SHREK TERCEIRO
Chris Miller e Raman Hui, Shrek the Third, EUA, 2007

O reino de Tão Tão Distante nunca foi tão tão próximo, e Shrek Terceiro sabe bem disso. Logo no começo vemos o Príncipe Encantado interpretando a si mesmo numa peça vagabunda de dinner theater que já instala o encanto verde dos dois filmes anteriores nos limites da mitologia: aquela história íntima das aventuras sentimentais de um ogro virando a maior referência de narrativa amorosa para este universo fantástico, o mote da aceitação das diferenças sendo ultrapassado por sua glorificação, num momento em que todos querem ser feios e flatulentos, mas já se dão por satisfeitos se conseguirem só um boneco ou um autógrafo de Shrek. É o mesmo início de Homem-Aranha 3: temos aqui um protagonista posando de estrela, uma fama exterior ao filme que é incorporada por ele, duplicando-se no seu interior esta mesma sensação de domínio experimentada pelos espectadores. Sabemos Shrek de cor e salteado, e é em cima deste sentimento de segurança que o terceiro filme se constrói.

O interesse pela insubmissão aos esquemas de storytelling da Disney já não é o que move a série. Bagunçar o coreto dos contos de fada, aliás, nunca tinha sido uma tarefa assumida integralmente por Shrek, mas sempre houve ali um bom barato na incorporação de elementos da cultura de massas: não era exatamente a subversão do faz-de-conta, mas sim uma atualização dele, uma tentativa de encurtar a distância histórica que separava as influências culturais dos desenhos da primeira metade do século passado daquilo que hoje povoa o imaginário do espectador contemporâneo. Shrek Terceiro, no entanto, se apega exclusivamente a este artifício. Importante aqui é explorar ao máximo esse estágio multi-referencial, do qual agora toma parte o próprio universo de Shrek, ele mesmo mais um desses símbolos do pop. Outra vez o Gato de Botas fazendo aquela carinha fofa, outra vez a surpresa de personagens até ali tão cândidos revelando-se verdadeiros ases das artes marciais à Matrix, outra vez a incorporação de dubladores famosos que dizem, por sua simples escalação, tudo aquilo que a trajetória dos personagens a que emprestam suas vozes tentará nos mostrar dramaturgicamente. Em Shrek Terceiro todas as piadas são internas.

E se, no máximo da criatividade de Chris Miller e dos outros operários empregados ali, o que vemos é a ridicularização fácil das mais estabelecidas figuras fabulares (com o quarteto feminino formado por Branca de Neve, Bela Adormecida, Rapunzel e Cinderela) é porque fabular por conta própria é algo que Shrek Terceiro só faz por pura obrigação de sentido – é difícil imaginar que o filme fizesse o mesmo sucesso se decidisse assumir a veia de programa de esquetes cômicas da qual está aqui tão intimamente investido, sobretudo pelas ótimas presenças vocais de Amy Poehler, Cheri Oteri, Maya Rudolph e Amy Sedaris, todas elas filhas do Saturday Night Live, ou ainda com os velhos John Cleese e Eric Idle do Monty Python’s Flying Circus. Nenhum problema com a lição de moral, nenhum problema com o corolário de boas intenções, das quais o inferno e o filme estão repletos, mas o modo atrapalhado e preguiçoso com que as “questões” de Shrek Terceiro são apresentadas lembram muito mais um episódio corriqueiro de série animada de tevê do que a pompa de cereja-do-bolo de uma trilogia existente aqui. O chamado à seriedade está lá, e chega curiosamente no momento em que o apuro técnico da animação deixa o monstrengo muito mais “humano”, com nuances de expressão facial e corporal que os filmes anteriores não tinham. Esse adicional de humanidade é instalado no filme como se estivéssemos diante de uma propaganda institucional que dá dicas sobre como lidar com a crise de meia-idade, e tudo em Shrek Terceiro se resolverá através de longos discursos morais em que erros são desfeitos e lições valiosas são aprendidas. Mas a verdade é que chega a ser até cruel exigir responsabilidade paterna de um personagem de quem, até pouco tempo atrás, só pedíamos uma seqüência de peidos numa banheira de lama.

Rodrigo de Oliveira