“Philippe, I can’t breathe. Can you
help me, please. Help
me, please”. Mas Philippe
se solta da mulher e percorre um grande círculo, para
encontrá-la, aos prantos e no mesmo lugar: “I don’t
need you”, enquanto o empurra. Essas
palavras, ditas dessa maneira sofrida, logo no início
de La Cicatrice Intérieure, encontram
eco em quase todos os filmes posteriores de Philippe
Garrel. Como em
Les Baisers de Secours,
La Naissance de L’Amour,
J’Entends Plus la Guitare,
e em muitos outros, somos levados ao íntimo de um casal
que briga irremediavelmente. Mas no início dos anos
70, Garrel ainda era um enfant terrible disposto
a subverter certos códigos narrativos em busca de uma
linguagem que só responde às pulsões mais sinceras e
atormentadas. La Cicatrice Intérieure é um filme-súmula
de procedimentos que o diretor já explorava anteriormente
e iria lapidar, moldar a uma estrutura mais linear e convencional
em filmes futuros; é ao mesmo tempo um filme único na
concretização de objetivos poéticos e na abordagem de
mitos, feitiços e símbolos nem sempre identificáveis.
Poucos anos separam Le Révélateur de
La Cicatrice Intérieure. Entre um
e outro, Le Lit de la Vierge,
Nico, a ressaca de maio de
1968, a consolidação de uma promessa
com os filhotes da Nouvelle
Vague (Garrel
entre eles), e a adoção da cor como elemento assustador,
e do espaço aberto como aprisionamento dos personagens.
Sim, porque La Cicatrice Intérieure traz o paradoxo:
o desolamento espacial, a praia deserta e os horizontes
livres servem para enredar um delírio narrativo com
um visual carregado de símbolos; a cor, mesmo esmaecida
e borrada pela qualidade da cópia disponível, oprime
os vôos, as tentativas de libertação. A
alma dolorida e desnudada, um casal na vida real representando
suas próprias crises, suas viagens e neuroses.
Nico expulsa Garrel
de sua vida e parte para uma jornada por desertos e
cavernas. As músicas ainda mais lúgubres da chanteuse embalando as manifestações de raiva e
fúria, bem como a cicatrização das feridas amorosas.
La Cicatrice Intérieure é o contrário
de Le Révélateur,
em que os planos de incrível simetria tentam manter
o casal em harmonia, com o filho como um anjo a guiar
marido e mulher, perdidos entre a necessidade de criar
esse filho e a necessidade
de partir para outra vida, outra história. O silêncio
que reforça o poder dos planos, as composições e o uso
extremamente opressivo da luz. La Cicatrice Intérieure amplifica
as dores de Le Révélateur,
são filmes de almas dilaceradas pelas inconstâncias
do amor, tendo uma criança sempre a acompanhá-los. Enquanto
em um temos um preto e branco mais contrastado do que
em qualquer outro filme de Garrel
(o p&b dos franceses, cheios de meios tons, sendo transgredido
pela luz onipresente e agressora que ele buscava), no
outro há uma luminosidade que ora lembra a das pinturas
românticas, ora torna-se puro abstracionismo, compondo
alguns planos de beleza visual impressionante. No primeiro
a criança é a razão de ser da união do casal, no segundo
a criança é a razão de ser da jornada de auto-descoberta
de Nico. La Cicatrice Intérieure poderia se
chamar “O Filme de Nico”,
pois é uma declaração de amor à cantora do primeiro
do Velvet Underground, por
quem Garrel se apaixonou durante
as filmagens de Le Lit de la Vierge.
Nico criou
os diálogos, deu algumas de suas músicas belas e estranhas,
e sua presença ilumina quase todas as seqüências do
filme.
Le Révélateur começa
com um homem adentrando um quarto
escuro, vindo de uma claridade insuportável.
