Diante de um filme como O
Despertar de uma Paixão é preciso se perguntar,
antes de tudo, o que ainda há para ser buscado na
eterna fonte da literatura. Não um caso de invalidar
por princípio este tipo de adaptação literária que
cria grandes mastodontes de seriedade e cinema-de-arte
(e o filme de John Curran certamente é um destes),
mas saber o que havia ali naquele livro de 1925 que
um cineasta dos anos 2000 sente que ainda pode reverberar
em sua própria época, algo que torne o clássico de
W. Somerset Maugham menos absoluto em todo seu peso
histórico, que o relativize a ponto de servir às
questões de agora, ao cinema de agora. E é assim
que descobriremos, na seqüência que encerra O
Despertar de uma Paixão, que a agenda de John
Curran para este mundo contemporâneo com o qual seu
filme dialogará foi, sempre, a da condenação do adultério
e da valorização do matrimônio como a instituição
social mais intocável, a ser sempre respeitada e
jamais rompida, porque é por ele, e só por ele, que
se pode experimentar o verdadeiro amor. Se é esse
tipo de valor que se pretende afirmar, e se é um
cinema que estetiza a tradição que se pretende fazer,
então há sim muito sentido em se voltar aos anos
20.
E o título em português serve muito bem a essa agenda. Há um amor pulsante, ágil,
frenético, registrado pela câmera com esta mesma intensidade, mas este é o amor
inválido, porque entre adúlteros. Quando saímos dos quartos quentes em que Kitty
trai o marido – e só saímos de lá porque o sujeito com quem ela se envolve é um
crápula (como poderia ser diferente?) – e chegamos finalmente aos grandes espaços
abertos da China rural, para onde marido e mulher se mudam, tem início esta maratona
que terminará, fatalmente com o despertar de uma paixão, a paixão de uma mulher
que não percebeu mais cedo o quão valoroso seu marido era. Este é o registro
que dominará o filme: grandes imagens estáticas, paisagens de cartão-postal,
falta de pulso. É nesse ambiente de natureza morta que John Curran conseguirá observar
este amor que nasce, com força tão devastadora a ponto de eclipsar todo o resto.
Caduco que é este propósito, a encenação propriamente dita do amor não passa
de três ou quatro momentos em que Naomi Watts olha para Edward Norton com alguma
expressão de agrado, e assim sabemos que “ali nasceu um sentimento bonito”. E
assim, pouco faz diferença que estejamos na China ainda dominada pelos ingleses,
que haja personagens secundários com histórias realmente interessantes (o inglês-tornado-nativo
interpretado por Toby Jones, o oficial da guarda chinesa interpretado por Anthony
Wong), que todo aquele drama íntimo se insira num período histórico específico,
de características complexas. Aos chineses, John Curran direciona o mesmo olhar
exotizante recorrente no pior cinema – o ataque que um grupo de nativos promove
contra Kitty, símbolo loiríssimo da opressão inglesa sobre um povo que, naquele
momento, havia se cansado do domínio, só serve mesmo para demonizar o chinês
como o “selvagem bruto”. E para que Walter, o marido, possa irromper no meio
da massa e salvar heroicamente sua amada do perigo. É uma paixão que já vimos, é um
despertar cujos estágios já sabemos de cor, e que serão respeitados integralmente
por Curran.
>Tudo é, como dissemos no começo, uma questão de saber como se posicionar diante
de uma idéia, e O Despertar de uma Paixão, num certo momento, parece abandonar
esta postura de servilismo e, de fato, se confrontar com o material que tem em
mãos. Isso fica muito evidente numa seqüência curta e bastante forte, em que
vemos Kitty e Walter prontos para jantar, praticamente às escuras, em sua residência
chinesa. Walter foi até a China para tentar controlar um surto de cólera, a doença,
que naquela época matava em poucos dias quem estivesse infectado. O cuidado para
não se contaminar precisa ser total, sobretudo com os dois ingleses pouco acostumados àquele
ambiente úmido e calorento. Kitty está grávida, mas ainda não contou a Walter,
e durante o jantar os dois seguem aquele jogo de gato-e-rato que caracterizará todo
o processo de conquista mútua. No auge da discussão, os dois desafiam um ao outro
se atrevendo a comer verduras cruas, sem terem sido passadas em água fervente,
o que era potencialmente mortal. Cólera, mas agora estamos falando do sentimento.
Os dois brincam com a morte, e são estúpidos, baixos, alimentam uma disputa de
poder boba, mas são ali – e pela única vez no filme inteiro – bastante humanos.
O projeto do filme, no entanto, não suportaria manter estes momentos de pequenez,
uma vez que é pela nobreza dos grandes amores arcaicos e das instituições falidas
que se trabalha aqui.
Rodrigo de Oliveira
|