábrica,
as máquinas assumem dimensões gigantescas,
transformando os humanos (aqueles que as criaram) em
meros títeres, incapazes de fazer frente ao jugo
de bestas tão colossais (imagem 2). Mais à
frente do filme, lá por sua metade, um encontro
de amigos, onde se discute sexo, as virtudes afrodisíacas
do ovo de codorna e, aproveitando a confusão
do espaço exíguo, às vezes algum
homem mais ousado aproveita para alisar as pernas ou
as costas de alguma mulher mais solícita. Esse
clima de licenciosidade, pelo aproximado da câmera
de Antonioni, pelo senso de desorientação
dos reenquadramentos e pela falta de equilíbrio
das linhas que os personagens desenham na imagem, dão
ao todo um sentido de confusão e desconforto,
uma idéia de que mesmo os momentos ociosos, livres,
"felizes", são na verdade espaço
de uma grande falta de liberdade (imagem 3).
Posteriormente, Antonioni iria fazer explodir tudo no
deserto ou fazer seus personagens explorarem a África.
Mas nunca em sua filmografia ele repetiu a façanha
de criar um no mans land tão desolador
de desorientação perceptiva quanto em
Deserto Vermelho. Uma obra prima do mal-estar
(da civilização, naturalmente), em que
o refinamento de Antonioni encontra um material híbrido
para trabalhar, e mesmo assim o vence, por sua própria
excelência. São essas vitórias as
que mais contam.
Ruy Gardnier
(DVD Versátil)
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