Uma das cenas mais simpáticas
do 14º Festival de Cuiabá foi Carlos Cortez apresentando
Querô
(que ganhou vários prêmios, dentre eles melhor longa-metragem,
direção, roteiro, ator) rodeado dos adolescentes que
atuaram no filme. Encabeçados por Maxwell Nascimento,
que faz o protagonista-título, os garotos estavam lá
animadíssimos, encantados com esse novo universo, o
cinema. E Cortez se portava como um pai orgulhoso, os
olhos brilhando diante da empolgação dos jovens – fortemente
talentosos, de fato. No filme, essa relação de proximidade
e afetividade está, como não é difícil perceber, na
cumplicidade da câmera com o personagem. Querô, espécie de Pixote anos 2000, perambula pela região
portuária de Santos observado por um cineasta que não
condena seus atos ou desfaz seus traços de personalidade
em nome de uma tipologia rasa. O personagem tem vida,
tem sangue (quente), tem histórico próprio. Se há nele
uma dimensão de estereótipo, esta não é suficiente para
esmagá-lo dentro de uma fôrma psico-sociológica. O peso da tragédia assombra o filme, marca
a construção em curva de sua narrativa, mas não é um
encalhe estético, pois resta espaço para cenas calcadas
tão-somente na energia dos atores. A seqüência na instituição
para menores é a melhor do filme talvez justamente por
se concentrar nessa rebeldia do corpo, nesse desespero
em não querer se deixar marcar fisicamente pelos desastres
morais da vida. Ali o filme deixou de lado os flashbacks
perturbados (imagens riscadas e sons alucinatórios,
fórmula batida demais para um filme que exibe momentos
de tanto frescor) e economizou nos cortes exclamativos
da montagem (há uma violência no raccord de que Paulo Sacramento, montador do filme, não extraiu a mesma força
presente em O
Prisioneiro da Grade de Ferro), e o resultado ficou
mais vivo, mais simples, menos saturado.
Nos quatro principais longas-metragens que pude ver
no festival, um enorme desnível foi se instalando em
relação ao lugar e à função concedidos aos personagens,
aos atores, aos corpos em cena. De Batismo de Sangue a Cão Sem
Dono, passando por Proibido
Proibir e Querô,
vemos um percurso que vai do arquétipo sem vida alguma
em direção ao personagem de carne e osso; um tipo de
personagem precisa justificar sua presença através de
argumentos humanistas e utilitaristas, o outro não precisa
dar maiores explicações a respeito de seu papel no filme.
É tudo no fundo muito simples. Ciro (Julio Andrade),
protagonista de Cão
Sem Dono, está no cinema porque está vivo. Já os
personagens de Batismo de Sangue estão no cinema porque
estão mortos. Quanto aos protagonistas de Proibido
Proibir e Querô,
cabe-lhes o caminho do meio, a zona intermediária entre
o signo e o corpo – e também entre a vivência palpável
e a condição de fantasmas condenados ao limbo da sociedade
e do cinema.
Revendo Proibido
Proibir, saltam melhor aos olhos não apenas as muitas
qualidades do filme, mas também aqueles momentos, já
anteriormente incômodos, em que um personagem funciona
como porta-voz de um comentário que claramente está
fora dele. O mais louvável do filme de Jorge Durán
é que, embora seus personagens sejam envolvidos em uma
situação-limite dentro do imaginário do contraste social
carioca, na maior parte do tempo tudo é vivido de uma
forma “pura”, a partir e com os personagens, desvinculada
do comentário de classe-média esclarecida que geralmente
se infiltra quase por osmose. Mas há sim os momentos
em que o fato presente se torna enunciado mastigado.
A vontade de fazer um retrato
de geração às vezes atravanca o filme, que encanta muito
mais quando mergulha no estado de incompreensão e impotência
que o final confirma. Se Caio
Blat tem seu melhor papel
desde que se entregou de corpo e alma ao cinema, é porque
seu personagem reaviva uma imagem de estudante universitário
que parecia catalogada e defunta; ele recupera nosso
interesse por um ambiente que o cinema brasileiro hoje
freqüenta muito pouco. Durán
cutucou certas regiões do mapa carioca que tinham virado
pontos cegos para o cinema. Qual o último filme que
tinha entrado numa universidade pública com tamanho
desejo de se integrar ao ambiente? É no trabalho com
o espaço, aliás, que Proibido Proibir triunfa: um Rio de Janeiro
de construções arquitetônicas que ou se degradaram,
ou se tornaram peças anatômicas a serem estudadas, vestígios
de um projeto de modernismo jamais levado a termo. A
periferia vem complementar esse espaço gangrenado, como
terreno mórbido em que as coisas ganham um tom ultradramático.
Por mais que aos jovens de Proibido
Proibir seja encomendada, vez ou outra, a tarefa
de mediar para o espectador o pano de fundo jornalístico
do filme, nem Caio Blat nem
Maria Flor nem Alexandre Rodrigues se ressentem de uma
falta de espaço, ou de uma subtração de energia vital
imposta pela idéia de “relevância social” do enredo.
