O reino de Tão Tão Distante
nunca foi tão tão próximo, e Shrek Terceiro sabe
bem disso. Logo no começo vemos o Príncipe Encantado
interpretando a si mesmo numa peça vagabunda de dinner
theater que já instala o encanto verde dos dois
filmes anteriores nos limites da mitologia: aquela
história íntima das aventuras sentimentais de um ogro
virando a maior referência de narrativa amorosa para
este universo fantástico, o mote da aceitação das diferenças
sendo ultrapassado por sua glorificação, num momento
em que todos querem ser feios e flatulentos, mas já se
dão por satisfeitos se conseguirem só um boneco ou
um autógrafo de Shrek. É o mesmo início de Homem-Aranha
3: temos aqui um protagonista posando de estrela,
uma fama exterior ao filme que é incorporada por ele,
duplicando-se no seu interior esta mesma sensação de
domínio experimentada pelos espectadores. Sabemos Shrek
de cor e salteado, e é em cima deste sentimento de
segurança que o terceiro filme se constrói.
O interesse pela insubmissão aos esquemas de storytelling da Disney já não é o
que move a série. Bagunçar o coreto dos contos de fada, aliás, nunca tinha sido
uma tarefa assumida integralmente por Shrek, mas sempre houve ali um bom barato
na incorporação de elementos da cultura de massas: não era exatamente a subversão
do faz-de-conta, mas sim uma atualização dele, uma tentativa de encurtar a distância
histórica que separava as influências culturais dos desenhos da primeira metade
do século passado daquilo que hoje povoa o imaginário do espectador contemporâneo. Shrek
Terceiro, no entanto, se apega exclusivamente a este artifício. Importante
aqui é explorar ao máximo esse estágio multi-referencial, do qual agora toma
parte o próprio universo de Shrek, ele mesmo mais um desses símbolos do pop.
Outra vez o Gato de Botas fazendo aquela carinha fofa, outra vez a surpresa de
personagens até ali tão cândidos revelando-se verdadeiros ases das artes marciais à Matrix,
outra vez a incorporação de dubladores famosos que dizem, por sua simples escalação,
tudo aquilo que a trajetória dos personagens a que emprestam suas vozes tentará nos
mostrar dramaturgicamente. Em Shrek Terceiro todas as piadas são internas.
E se, no máximo da criatividade de Chris Miller e dos outros operários empregados
ali, o que vemos é a ridicularização fácil das mais estabelecidas figuras fabulares
(com o quarteto feminino formado por Branca de Neve, Bela Adormecida, Rapunzel
e Cinderela) é porque fabular por conta própria é algo que Shrek Terceiro só faz
por pura obrigação de sentido – é difícil imaginar que o filme fizesse o mesmo
sucesso se decidisse assumir a veia de programa de esquetes cômicas da qual está aqui
tão intimamente investido, sobretudo pelas ótimas presenças vocais de Amy Poehler,
Cheri Oteri, Maya Rudolph e Amy Sedaris, todas elas filhas do Saturday Night
Live, ou ainda com os velhos John Cleese e Eric Idle do Monty Python’s
Flying Circus. Nenhum problema com a lição de moral, nenhum problema com
o corolário de boas intenções, das quais o inferno e o filme estão repletos,
mas o modo atrapalhado e preguiçoso com que as “questões” de Shrek Terceiro são
apresentadas lembram muito mais um episódio corriqueiro de série animada de tevê do
que a pompa de cereja-do-bolo de uma trilogia existente aqui. O chamado à seriedade
está lá, e chega curiosamente no momento em que o apuro técnico da animação deixa
o monstrengo muito mais “humano”, com nuances de expressão facial e corporal
que os filmes anteriores não tinham. Esse adicional de humanidade é instalado
no filme como se estivéssemos diante de uma propaganda institucional que dá dicas
sobre como lidar com a crise de meia-idade, e tudo em Shrek Terceiro se
resolverá através de longos discursos morais em que erros são desfeitos e lições
valiosas são aprendidas. Mas a verdade é que chega a ser até cruel exigir responsabilidade
paterna de um personagem de quem, até pouco tempo atrás, só pedíamos uma seqüência
de peidos numa banheira de lama.
Rodrigo de Oliveira
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