RATATOUILLE
Brad Bird e Bob Peterson, Ratatouille, EUA, 2007

Remy é um rato desajustado com sua condição, um ser que não se contenta com o que o cerca e precisa buscar o novo, criar, ir além. Seu dom do olfato e paladar apurados torna-o um amante da culinária e um cozinheiro em potencial – aprisionado “socialmente” na posição de um animal anti-higiênico, repulsivo e condenado à margem (aos meio-fios, esgotos e cantos putrefatos). Impulsionado pelo lema do chef Gusteau (“Qualquer um pode cozinhar”), ele toma coragem para adentrar o mundo dos humanos e ter acesso ao que seria “por natureza” proibido para ele.

Oposta à de Anton Ego, o crítico culinário elitista, severo e orgulhoso, a figura de Gusteau se encontra dividida entre o oportunista que busca o lucro fácil e o gênio de bom coração, encorajador de novos talentos. No presente da narrativa, no entanto, ela existe apenas como a do conselheiro espiritual (para reafirmar sempre que qualquer um pode ser o quiser), fruto da imaginação de Remy. Pois é a ingenuidade do desejo não-maculado do obstinado ratinho que impulsiona o filme.

Partindo do princípio da fábula, de conferir humanidade aos animais para encenar uma moral, Ratatouille centra-se numa constatação primeira: os animais e os humanos coexistem (nem sempre pacificamente) em suas diferenças radicais. Este mundo, no qual a harmonia e a igualdade não são valores fundadores e as nuances imperam, é habitado por personagens cuja “função” na narrativa é graciosamente sublimada por suas personalidades. E, para além de um tradicional antagonismo (ou companheirismo, na moeda oposta), as relações entre eles são movidas por sonhos, ambições e interesses, que delineiam seu perfil psicológico e motivam suas ações. Desta forma, não existem “derrotas” e “vitórias” claras, mas mudanças de percepção.

Em determinado momento, Remy nega os empecilhos ao seu projeto inusitado de vida e afirma: “mas a Natureza é mudança”. Trata-se para ele de romper barreiras para a auto-realização e enfrentar o status quo por algo em que acredita. Remy espanta-se com a violência humana (e todos os seus apetrechos de morte, como ratoeiras e venenos), mas ainda assim teima com o pai, recusando que os homens sejam todos inimigos confessos dos ratos. Colocando-se perigosamente em um não-lugar – não é humano, contudo refuta a vida na colônia familiar e renuncia aos hábitos de sua espécie –, ele instala-se, pois, numa instabilidade assumida, como testemunham as tensas seqüências de perseguição (nas quais podemos perceber a respiração ofegante de desespero do bichinho).

Se os homens não entendem o grunhido dos ratos e apenas aqueles ratos que se abrirem podem aprender a língua dos homens, não haveria de fato por que acreditar na boa convivência generalizada entre os diferentes. Mas Remy tem como lema arriscar. E, como valores, seguir em frente, apostar na possibilidade de ser surpreendido pelo outro e confiar na capacidade de troca, de compreensão e de alargamento de fronteiras. No decorrer do filme, o desempenho do ratinho como protagonista dessa fábula sobre a liberdade de si e a tolerância mútua, ganha ares didáticos, aqui e ali. No entanto, o carisma com que Remy assume cada “discurso” não nos deixa enganar: o filme abraça sua causa frontalmente e sem pudores. E quem poderia reclamar de tal libelo à liberdade?

Há nas animações da Pixar, nos longas em especial, o charme irresistível de lidar concretamente com questões humanas a partir de abstrações suscitadas pelo exercício da fantasia. Ratatouille vem como a memória da infância evocada sensorialmente no crítico culinário Ego ao provar o prato preparado por Remy: arrebata de imediato, afetivamente, pela simplicidade e rechaça julgamentos sóbrios e distanciados, fazendo balançar qualquer resistência à adesão. Neste movimento, as intrigas possíveis (o desentendimento entre Remy e seu quase-marionete Linguini ou o necessário sigilo sobre o inaudito de um rato cozinheiro) não se aprofundam e o filme segue, doce e complacente com os dramas pessoais, que deverão encontrar sua superação, levando a bravas conquistas vida afora.

Tatiana Monassa

 

 







Remy discursa, confiante. Sua ética de vida
não contempla a decepção.