Remy é um rato desajustado
com sua condição, um ser que não se contenta com o
que o cerca e precisa buscar o novo, criar, ir além.
Seu dom do olfato e paladar apurados torna-o um amante
da culinária e um cozinheiro em potencial – aprisionado “socialmente” na
posição de um animal anti-higiênico, repulsivo e condenado à margem
(aos meio-fios, esgotos e cantos putrefatos). Impulsionado
pelo lema do chef Gusteau (“Qualquer um pode cozinhar”),
ele toma coragem para adentrar o mundo dos humanos
e ter acesso ao que seria “por natureza” proibido para
ele.
Oposta à de Anton Ego, o crítico culinário elitista, severo e orgulhoso, a figura
de Gusteau se encontra dividida entre o oportunista que busca o lucro fácil e
o gênio de bom coração, encorajador de novos talentos. No presente da narrativa,
no entanto, ela existe apenas como a do conselheiro espiritual (para reafirmar
sempre que qualquer um pode ser o quiser), fruto da imaginação de Remy. Pois é a
ingenuidade do desejo não-maculado do obstinado ratinho que impulsiona o filme.
Partindo do princípio da fábula, de conferir humanidade aos animais para encenar
uma moral, Ratatouille centra-se numa constatação primeira: os animais
e os humanos coexistem (nem sempre pacificamente) em suas diferenças radicais.
Este mundo, no qual a harmonia e a igualdade não são valores fundadores e as
nuances imperam, é habitado por personagens cuja “função” na narrativa é graciosamente
sublimada por suas personalidades. E, para além de um tradicional antagonismo
(ou companheirismo, na moeda oposta), as relações entre eles são movidas por
sonhos, ambições e interesses, que delineiam seu perfil psicológico e motivam
suas ações. Desta forma, não existem “derrotas” e “vitórias” claras, mas mudanças
de percepção.
Em determinado momento, Remy nega os empecilhos ao seu projeto inusitado de vida
e afirma: “mas a Natureza é mudança”. Trata-se para ele de romper barreiras para
a auto-realização e enfrentar o status quo por algo em que acredita. Remy
espanta-se com a violência humana (e todos os seus apetrechos de morte, como
ratoeiras e venenos), mas ainda assim teima com o pai, recusando que os homens
sejam todos inimigos confessos dos ratos. Colocando-se perigosamente em um não-lugar – não é humano,
contudo refuta a vida na colônia familiar e renuncia aos hábitos de sua espécie –,
ele instala-se, pois, numa instabilidade assumida, como testemunham as tensas
seqüências de perseguição (nas quais podemos perceber a respiração ofegante de
desespero do bichinho).
Se os homens não entendem o grunhido dos ratos e apenas aqueles ratos que se
abrirem podem aprender a língua dos homens, não haveria de fato por que acreditar
na boa convivência generalizada entre os diferentes. Mas Remy tem como lema arriscar.
E, como valores, seguir em frente, apostar na possibilidade de ser surpreendido
pelo
outro
e
confiar
na capacidade de troca, de compreensão e de alargamento de fronteiras. No decorrer
do filme, o desempenho do ratinho como protagonista dessa fábula sobre a liberdade
de si e a tolerância mútua, ganha ares didáticos, aqui e ali. No entanto, o carisma
com que Remy assume cada “discurso” não nos deixa enganar: o filme abraça sua
causa frontalmente e sem pudores. E quem poderia reclamar de tal libelo à liberdade?
Há nas animações da Pixar, nos longas em especial, o charme irresistível de lidar
concretamente com questões humanas a partir de abstrações suscitadas pelo exercício
da fantasia. Ratatouille vem como a memória da infância evocada sensorialmente
no crítico culinário Ego ao provar o prato preparado por Remy: arrebata de imediato,
afetivamente,
pela simplicidade e rechaça julgamentos sóbrios e distanciados, fazendo balançar
qualquer resistência à adesão. Neste movimento, as intrigas possíveis (o desentendimento
entre Remy e seu quase-marionete Linguini ou o necessário sigilo sobre o inaudito
de um rato cozinheiro) não se aprofundam e o filme segue, doce e complacente
com os dramas pessoais, que deverão encontrar sua superação, levando a bravas
conquistas vida afora.
Tatiana
Monassa
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