Uma das principais questões
que marca certo cinema contemporâneo americano (especialmente
este feito em grandes estúdios, com grandes orçamentos)
é como dialogar com uma geração de jovens mais afeita
às histórias dos quadrinhos que aos clássicos literários,
aos jogos de videogame que aos de tabuleiro, à velocidade
da internet que à pesquisa em bibliotecas e enciclopédias,
aos cortes incessantes e “rítmicos” de um videoclipe
(ou uma publicidade) que aos planos “funcionais” de
um cinema narrativo mais clássico. Em resumo, como conciliar
a necessidade de se envolver o espectador durante uma
narrativa de aproximadamente duas horas – ou mais, cada
vez mais – com sua vontade de velocidade incessante,
ação permanente, constante adrenalina.
Pois o espectador atual, longe de qualquer espécie de
ignorância ou falta de conhecimento que boa quantidade
de estudiosos, por preconceito ou ingenuidade, tenta
comprovar, nunca esteve tão informado ou atento. Os
extras dos DVDs, com seus making-ofs e comentários
do diretor, a possibilidade de se baixar praticamente
qualquer série ou filme na internet (ou de assistir
no youtube), o desgaste de décadas dos gêneros
narrativos, enfim, uma série de elementos conjuntos
leva a uma falência cada vez maior de um cinema de “ilusões”
para um novo modo de operação no qual os filmes funcionam
e sobrevivem a partir da interação necessária com o
espectador. Não mais os planos auto-explicativos e roteiros
profundos, cujo sentido precisa ser imposto a quem estiver
assistindo, para que não haja fuga possível a não ser
embarcar na obra como se a realidade extra diegética
não existisse; agora, os filmes precisam convencer o
espectador hiper-consciente de que vale a pena, minuto
a minuto, gastar seu tempo dentro do cinema ou na frente
da televisão. E como convencer?
Nessa lenta transformação do cinema americano (ainda
em curso, sempre em curso), os filmes, então, deixam
de ser “complexos”, profundos, literários. As exigências
dramatúrgicas não passam mais por uma ligação de causa
e conseqüência, uma construção narrativa em três atos,
uma “profundidade psicológica” no perfil e desenvolvimento
de cada personagem. Se isso continua a existir em dramas
e outros gêneros mais “sérios”, o cinema americano de
grande orçamento parece ter se libertado dessa prisão
narrativa, e de todo aspecto “funcional” que a mise-en-scène
precisa desenvolver a partir disso. As construções dramáticas
estão expostas de forma irrefreável, e, dada essa informação,
cabe aos cineastas ou modificá-las ou, simplesmente,
abandoná-las. O cinema não mais precisa se estabelecer
enquanto mundo; ser cinema já basta.
Assim, existe em cada realizador deste “novo cinema
narrativo”, perdido entre o respeito a uma construção
que sobreviveu a inúmeras décadas e a necessidade de
assumir sua falência, a possibilidade de encontrar um
caminho que una esses dois extremos: a exigência de
se contar uma história e, ao mesmo tempo, sua impossibilidade.
É a partir dessa questão que alguns dos mais interessantes
cineastas atuais compõem sua obra, a partir não do pessimismo
(ou ceticismo) em relação às possibilidades do cinema
se sustentar enquanto mundo que marcou uma geração,
mas da liberdade que isso proporciona. Menos um viés
crítico sobre esta situação (que talvez tenha surgido
com mais alarme durante os anos 80), mais uma forma
de lidar com ela, ao mesmo tempo propositiva e animadora,
pois, melhor do que mudar o já estabelecido, é saber
dialogar com isso.
Portanto, em vez desse cinema pretensamente profundo,
no qual cada ação precisa estar justificada por uma
série de ações anteriores, no qual um plano-detalhe
não pode existir sem ser retomado depois, no qual um
personagem não pode tomar reações aleatórias, no qual,
melhor dizer, para assumir sua profundidade ilusória,
nada pode ser aleatório; em vez desse cinema, vários
filmes americanos contemporâneos de grande orçamento
trabalham o caminho contrário: constroem sua narrativa
a partir de uma superfície maleável, e resolvem todas
as suas questões dentro dessa mesma superfície. Um cinema
que, por não precisar de maiores explicações, encontra
seu prazer – e sua liberdade – neste terreno perigoso
e inesperado de uma planificação das estruturas. Este
certo cinema americano contemporâneo é propositalmente
superficial.
