O Balconista 2 começa
com um protocolo de intenções: no momento em que Dante
chega à loja de conveniência na qual trabalhou por
anos e descobre que um incêndio a consome, vemos as
chamas a cores, enquanto todo o resto da imagem é em
preto-e-branco. Logo depois, passado o susto inicial,
o monocromatismo que marcou a mitologia construída
pelo primeiro filme, do qual este que começa é continuação,
cede lugar em definitivo a uma paleta full color. É um
filme colorido.
A primeira operação simbólica promovida pela operação estética atravessa de dentro
para fora o filme. Em 1994, O Balconista aparecia como uma comédia típica
do cenário cinematográfico chamado “independente”. Naquele momento, esse termo
representava uma atitude de mercado, mas, mais que isso, já designava uma certa
estética – uma filmagem mais “econômica”, um casting ainda distante dos
astros, uma certa humanização e elaboração filosófica das tramas, alguma preocupação
de classe nos EUA, um forte dialoguismo reflexivo e tagarela no roteiro, uma
série de mecânicas que encontravam em Jim Jarmusch seu grande avatar e no Sundance
Film Festival sua Shangri-La. Ora, O Balconista participou e foi premiado
em Sundance – e em uma mostra paralela de Cannes. Era um filme pequeno, rodado
em um preto-e-branco granulado que lhe conferia uma impressão de “interferência
de autor” que parecia ser um ideal para o chamado “cinema independente”.
Além disso, O Balconista construía seu humor em dois pilares muito curiosos:
por um lado, um escracho sem nenhuma cerimônia, de uma irreverência iconoclasta
capaz de falar impropriedades, escatologias e figuras de apelo sexual de rara
deselegância; por outro lado, a trama é constantemente atravessada por um humor
de cunho surrealista mais próximo de um satirismo comportamental à inglesa – como
num Monty Python, por exemplo – do que de um humor de situações mais ou menos
típico no cinema americano naquele momento (com, por exemplo, a história do estranho
tipo que passa seu dia na loja de conveniência a investigar as geladeiras em
busca do “ovo perfeito”).
Essa comparação entre os dois filmes neste caso é mais determinante do que o
habitual. Isso porque O Balconista 2 é um filme centrado na decadência.
Sim, o primeiro também era. Mas de forma completamente diferente. O Balconista
2 é em grande parte um filme sobre a decadência do primeiro. Sobre a decadência
da lógica que tornava o primeiro possível. Em O Balconista, vemos Dante
e Randal como dois boquiabertos observadores de uma fauna de tipos estranhos
que lhes perpassa o cotidiano nas lojinhas em que atendem – o que tornava o loucamente
analítico Randal um personagem deveras interessante, uma vez que ele era um dos
mais estranhos tipos do filme. É curiosa a mecânica em que os dois personagens
estão parados em suas vidas tediosas e vão sendo visitados pelo andar da trama. É sempre
a chegada de personagens diante deles que dá partida às situações – salvo no
caso do jogo de hóquei, em que uma iniciativa de Randal oferece alguma alegria
a Dante.
No primeiro filme, Dante está tendo um dia azarado. Tudo parece
dar errado. Mas desde a primeira cena fica claro que isso é;, no
final das contas, um bias: todo choque que ele sente diante do que acontece
vem por conta do fiel de balança, da palmatória de mundo
que ele é. Jovem, mas muito determinado em sua noção
de como devem ser as coisas, ele tem uma visão crítica do
que o rodeia e uma perspectiva de positividade sobre o futuro. Isso o faz
ser cruel com o que o cerca e com as coisas que lhe acontecem. Ao mesmo
tempo, ele se choca com a abordagem tresloucada de seu melhor amigo para
o mesmo universo. E esse otimismo de Dante fica impresso, afinal, no encerramento
do filme, cheio de positividade.
Pois bem. Este O Balconista 2 traz de volta os dois personagens, 13 anos
depois. E traz com eles toda uma mitologia em torno deles dois e da carreira
do diretor – uma promessa de renovação da comédia americana, sobretudo pelo comprometimento
explícito com o politicamente incorreto. Não parece ser um exagero pensar que
o sucesso de O Balconista tenha ajudado a alavancar carreiras como, por
exemplo, a dos irmãos Farelly, cujo Debi e Lóide estrearia no final do
mesmo ano. Mas o que se vê em O Balconista 2 é que a utopia que fazia
de Dante uma figura crítica alguns anos depois já não é mais possível, assim
como a visão de cinema de Kevin Smith não tem mais tanto terreno fértil em Hollywood – não à toa,
Smith diz, no final do filme, que seus dois personagens-emblema, Joe e Silent
Bob (este vivido pelo próprio Smith, aliás), irão, assim como ele, “dar um tempo” (o
que só torna mais curioso encontrá-lo como ator em Duro de Matar 4).
