QUARTETO FANTÁSTICO E O SURFISTA PRATEADO
Tim Story, Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer, EUA, 2007

Sobre o estatuto da domesticação dos super-heróis

Há um movimento recorrente em um certo subgênero do cinema de ação contemporâneo: nos filmes baseados em personagens de quadrinhos, uma operação de humanização se tornou cada vez mais patente. A tensão humanidade-“divindade” sempre foi um traço importante dessa mitologia e, em conseqüência, desse cinema. Aparece como questão central em, por exemplo, Superman I (1978) e II (1980). Recentemente, domina filmes como X-Men 1 (2000), 2 (2003) e 3 (2006), Hulk (2003) ou Superman: O Retorno (2006). Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado representa o “aprofundamento” (as aspas, porque o movimento é mais de destaque do que de reflexividade) de um traço dessa mecânica que seguia mais ou menos subjacente no gênero, a condução forte dessa discussão para o plano da familiaridade.

Parece ser um jogo de palavras, anedota mesmo: Surfista Prateado é o típico “filme para toda a família”. Em dois sentidos. Tem as relações domésticas como centro da trama e, ao mesmo tempo e em igual medida, segue uma certa cartilha estética de acomodação (nas poltronas mesmo): é, comercialmente, um filme para gregos e troianos parentais e filiais. Mas se se presta à piada, não é por nenhuma ambigüidade que poderia constituí-lo como arte. Q4SS – como foi apelidado – é não mais do que um filme informativo.

Diante dele, fica-se, então, confrontado com informações básicas sobre os personagens: A Mulher Invisível quer se casar e se sente sufocada com a obsessão do noivo em defender o mundo (esses meninos!); O Homem Elástico, por sua vez, fica querendo ser o maior cientista da terra ao mesmo tempo em que quer se popular, mas se martiriza por não dar vazão ao sonho matrimonial da transparente namorada; o Homem de Pedra também tem um relacionamento e se sente preterido quando descobre que o Q4 (no fundo, sua família) pode ruir; o Tocha Humana, irmão da noiva, um bon vivant, é um namorador e vive sob o fantasma de uma familiaridade fugidia (e também se mostra preocupado com o ocaso de seu grupo heróico).

E diante deles, outra família corre risco, a “grande família humana”. A “questão” central de Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado é a idéia de fraternidade, a idéia do bem do outro sobre o bem de si e a negociação entre os dois. “Nobre”. E tanto é uma questão familiar que a metáfora da casa atravessa constantemente o roteiro: o planeta natal, o lar, de Shalla-Bal (o Surfista) ruiu, o do Quarteto ameaça ruir também. E, nisso, tome-se a metáfora primária da cartilha noticiosa contemporânea ao filme. É quase como se Galactus e o Surfista fossem o mito do “aquecimento global”, esse fantasma que invade o cotidiano simbólico do mundo atual com tsunamis, terremotos, nevascas e tudo mais que possa aparecer como rastro do ser de aparência metálico-vítrea que voa em uma prancha. Tudo, claro, fora de lugar. Nossa casa, óbvio, é um ambiente controlado. Se não temos mais controle sobre ela, ela deixa de ser nosso lar.

Mas não há cinema nenhum no meio disso. Como se disse, trata-se de um filme informativo. Tudo feito pela direção se presta apenas para emoldurar, de maneira automática, essa semiologia “família”. E a se continuar com este termo e com esse horizonte “teórico”, é fácil de se localizar essa obra. Nela, não há quase símbolos, há quase que apenas ícones e índices. As imagens são indicativas, comunicacionais.

Vejamos, por exemplo, o duo Ben Grimm (O Coisa) e Johnny Storm (O Tocha), aqueles que seriam preteridos pela opção do Sr. Fantástico em ser mais Sr. do que Fantástico. Ben é um “gorila”. Feito de pedra, seria a força bruta do quarteto. Entretanto, mecânica de “A Bela e a Fera”, ele tem uma namorada cega, para a qual sua “feiúra” não faz diferença. Antes desse movimento, entretanto, ele sempre é apresentado como um “cara família”. Doce, apaixonado, ele defende os seus como um pai, como um provedor. Para ele, a câmera sempre dedica um olhar... humanizador. Vemos muito seus olhos, mas poucas vezes os contraplanos. Ele está sempre a admirar os outros. Pouco a ser admirado.

A seu lado, vemos o menos comportado dos integrantes do grupo, Johnny. Ele é o garotão fútil incapaz de ter um relacionamento sério. Para ele, Tim Story dedicará uma decupagem de cafajeste: também planos dos olhos, mas em geral com olhares maliciosos. E, claro, privilegiará as trocas de olhares com as meninas bonitas. Mas, em especial, promoverá a mecânica do cafajeste-romântico, privilegiando a troca de olhares com a militar, aquela que, não dando bola para seu jeito sedutor, o elevará ao plano de genro-que-mamãe-pediu-a-Deus. Por mais que no final ele tente sustentar sua imagem de mau garoto, isso é obviamente constituído pelo fetiche do bad boy. Ele já está, digamos, domesticado.

Como tudo mais no filme. Nele, toda operação estética é domesticada, justamente para domesticar os personagens, para não permitir duplas interpretações. Assim, o Surfista Prateado, a grande promessa de ambigüidade do roteiro, é desde sempre uma figura-padrão, o personagem-falsamente-do-mal. Está impresso em sua história desde o primeiro plano de sua aparição, uma decupagem de herói que não se dedica habitualmente a vilões.

O que sugere uma pista para a opção do filme de desumanizar Galactus, a divindade cósmica que devora planetas. Feito nuvem interplanetária, ele se dissocia da fraternidade possível estabelecida pela mitologia interna de igualdade entre os homens, terráqueos ou não. “Os homens têm escolha”.

Apenas cinco parecem não ter: o primeiro é Tim Story (e não se pergunte quem são os outros quatro). Mas mais do que uma opção simbólica, essa construção dicotômica é indicativa de um encerramento mesmo da mecânica da ação: simplificado ao máximo em sua complexidade narrativa para ser compreensível – o que surpreende em um mundo de dramaturgia infantil que oferece complexidades como Os Incríveis ou Ponte para Terabithia –, o filme de Story é também simplorificado ao máximo em sua mecânica visual: nem a espetacularidade da ação (pouquíssimo inventiva) nem a ação dramática permitem que se fuja do que está determinado pela comunicatividade. De certa forma, afinal, Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado é um filme misterioso: é um grande trailer de si mesmo, uma promessa de algo que acontecerá. Mas nunca veremos de fato o filme.

Alexandre Werneck