O BALCONISTA 2
Kevin Smith, Clerks 2, EUA, 2006

O Balconista 2 começa com um protocolo de intenções: no momento em que Dante chega à loja de conveniência na qual trabalhou por anos e descobre que um incêndio a consome, vemos as chamas a cores, enquanto todo o resto da imagem é em preto-e-branco. Logo depois, passado o susto inicial, o monocromatismo que marcou a mitologia construída pelo primeiro filme, do qual este que começa é continuação, cede lugar em definitivo a uma paleta full color. É um filme colorido.

A primeira operação simbólica promovida pela operação estética atravessa de dentro para fora o filme. Em 1994, O Balconista aparecia como uma comédia típica do cenário cinematográfico chamado “independente”. Naquele momento, esse termo representava uma atitude de mercado, mas, mais que isso, já designava uma certa estética – uma filmagem mais “econômica”, um casting ainda distante dos astros, uma certa humanização e elaboração filosófica das tramas, alguma preocupação de classe nos EUA, um forte dialoguismo reflexivo e tagarela no roteiro, uma série de mecânicas que encontravam em Jim Jarmusch seu grande avatar e no Sundance Film Festival sua Shangri-La. Ora, O Balconista participou e foi premiado em Sundance – e em uma mostra paralela de Cannes. Era um filme pequeno, rodado em um preto-e-branco granulado que lhe conferia uma impressão de “interferência de autor” que parecia ser um ideal para o chamado “cinema independente”.

Além disso, O Balconista construía seu humor em dois pilares muito curiosos: por um lado, um escracho sem nenhuma cerimônia, de uma irreverência iconoclasta capaz de falar impropriedades, escatologias e figuras de apelo sexual de rara deselegância; por outro lado, a trama é constantemente atravessada por um humor de cunho surrealista mais próximo de um satirismo comportamental à inglesa – como num Monty Python, por exemplo – do que de um humor de situações mais ou menos típico no cinema americano naquele momento (com, por exemplo, a história do estranho tipo que passa seu dia na loja de conveniência a investigar as geladeiras em busca do “ovo perfeito”).

Essa comparação entre os dois filmes neste caso é mais determinante do que o habitual. Isso porque O Balconista 2 é um filme centrado na decadência. Sim, o primeiro também era. Mas de forma completamente diferente. O Balconista 2 é em grande parte um filme sobre a decadência do primeiro. Sobre a decadência da lógica que tornava o primeiro possível. Em O Balconista, vemos Dante e Randal como dois boquiabertos observadores de uma fauna de tipos estranhos que lhes perpassa o cotidiano nas lojinhas em que atendem – o que tornava o loucamente analítico Randal um personagem deveras interessante, uma vez que ele era um dos mais estranhos tipos do filme. É curiosa a mecânica em que os dois personagens estão parados em suas vidas tediosas e vão sendo visitados pelo andar da trama. É sempre a chegada de personagens diante deles que dá partida às situações – salvo no caso do jogo de hóquei, em que uma iniciativa de Randal oferece alguma alegria a Dante.

No primeiro filme, Dante está tendo um dia azarado. Tudo parece dar errado. Mas desde a primeira cena fica claro que isso é;, no final das contas, um bias: todo choque que ele sente diante do que acontece vem por conta do fiel de balança, da palmatória de mundo que ele é. Jovem, mas muito determinado em sua noção de como devem ser as coisas, ele tem uma visão crítica do que o rodeia e uma perspectiva de positividade sobre o futuro. Isso o faz ser cruel com o que o cerca e com as coisas que lhe acontecem. Ao mesmo tempo, ele se choca com a abordagem tresloucada de seu melhor amigo para o mesmo universo. E esse otimismo de Dante fica impresso, afinal, no encerramento do filme, cheio de positividade.

Pois bem. Este O Balconista 2 traz de volta os dois personagens, 13 anos depois. E traz com eles toda uma mitologia em torno deles dois e da carreira do diretor – uma promessa de renovação da comédia americana, sobretudo pelo comprometimento explícito com o politicamente incorreto. Não parece ser um exagero pensar que o sucesso de O Balconista tenha ajudado a alavancar carreiras como, por exemplo, a dos irmãos Farelly, cujo Debi e Lóide estrearia no final do mesmo ano. Mas o que se vê em O Balconista 2 é que a utopia que fazia de Dante uma figura crítica alguns anos depois já não é mais possível, assim como a visão de cinema de Kevin Smith não tem mais tanto terreno fértil em Hollywood – não à toa, Smith diz, no final do filme, que seus dois personagens-emblema, Joe e Silent Bob (este vivido pelo próprio Smith, aliás), irão, assim como ele, “dar um tempo” (o que só torna mais curioso encontrá-lo como ator em Duro de Matar 4).

