Extravagante
e alegórico, esse curiosíssimo filme de Roy Rowland
representa um clássico infantil do pós-guerra. Ele nos
transporta para o pesadelo de Bart Collins, um menino
de 9 anos que, cansado e atormentado pela prática excessiva
imposta por seu professor de piano, adormece sobre as
teclas e sonha estar preso numa fortaleza onde é mantido
em regime de escravidão. O professor se chama Dr. Terwilliker,
ou simplesmente Dr. T, caricatura de ditador que mantém
Bart e mais centenas de outros meninos encarcerados
num mundo delirante e labiríntico, no qual um piano
gigante, de dois andares, está à espera do dia em que
os 500 meninos, com seus 5000 dedos, executarão o concerto
“definitivo” composto pelo tirano. Essa estrutura enclausurada
do castelo do Dr. T é habitada por vilões egressos da
literatura fantástica (Alice no País das Maravilhas
e Peter Pan aparecem como referências notórias)
e do cinema fantástico dos anos 30. O enredo de sonho,
recorrentemente alimentado pela invasão da psicanálise
no cinema hollywoodiano dos anos 40 e 50, se serve aqui
de cenários cuja arquitetura remete tanto às gravuras
de Escher (geometrias do impossível, escadas que se
curvam e se bifurcam de maneira a desafiar a coerência
do espaço) quanto ao expressionismo alemão e suas “paisagens
imbuídas de alma” (Landschaft mit Seele).
Em Os 5000 Dedos de Dr. T, o ditador se veste
com roupas coloridas e repletas de adornos, um tipo
de vilão que os desenhos animados trariam com muito
mais freqüência que o cinema. Roy Rowland parece ter
feito mesmo um desenho animado filmado, mas seus grafismos
precisam negociar com o “realismo” da imagem fotográfica.
Para atingir o grau de fantasia exigido, ocorre então
um pesado investimento nos detalhes da cenografia, dos
figurinos e da iluminação. A vivacidade do Technicolor
se alia ao poder do cinema de dar vida a sombras e a
cenários gigantescos, promovendo um curioso encontro
do expressionismo com as comédias musicais americanas.
O diretor de fotografia Franz Planer, que teve sua formação
estética no cinema mudo alemão, está lá para trabalhar
a luz e o enquadramento de modo a ressaltar a impressão
de que adentramos um mundo de cabeça para baixo, como
uma cidade legendária submersa, lugar indeterminado
onde vivem não exatamente os homens, mas seus demônios
íntimos, suas neuroses inconfessáveis à luz do dia.
Vendo Os 5000 Dedos de Dr. T hoje, essa sensação
se acentua, pois é também o filme em si, seu universo
simbólico e sua forma, o que nos parece uma cidade fantasma,
um elo perdido no imaginário do século XX. Essa geografia
morta recebe a visita graciosa de um menino que, em
última análise, sente a falta de um pai, e projeta essa
ausência na figura simpática do encanador que vai a
sua casa no início do filme. Isso fica mais claro na
primeira vez em que eles se encontram no mundo dos sonhos:
enquanto conversam, Bart procura nele tanto um protetor
quanto uma companhia para os fins de semana. Quando
o menino adormece no ombro do encanador, a ternura do
momento aponta um novo pai para ele. Não precisamos
entrar na mente de Bart, ver o sonho dentro do sonho,
para saber o que se passa na sua imaginação enquanto
dorme: ele sonha com a nova família que ali se insinua.
Toda a narrativa pode ser resumida aos movimentos de
Bart pelo interior da cidade cenográfica construída
para o filme. Fugindo do exército de Dr. T (que inclui
dois gêmeos que andam de patins e estão ligados pela
barba, personagens bem à moda Lewis Carroll), Bart divide
seu tempo entre subidas e descidas, desvios por corredores
que oprimem e distorcem o ambiente, criando uma narrativa
pautada em unidades de pura ação que o filme soma, uma
a uma. A meta de Bart é se libertar de Dr. T e salvar
sua mãe de um estado de hipnose permanente. Sob a simplicidade
e a literal infantilidade dessa trama, no entanto, revela-se
um filme misterioso, que sugere muito mais do que o
desejo de família e de bem-estar – algo bem natural
para uma ficção alojada no imaginário do subúrbio americano
dos anos 50 –: descobrimos, em paralelo, que entre as
muralhas e as sombras da fortaleza do Dr. T escondem-se
também alguns dos cadáveres da Segunda Guerra. A começar
pelo próprio vilão, a figura grotesca e anedótica que
o nazismo inspirou como forma de purgação daquele horror
histórico/político então recente. A premissa de disciplina
absoluta seguida por Dr. T (“prática é perfeição”, ele
diz) é acompanhada de uma ideologia de pureza: nenhum
outro instrumento além do piano é permitido em seu reino.
Todos aqueles que tocam outros instrumentos são levados
a um arcabouço subterrâneo onde vivem torturados, aos
frangalhos, como em verdadeiros campos de concentração.
A mãe de Bart, hipnotizada, se encarrega da burocracia
local, vivendo uma espécie de prisão consentida.
Essa sociedade disciplinar e purista, que Dr. T sustenta
com a ajuda de toda uma população que age como que enfeitiçada,
possuiu seu mais próximo paralelo no mundo real na Alemanha
nazista – o mesmo país que anteriormente, nos anos 20,
produzira o conjunto de filmes em que se acha a matriz
de alguns dos traços estéticos mais marcantes de Os
5000 Dedos de Dr. T. O fantasma da bomba atômica
está também presente, encarnado na poção mágica que
Bart e o encanador inventam para suprimir os sons e
derrotar Dr. T na hora da execução de sua peça musical
grandiloqüente (uma bela paródia do conceito de obra
de arte total). A poção põe fim aos poderes do ditador,
mas seu revés destrutivo é uma potência atômica que
o filme ilustra pela pirotecnia que encerra o sonho
de Bart. A guerra terminou, mas ao preço de um poder
de aniquilação massiva.
O mistério desse filme pode ser ainda melhor exemplificado
pela cena musical ambientada no subterrâneo onde ficam
os músicos renegados, os não-pianistas. Lá Rowland realiza
a cena mais grandiosa do filme. Vestidos como farrapos
humanos, dezenas de dançarinos ocupam de um lado a outro
o cenário fazendo uma coreografia complexa e inventiva.
Os cortes e os movimentos de câmera são extraordinários,
vão de um pedaço da cena ao outro para criar sua própria
música visual. Através dessa coreografia estranha e
exuberante, o filme desencava o capítulo mais cruel
da história a que alude: o Holocausto. Os 5000 Dedos
de Dr. T, portanto, não é um testemunho somente
da perda de inocência, mas também dos novos poderes
de abstração que a arte sinistramente adquiriu após
os traumas das guerras mundiais.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Magnus Opus)
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