O próprio desfecho do filme é uma condensação dos esforços
dramatúrgicos na figura dos três atores. A cena não poderia
ser filmada daquele jeito, levando a ação para um palco
(o mirante no meio da serra), caso a confiança nos atores
não fosse suficiente. Ironicamente ou não, nessa seqüência
cujo clímax é a explosão dramática – aquele corpo-a-corpo
no limite do teatral –, o melhor momento fica a cargo
de um procedimento explicitamente cinematográfico: o
falso-raccord criado pelo berro em off seguido de um close de Alexandre Rodrigues,
após o beijo de Maria Flor e Caio Blat.
Somente quando ocorre um plano mais aberto de Rodrigues,
à beira do precipício, percebemos que seu grito não
era um protesto contra o beijo dos outros dois, e sim
uma declaração de guerra aos inimigos ausentes, os policias
que o perseguem. A cena dali em diante abandona esse
tipo de opção estilística e se torna um mero registro
da intensidade dos personagens, lutando entre si até
que se agrupam e se abraçam como a formar um cacho,
um corpo social híbrido fundado na violência e na heterogeneidade.
Em Batismo de
Sangue, o mesmo Caio Blat que brilha em Proibido
Proibir faz um papel pouquíssimo interessante, não
porque se entrega menos, mas porque o enredo trata de
esvaziá-lo em prol de efeitos de enunciação – basicamente,
aqueles mesmos mecanismos de sempre para extrair uma
reação indignada da platéia. Frei Tito, em seu exílio
na França, já começa o filme pendurando uma corda para
se suicidar. A cena antecipa a simplória estratégia
de significação do filme. Enquanto o cadáver da ditadura
militar continua sendo dissecado pelo cinema brasileiro
a torto e a direito, ainda está para surgir um filme
contemporâneo extraordinário sobre o tema (além
do filme de Helvécio Ratton,
o festival passou Parabéns
Vítor, curta-metragem mato-grossense de Leonardo
Sant’anna que revisita a ditadura
através das memórias do protagonista, atormentado pela
culpa). Espanta em Batismo
de Sangue menos a repetição de antigos clichês do
que a forma sem-vergonha com que estes são encenados.
Que o filme reeditaria o mais convencional discurso
da ficção humanista de esquerda, aquele cruzamento de
escândalo político com trama policial embalado por um
clima de denúncia, isso já era de se esperar. A tosquice da dramaturgia, essa superou qualquer expectativa.
Não há pessoas no filme, apenas suportes de slogans
ideológicos, veículos de mensagens (a coisa é tão mal
agenciada que vez ou outra um personagem simplesmente
pára sua ação e solta uma frase feita). Também não há
corpos, mas símbolos de uma luta sacrificial
pela história brasileira. Os frades dominicanos formam
uma miríade do Cristo, seres torturados por inimigos
sádicos. O binarismo e o didatismo das composições são
inacreditáveis: a ditadura aparece como uma batalha
entre forças do bem e do mal encenada no limiar do ridículo.
Os vilões são vilões de desenho animado infantil, os
heróis são heróis de parábolas morais ensinadas em colégio
religioso. Daniel Oliveira, o rosto bom e a fala comedida
de um lado (atuação digna de um bom moço de novela das
seis); Cássio Gabus Mendes,
o torturador, o rosto mau e a fala psicótica do outro
(aqui a matriz já seria mais as reconstituições de fait divers do Linha Direta). Será que o gore das cenas de tortura sugere que elas são mais torpes ainda do
que as outras torturas, porque direcionadas a rapazes
devotados ao dever espiritual e aos ideais cristãos?
Nada resta aos atores além de corroborar, por expressões
tão carregadas quanto vazias, um discurso pra lá de
desbotado.
O filme que facilmente se destaca nesse contexto é Cão Sem Dono. Na verdade, não apenas no contexto dos filmes brasileiros
mostrados em Cuiabá, mas no ano de 2007 de maneira geral.
Beto Brant fez possivelmente seu melhor filme, posição
que até então cabia de forma mais ou menos unânime a
O Invasor.
Na época deste, aliás, era engraçado observar como a
obra parecia ter fugido ao controle do diretor a tal
ponto que a dimensão discursiva do roteiro e dos personagens
brotava quase como acidente. Tudo tinha seu lugar numa
telescopagem urbana absurdamente
significativa para a São Paulo dos dias de hoje. Mas
tudo tinha também seu lado abstrato e os atores não
tinham muitos poderes sobre a pulsação acelerada dos
planos. Em Cão
Sem Dono há um mesmo poder de aspiração do real:
os personagens podem a qualquer momento se deixar tragar
por uma força interna à filmagem. A verdade do ator
prevalece como motor da mise en scène, mas o jogo requer
certas falhas de controle. Aqui não temos carreadores
de enunciados unívocos, com significado prescrito, e
sim pessoas vivas, cheias de insegurança e opacidade.
O personagem de Julio Andrade é realmente visceral,
um homem de afetos mais que de idéias. Antídoto perfeito
aos pombos-correios de Batismo de Sangue, figuras que se limitam a entregar mensagens erodidas
pelo vento. Ciro felizmente é “só” um personagem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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