Pensando de uma forma simples,
não haveria muito o que dizer sobre A Volta
do Todo-Poderoso. Projeto típico de uma Hollywood caça-níqueis, concebido
a partir de um oportunismo picareta, aproveitando o pretexto de uma continuação
de um título de sucesso, só que ignorando o astro original (Jim Carrey) e promovendo
a protagonista um personagem secundário do primeiro filme, cujo intérprete (Steve
Carrell) conquistou posteriormente o status de estrela, tanto no cinema
como na TV. O resultado é, como não poderia deixar de se esperar, mais uma caretice
de apelo familiar, uma edificante e previsível exaltação de valores tradicionais,
tão cara e recorrente ao trabalho do diretor Tom Shadyac, responsável pelo nefasto Patch
Adams (1998).
Entretanto, partindo de um ponto de vista mais atento, esse filme torna-se um
caso curioso para refletir um pouco sobre a forma como o cinema americano ao
mesmo tempo re-aproveita e recodifica seus próprios modelos clássicos. O ponto
de partida do filme – Evan Baxter, um homem honesto do interior, é eleito deputado
federal e tem que se confrontar com o oportunismo e a corrupção das velhas raposas
que dominam o congresso – é um tema recorrente no cinema que Frank Capra desenvolveu
durante as décadas de 1930 e 40, em especial o argumento da obra-prima A Mulher
Faz o Homem (1939). Porém, no filme de Capra, o protagonista, Mr. Smith,
vivido por James Stewart, se calcaria em seus próprios méritos pessoais para
combater as manipulações politiqueiras. O que vemos em A Volta do Todo Poderoso é que
o filme transmite uma crença de que, nos dias de hoje, somente a determinação
dos homens não seria mais suficiente para uma imposição dos padrões considerados éticos.
Far-se-ia premente uma intervenção de instâncias divinas, como a do Deus bonachão
(Morgan Freeman) que impõe a Evan sua transformação em um Noé reencarnado.
Uma outra contraposição do filme de Shadyac à matriz traçada por Frank Capra
vem do fato que, nos filmes deste último, o que se pretendia era uma exaltação
de valores supostamente progressistas e igualitários, encarnados nos ideais do
Partido Democrata, por mais que consideremos discutível essa associação. Bem,
no caso de A Volta do Todo Poderoso, sua aparente exaltação de valores
religiosos tradicionais vem se encaixar na pauta de um fundamentalismo cristão-protestante
que ascendeu em consonância com a atual administração Republicana de George W.
Bush. É certo que o filme não faz isso de forma agressiva; sua suposta pregação
seria um tanto sutil, de forma a não desagradar ou afastar audiências não religiosas,
vestindo-se com uma capa bem-humorada. O que não podemos ignorar, e esse filme
em especial é um belo exemplo disso, é como por vezes a mais aparentemente inofensiva
peça de entretenimento pode refletir a forma como o pensamento coletivo reinante
em determinado momento histórico – ou ao menos uma parcela deste – parece se
manifestar e se reproduzir.
Gilberto Silva Jr.
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