Mas na mecânica interna do filme, vemos o mundo de utopia de futuro de Dante,
no final das contas organizado em torno de pretensões “caretas” – ele quer ser
feliz, acredita no amor romântico etc. – ser recortado por uma visão mais pequeno-burguesa,
que o faz se tornar crítico, sim, a seu passado. E toda aposta do filme é na
tensão entre dois mitos, o do incendiário e o do bombeiro. Na juventude, o primeiro,
na velhice, o segundo, dizem. Dante é um jovem velho, completamente diferente
de Randal, um eterno adolescente, capaz de conferir importância capital à “filosofia” “por
trás” de Guerra nas Estrelas e de uma busca por uma exploração sexual
de caráter olímpico freak. Diferentemente deste, o protagonista quer adentrar
em definitivo no mundo adulto, com um bom emprego, um casamento, um carro, etc.
Para isso, entretanto, ele precisa viajar, deixar para trás seu passado, queimar
o arquivo.
Não deixa de ser simbólica, então, aquela primeira seqüência. É um “Incêndio
de Tróia”, um colocar abaixo O Balconista que Dante foi. Não deixa de
ser fácil dizer que aquilo que as cores do fogo queimam no começo deste filme
seja justamente o preto-e-branco que determinava Dante como personagem. Até por
isso, claro, o retorno ao preto-e-branco na conclusão será justamente o retorno
ao passado e a conclusão da “moral da história”: o passado e as raízes são os
tijolos do futuro. Smith resolveu transformar em fábula sua comédia.
O que fica mais gritante neste filme, entretanto, é a trama romântica em torno
de personagens que não acreditam no amor. Becky mantém um discurso de ceticismo
em relação ao sentimento, ao passo que Dante obviamente transformou o amor em
uma espécie de “obrigação etária”. Ele está escravizado num ciclo nasce-cresce-se-apaixona-casa-morre.
E o que ele não enxerga é a ligação capciosa entre os dois últimos elos dessa
cadeia. E isso porque Becky não crê senão no presente. Já ele, como já disse,
não enxerga senão sua utopia no futuro. Mas ambos são temporalidades idealizadas.
Daí a mecânica de Smith se deslocar entre um filme e outro. Se no primeiro, o
que acontecia eram visitas do “mundo bizarro” a Dante, numa mobilidade espacial,
neste aqui, vemos visitas do “passado bizarro”, numa mobilidade temporal. No
primeiro filme, os dois eram prisioneiros de um lugar, agora, Dante é prisioneiro
de um tempo.
O que torna mais curioso no filme de Smith, entretanto, é que, vista por cima,
sua trama não é muito diferente das de filmes de self-made-young-man habituais.
O final “empreendedor” dos personagens – com Becky grávida, Dante “maridão”,
Randal ainda-sacana-mais-ainda-domável, na figura de melhor amigo, não deixa
de ser justamente a imagem de bombeiro – e não parece ser à toa que eles vão
salvar justamente a loja de conveniência que havia sido incendiada, aquele lugar
que é o centro de seu passado. É o passado o grande capital.
A seqüência em que o filme se converte em musical, com o elenco se apresentando
ao som de Jackson Five, inclusive, é o ícone disso. Vemos Rosário Dawson com
seu sorriso absolutamente irresistível e contagiante, muito bem explorado pela
câmera de Smith – a ensinar Dante a dançar. E vemos a fauna de personagens do
presente decadente de Dante – afinal, no final das contas, ele é balconista de
um fast food! – a dançar e cantar, a mostrar a vida de uma forma mais
alegre, mais doce. A conclusão de Smith é a de que o loser tem um lugar
na coreografia.
O Balconista 2, no final das contas, é melhor como metafilme do
que como filme. Seu valor como obra é maior como sepultamento definitivo
do filme de jovem dos anos 80. No fundo, a operação promovida por Smith é a
de uma nostalgia, não só de seu próprio cinema, mas do de John Hughes,
de um cinema em que a juventude protagonizava sua modernidade, sua utopia
de domínio do sonho de futuro em um presente apaixonado pela vida, por
mais que houvesse repressão. Mas é também a constatação de uma certa impossibilidade
desse cinema, dada, hoje se constata, sua inegável inocência.
Alexandre Werneck
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