Mas na mecânica interna do filme, vemos o mundo de utopia de futuro de Dante, no final das contas organizado em torno de pretensões “caretas” – ele quer ser feliz, acredita no amor romântico etc. – ser recortado por uma visão mais pequeno-burguesa, que o faz se tornar crítico, sim, a seu passado. E toda aposta do filme é na tensão entre dois mitos, o do incendiário e o do bombeiro. Na juventude, o primeiro, na velhice, o segundo, dizem. Dante é um jovem velho, completamente diferente de Randal, um eterno adolescente, capaz de conferir importância capital à “filosofia” “por trás” de Guerra nas Estrelas e de uma busca por uma exploração sexual de caráter olímpico freak. Diferentemente deste, o protagonista quer adentrar em definitivo no mundo adulto, com um bom emprego, um casamento, um carro, etc. Para isso, entretanto, ele precisa viajar, deixar para trás seu passado, queimar o arquivo.

Não deixa de ser simbólica, então, aquela primeira seqüência. É um “Incêndio de Tróia”, um colocar abaixo O Balconista que Dante foi. Não deixa de ser fácil dizer que aquilo que as cores do fogo queimam no começo deste filme seja justamente o preto-e-branco que determinava Dante como personagem. Até por isso, claro, o retorno ao preto-e-branco na conclusão será justamente o retorno ao passado e a conclusão da “moral da história”: o passado e as raízes são os tijolos do futuro. Smith resolveu transformar em fábula sua comédia.

O que fica mais gritante neste filme, entretanto, é a trama romântica em torno de personagens que não acreditam no amor. Becky mantém um discurso de ceticismo em relação ao sentimento, ao passo que Dante obviamente transformou o amor em uma espécie de “obrigação etária”. Ele está escravizado num ciclo nasce-cresce-se-apaixona-casa-morre. E o que ele não enxerga é a ligação capciosa entre os dois últimos elos dessa cadeia. E isso porque Becky não crê senão no presente. Já ele, como já disse, não enxerga senão sua utopia no futuro. Mas ambos são temporalidades idealizadas. Daí a mecânica de Smith se deslocar entre um filme e outro. Se no primeiro, o que acontecia eram visitas do “mundo bizarro” a Dante, numa mobilidade espacial, neste aqui, vemos visitas do “passado bizarro”, numa mobilidade temporal. No primeiro filme, os dois eram prisioneiros de um lugar, agora, Dante é prisioneiro de um tempo.

O que torna mais curioso no filme de Smith, entretanto, é que, vista por cima, sua trama não é muito diferente das de filmes de self-made-young-man habituais. O final “empreendedor” dos personagens – com Becky grávida, Dante “maridão”, Randal ainda-sacana-mais-ainda-domável, na figura de melhor amigo, não deixa de ser justamente a imagem de bombeiro – e não parece ser à toa que eles vão salvar justamente a loja de conveniência que havia sido incendiada, aquele lugar que é o centro de seu passado. É o passado o grande capital.

A seqüência em que o filme se converte em musical, com o elenco se apresentando ao som de Jackson Five, inclusive, é o ícone disso. Vemos Rosário Dawson com seu sorriso absolutamente irresistível e contagiante, muito bem explorado pela câmera de Smith – a ensinar Dante a dançar. E vemos a fauna de personagens do presente decadente de Dante – afinal, no final das contas, ele é balconista de um fast food! – a dançar e cantar, a mostrar a vida de uma forma mais alegre, mais doce. A conclusão de Smith é a de que o loser tem um lugar na coreografia.

O Balconista 2, no final das contas, é melhor como metafilme do que como filme. Seu valor como obra é maior como sepultamento definitivo do filme de jovem dos anos 80. No fundo, a operação promovida por Smith é a de uma nostalgia, não só de seu próprio cinema, mas do de John Hughes, de um cinema em que a juventude protagonizava sua modernidade, sua utopia de domínio do sonho de futuro em um presente apaixonado pela vida, por mais que houvesse repressão. Mas é também a constatação de uma certa impossibilidade desse cinema, dada, hoje se constata, sua inegável inocência.

Alexandre Werneck