Talvez por isso, Homem-Aranha 3, dirigido por
um cineasta que construiu sua carreira durante este
período de transformação (e sempre muito ciente de seus
significados) seja um ótimo exemplo desta nova estrutura,
o que faz com que várias críticas (muitas delas bastante
conservadoras) sejam, no mínimo, injustificadas. Como
poucos filmes recentes, Homem-Aranha 3 concentra-se
em um limite bastante tênue sobre o quanto de informação
pode caber em uma mesma superfície e sobre o quanto
desta informação pode ser abandonada de um momento para
outro, sem prejuízos para o filme e o espectador. Ao
contrário do restante da série, que se construía a partir
de um modelo bastante calculado de mistura entre o cômico
(ou paródico) e o emocional, entre a herança dos filmes
B e uma narrativa dramática mais clássica, entre um
trabalho genuíno de humanização do super-herói e sua
existência histórica enquanto ícone, neste último episódio
Sam Raimi parte do princípio de que esta base de mistura
já está estabelecida, e que se pode trabalhar estas
características a qualquer hora, uma se mesclando à
outra, sem distinções.
Assim, uma multidão de personagens importantes pode
adentrar ou ter sua situação resolvida na narrativa,
sem que o tempo do filme aumente de forma substancial.
As cenas de ação podem ser maiores e mais numerosas
do que nos outros episódios. O drama do herói ainda
mais perigoso para ele mesmo (transformar-se em um vilão,
perder a mulher de sua vida). As cenas cômicas deixarem
de ser aspectos periféricos para tomarem parte central
do filme. Como fazer isso? A partir de um desenvolvimento
de acumulação e velocidade em cada seqüência. O que
foi construído pode ser abandonado ou retomado a qualquer
momento, sem nenhuma explicação. Uma cena de drama se
transforma no momento de humor do filme (a “transformação”
de Peter Parker) e volta, subitamente, a ser uma cena
de drama. Uma amizade é retomada por uma frase de roteiro
e uma inserção musical. Explicação maior, para quê?
O espectador já entende.
Nesse sentido, cada plano – ou seqüência – parece existir
ou desvinculado do resto do filme ou como se todos fossem
ligados por uma linha que pode ser quebrada a qualquer
momento. O que os une já está pré-estabelecido desde
antes do início da projeção. Estamos em uma situação
em que, de uma hora para outra, a narrativa pode explodir,
por não caberem tantos elementos em uma mesma superfície,
ou mesmo enveredar por um caminho que, de tão distante,
parece não conseguir voltar a seu ponto anterior. Se
Homem-Aranha 3 volta e meia cai tanto no ridículo
quanto no negativamente exagerado é, ao mesmo tempo,
por culpa da preguiça e do risco do diretor, pois, se
não há mais controle possível dos caminhos de um filme,
e se a liberdade é imensa, muitas vezes acomodar-se
nela torna-se apenas uma desculpa.
Apesar disso, poucos diálogos entre filme e espectador
se mostraram tão pertinentes quanto o de Raimi em Homem-Aranha
3. Se os dois episódios anteriores tentavam construir,
e desconstruir, o ícone, neste novo o diretor parte
da premissa de que este Homem-Aranha já está plenamente
construído (não por acaso, o culto dos habitantes de
Nova Iorque sobre este modelo existente diegeticamente
não é diferente do culto do espectador sobre este modelo
imaginário). Por isso, uma imagem icônica, uma mudança
no cabelo, uma roupa preta (o nome de Venom não é citado,
mas todos sabem de sua existência) bastam plenamente.
E por isso, esse limite de personagens, situações e
gêneros consegue se mostrar tão elástico. Raimi trabalha
o ícone de forma tão constante e presente (na trama
meta-lingüística, nos momentos cuja decupagem parece
copiada dos filmes anteriores, nas referências a filmes,
brinquedos, jogos, etc., nas piscadelas de olho para
o espectador) que acaba por esvaziá-lo. É como se este
tivesse de ser o último filme da série, não porque todas
as histórias foram resolvidas, mas porque a acumulação
de elementos sobre um mesmo ícone (e, portanto, uma
superfície, apenas) fosse tão grande que ele sucumbisse
a ela. O Homem-Aranha não morre no filme, mas, agora
que deixou de ser homem, pois é ícone, e agora que deixou
de ser ícone, pois já está totalmente mapeado, para
onde ir? Um desfecho que, para além de qualquer desenvolvimento
narrativo, parece se perguntar como manter um cinema
que, ao mesmo tempo em que se estrutura, se devora.