A criança, primeira pessoa que vemos no plano, observa
do alto do beliche, e na maior parte do tempo fica fora
do quadro, o casal compartilhando fogo para acender
os cigarros. Eles saem, então, em direção à claridade,
somem na luz, deixando a criança na escuridão solitária
do quarto. Uma luz irreal, invasiva,
que faz contraponto à luz localizada e muito suave que
existe em cima da criança, enquanto ela observa o casal
se fundindo à claridade e deitando em uma cama que mal
podemos ver. A obscuridade da infância, a alienação
dos pais da geração que participou de maio de 68, as
drogas, tudo em
Le Révélateur
transpira aquela época, ao mesmo tempo em que se abre
às mais intensas e pessoais digressões. As imagens que
seguem não permitem explicações tão simples: um corrimão
sendo percorrido com solenidade por Bernardette
Lafont enquanto Laurent Terzieff
a acompanha, uma criança acuada debaixo do que parece
ser uma escada, o letreiro com o título do filme, e
a luz no fim do túnel. Imagens que vêm de instintos,
a serviço da poesia cinematográfica pura, que vem do
âmago e nunca de qualquer formulação pretensamente poética.
A poesia vem principalmente de uma justeza na conexão
dos planos, na sinceridade com que toda essa fúria criativa
da juventude se materializa diante da câmera. Em um
outro momento Lafont e Terzieff
estão num bosque, e conforme ela se recosta nas árvores,
ele se aproxima e a toca, ao que ela se afasta e vai
para outra árvore, e ele se aproxima novamente e a toca,
ela se afasta, e assim sucessivamente, numa repetição
da ação que parece seguir para muito além do corte.
Imagens como essa, que mostra uma mulher irredutível
aos apelos do homem, são constantes nos dois filmes.
Mas onde Le Révélateur é obscuro, La Cicatrice
é intenso; onde no primeiro há estudo e intransigência,
no segundo há revolta e resignação.
La Cicatrice Intérieure
é obra de alguém que se viu obrigado a amadurecer. Alguém
que passou por todos os percalços amorosos que se pode
passar, e resolveu regurgitar suas neuras, suas angústias, usando sua própria mulher na época
para externá-las em imagens. La
Cicatrice Intérieure é a obra que foi modulada a
partir das experiências visuais que já existiam, de
forma mais abrupta e descontrolada (e tanto melhor que
fosse assim) em Le Révélateur.
Mas talvez o que fique mais claro analisando Le Révélateur e La Cicatrice
é que ambos são, além da exposição das dores e de muito
mais, ensaios sobre a incidência da luz no cinema. Enquanto
um se beneficia do monocromatismo
para buscar efeitos impressionantes de isolamento e
incomunicabilidade (tendo a falta de banda sonora como
importante aliada), o outro usa cores irreais para tornar
a luz ainda mais expressiva. Porque a luz desses dois
filmes parece ser uma presença quase inatingível de
tão marcante e opressora. Como se a eles estivesse destinado
um lugar no paraíso, mas seria necessário
uma provação, que eles nunca saberão como e quando
virá. São personagens num limbo, à espera, à procura
de uma salvação, mágica, sobrenatural. Isso fica mais
claro em
La Cicatrice, pela existência
de um cenário natural que se altera radicalmente com
o simples movimento panorâmico da câmera. Pierre Clementi
acorda em um pequeno barco à beira do mar e monta nu
em seu cavalo branco. A câmera faz uma panorâmica que
o pega primeiramente com o
mar ao fundo, para depois filmá-lo à frente de rochedos
do lado oposto do mesmo cenário. Aí vemos que Nico
observava dos rochedos sua saída do mar. Primeiro o
clarão rebatido no mar, depois o breu das rochas com
musgo. Vale lembrar que no início, quando Garrel
anda em um grande círculo, percebemos as alterações
de luz, apesar de a panorâmica circular fazer parecer
que ele anda em linha reta e por uma paisagem que se
altera magnificamente ao redor dele. A paisagem faz
parte da experiência, como raras vezes havíamos visto
até então.
