O DESPERTAR DE UMA PAIXÃO
John Curran, The Painted Veil, EUA/China, 2006

Diante de um filme como O Despertar de uma Paixão é preciso se perguntar, antes de tudo, o que ainda há para ser buscado na eterna fonte da literatura. Não um caso de invalidar por princípio este tipo de adaptação literária que cria grandes mastodontes de seriedade e cinema-de-arte (e o filme de John Curran certamente é um destes), mas saber o que havia ali naquele livro de 1925 que um cineasta dos anos 2000 sente que ainda pode reverberar em sua própria época, algo que torne o clássico de W. Somerset Maugham menos absoluto em todo seu peso histórico, que o relativize a ponto de servir às questões de agora, ao cinema de agora. E é assim que descobriremos, na seqüência que encerra O Despertar de uma Paixão, que a agenda de John Curran para este mundo contemporâneo com o qual seu filme dialogará foi, sempre, a da condenação do adultério e da valorização do matrimônio como a instituição social mais intocável, a ser sempre respeitada e jamais rompida, porque é por ele, e só por ele, que se pode experimentar o verdadeiro amor. Se é esse tipo de valor que se pretende afirmar, e se é um cinema que estetiza a tradição que se pretende fazer, então há sim muito sentido em se voltar aos anos 20.

E o título em português serve muito bem a essa agenda. Há um amor pulsante, ágil, frenético, registrado pela câmera com esta mesma intensidade, mas este é o amor inválido, porque entre adúlteros. Quando saímos dos quartos quentes em que Kitty trai o marido – e só saímos de lá porque o sujeito com quem ela se envolve é um crápula (como poderia ser diferente?) – e chegamos finalmente aos grandes espaços abertos da China rural, para onde marido e mulher se mudam, tem início esta maratona que terminará, fatalmente com o despertar de uma paixão, a paixão de uma mulher que não percebeu mais cedo o quão valoroso seu marido era. Este é o registro que dominará o filme: grandes imagens estáticas, paisagens de cartão-postal, falta de pulso. É nesse ambiente de natureza morta que John Curran conseguirá observar este amor que nasce, com força tão devastadora a ponto de eclipsar todo o resto.

Caduco que é este propósito, a encenação propriamente dita do amor não passa de três ou quatro momentos em que Naomi Watts olha para Edward Norton com alguma expressão de agrado, e assim sabemos que “ali nasceu um sentimento bonito”. E assim, pouco faz diferença que estejamos na China ainda dominada pelos ingleses, que haja personagens secundários com histórias realmente interessantes (o inglês-tornado-nativo interpretado por Toby Jones, o oficial da guarda chinesa interpretado por Anthony Wong), que todo aquele drama íntimo se insira num período histórico específico, de características complexas. Aos chineses, John Curran direciona o mesmo olhar exotizante recorrente no pior cinema – o ataque que um grupo de nativos promove contra Kitty, símbolo loiríssimo da opressão inglesa sobre um povo que, naquele momento, havia se cansado do domínio, só serve mesmo para demonizar o chinês como o “selvagem bruto”. E para que Walter, o marido, possa irromper no meio da massa e salvar heroicamente sua amada do perigo. É uma paixão que já vimos, é um despertar cujos estágios já sabemos de cor, e que serão respeitados integralmente por Curran.

>Tudo é, como dissemos no começo, uma questão de saber como se posicionar diante de uma idéia, e O Despertar de uma Paixão, num certo momento, parece abandonar esta postura de servilismo e, de fato, se confrontar com o material que tem em mãos. Isso fica muito evidente numa seqüência curta e bastante forte, em que vemos Kitty e Walter prontos para jantar, praticamente às escuras, em sua residência chinesa. Walter foi até a China para tentar controlar um surto de cólera, a doença, que naquela época matava em poucos dias quem estivesse infectado. O cuidado para não se contaminar precisa ser total, sobretudo com os dois ingleses pouco acostumados àquele ambiente úmido e calorento. Kitty está grávida, mas ainda não contou a Walter, e durante o jantar os dois seguem aquele jogo de gato-e-rato que caracterizará todo o processo de conquista mútua. No auge da discussão, os dois desafiam um ao outro se atrevendo a comer verduras cruas, sem terem sido passadas em água fervente, o que era potencialmente mortal. Cólera, mas agora estamos falando do sentimento. Os dois brincam com a morte, e são estúpidos, baixos, alimentam uma disputa de poder boba, mas são ali – e pela única vez no filme inteiro – bastante humanos. O projeto do filme, no entanto, não suportaria manter estes momentos de pequenez, uma vez que é pela nobreza dos grandes amores arcaicos e das instituições falidas que se trabalha aqui.

Rodrigo de Oliveira