Se Raimi é um cineasta que, ao mesmo tempo, elogia a
tecnologia e as novas possibilidades narrativas, mas
pergunta para onde elas podem apontar, outros modelos
trazem respostas possíveis. De um lado, temos séries
como Velozes e Furiosos, que, próximos à experiência
de um jogo de videogame de corrida (e os videogames
merecem certamente um estudo à parte nessa nova configuração
do cinema americano), prometem ação constante do início
ao fim da projeção, dando ao espectador não um escape
emocional, mas fazendo da narrativa um alívio físico,
uma injeção e descarga de adrenalina. De outro, filmes
como Panteras Detonando, que fazem da pergunta
de Raimi quase uma constatação definitiva. É, sim, a
partir dos ícones e da superfície das imagens que se
pode trabalhar, mas isso deve ser só um começo. Estes
mesmos ícones, este mesmo excesso de informação que
se avoluma permite combinações infinitas, e não há limites
possíveis para o processamento delas. O entendimento
do espectador sobre cada plano aumenta consideravelmente
(a ponto de, pelo número altíssimo de planos nos filmes
atuais, a existência individual deles nem ser mais uma
questão), e novas experiências em termos de ritmos,
combinações e tecnologias podem ser tramadas. Nesses
trajetos, a importância da narrativa diminui de tal
forma que ela não é mais o elemento central, apenas
mais um nesse caminhão de superfícies possíveis (e que
possivelmente vá virar tão descartável quanto tantos
outros).
Temos, também, as experiências de criação de mundos
digitais, a partir dos quadrinhos. Isso significa não
apenas a filiação a um modelo icônico e plano, mas,
principalmente, a idéia de que trabalhar o espaço pode
ser filmar os atores à frente de um fundo verde. Esta
construção não apenas separa o fundo da superfície,
mas dá a ela toda a importância, pois é ali que consiste
a ação da obra, é nela que o filme se movimenta. Neste
cinema contemporâneo, tudo que pode ser exposto será,
em um exagero que pode ter fins trágicos, como no caso
de 300, modelo em que a necessidade de ultrapassar
qualquer limite tirou da obra toda a energia que poderia
estar contida dentro dela (em um ridículo que não percebe
que para trabalhar as tecnologias atuais é necessário
ter um pensamento por trás delas). Perdido entre a necessidade
de contar uma história da melhor forma (com o perigo
das associações políticas que podem estar contidas dentro
dela), munido de uma seriedade e de uma auto-importância
infeliz, 300 não consegue dialogar com este cinema
contemporâneo de forma produtiva. Preso a seus modelos,
sucumbe a eles.
Dessa forma, as combinações possíveis geram ao mesmo
tempo esquizofrenias experimentais tão marcantes e enjoativas
como as de Tony Scott (cineasta ao qual se pode, e se
deve, ser feita qualquer crítica, menos a de que ele
não pensa como construir novas imagens neste mundo tecnológico,
informacional e interativo) e obras como Kill
Bill, na qual Tarantino faz de cada seqüência
uma homenagem ao cinema que passou e um apontamento
ao cinema que está por vir, através não só das inúmeras
e variadas citações, mas a partir de uma construção
na qual cada plano parece, por si só, constituir um
novo filme possível, e dentro da qual cada cena permite
ser retirada do contexto, como se assistir a ela fosse
estar em contato com um cinema tão referenciado quanto
primitivo, por se bastar nele mesmo.
O que este cinema de superfície trará nos próximos anos?
Impossível saber. Mas é preciso que a crítica se acostume
a ele, pois a acumulação e a velocidade das informações
continuam a aumentar, sempre. E, melhor do que virar
as costas para o já estabelecido,
é saber dialogar com isso. Pois, hoje em dia,
os jovens de 15 anos entendem certos filmes muito melhor
do que quem os critica.
Leonardo Levis
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