Em
Le Révélateur,
eles parecem estar em todos os lugares possíveis, mesmo
que saibamos que eles se limitam aos arredores. Não
há uma geografia visível que os circunde. Nesse sentido,
a luz invasiva os aprisiona
num quadro quase sempre composto de profunda escuridão,
mas os liberta de um local palpável,
que possamos identificar e conhecer. São lugares
mutáveis pela luz, como se fossem dimensões diferentes:
bosque, estrada, quarto, túnel, lugares que mudam de
acordo com a incidência maior ou menor da luz. Luz cuja
incidência controlada é necessária para a revelação
de um filme, para a queima do negativo? Ou seria apenas
a luz da ribalta iluminando os atores, como sugere a
inacreditável cena em que o menino observa de uma platéia
os pais brigarem numa sala tornada palco de teatro?
Ou ainda a luz que incide rebatida sobre as tentativas
do casal de vencer os obstáculos na segunda parte do
filme, momento em que os espaços se abrem e a luz do
dia se faz mais presente? Garrel
não estava interessado em fornecer respostas fáceis
– como que vindas de uma bula –, a experiência é o que
mais conta nessa fase de sua carreira, a oportunidade
de testar os limites do cinema, de entregar sua juventude
prática às divagações de sua imaginação.
Em Le Révélateur temos o silêncio completo, o
que parece deixar a experiência num tom mais frio. E
de nada adianta uma atriz carnal como Bernardette
Lafont, estamos diante de um exercício formal radical, com
alternância ensandecida entre travellings
imensos e planos fixos, que se alimenta da distância
entre espectador e personagens. Deles, pouco sabemos,
e o que nos é revelado é quase sempre filtrado pelas
invasões da luz e das sombras. Num dos momentos mais
emblemáticos do filme, o casal corre, em back projection,
atrás da criança, que tem um spray nas mãos, objeto
que ela insiste em colocar para fuincionar.
É um plano-seqüência aflitivo, que parece querer que nos
identifiquemos com a criança, ao mesmo tempo em que
a pinta como um dos principais motivos das desavenças
do casal. Em La Cicatrice,
temos o oposto. Somos lançados no centro do desespero,
e ajuda ter atores como Nico, que sempre me pareceu a personificação
do desespero, e Pierre Clementi,
ator que se desnuda literalmente em
cena. Temos, assim, a luz interagindo
com o coração dos personagens, amplificando as sensações,
permitindo que esses personagens tão mágicos vivam com
uma intensidade trágica e surreal, à
Buñuel, nesse limbo imposto
a eles.
São duas obras-primas de um dos maiores diretores em atividade. Uma é incompleta,
pueril em certos momentos, e até infantil no uso de
certas simbologias. Outra é precocemente madura, solene,
entorpecente, e também abusiva e arriscada, como o melhor
cinema de invenção. Obras que ilustram muito
bem essa primeira fase de seu cinema. A partir
de L’Enfant Sécret, iniciaria-se uma outra fase, mais autobiográfica e narrativa,
mas igualmente centrada nas desilusões amorosas. Com
Les Baiser de Secours, uma terceira fase se inicia, com a colaboração
do escritor Marc Cholodenko,
uma fase que seria mais conhecida e admirada em todo
o mundo. Mas o que fica evidente é que, apesar da diferença
entre o experimentador da juventude e a crise da meia
idade, existe um diretor que manteve uma coerência rara
no cinema de qualquer tempo, e uma obra que parece ter
um corpo tão coeso que permite que conheçamos todas
as suas inseguranças e frustrações mesmo tendo poucos
de seus filmes à mão. Se Garrel
é mesmo o diretor da ruptura e da reconciliação, ainda
que às vezes essa reconciliação seja apenas com ele
mesmo, é difícil definir quando um ou outro ocorre.
O que acompanhamos são as indefinições da vida, que
só serão compreendidas muito depois do término das projeções.
Porque Garrel fala de coisas
comuns a todos nós, com ou sem espalhafato, com maior
ou menor experimentação. É um coração em processo de
contínua dilaceração e reconstrução que somos convidados
a acompanhar em seus filmes.
Sérgio Alpendre
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