OS 5000 DEDOS DO DR. T
Roy Rowland, The 5000 Fingers of Dr. T, EUA, 1952

Extravagante e alegórico, esse curiosíssimo filme de Roy Rowland representa um clássico infantil do pós-guerra. Ele nos transporta para o pesadelo de Bart Collins, um menino de 9 anos que, cansado e atormentado pela prática excessiva imposta por seu professor de piano, adormece sobre as teclas e sonha estar preso numa fortaleza onde é mantido em regime de escravidão. O professor se chama Dr. Terwilliker, ou simplesmente Dr. T, caricatura de ditador que mantém Bart e mais centenas de outros meninos encarcerados num mundo delirante e labiríntico, no qual um piano gigante, de dois andares, está à espera do dia em que os 500 meninos, com seus 5000 dedos, executarão o concerto “definitivo” composto pelo tirano. Essa estrutura enclausurada do castelo do Dr. T é habitada por vilões egressos da literatura fantástica (Alice no País das Maravilhas e Peter Pan aparecem como referências notórias) e do cinema fantástico dos anos 30. O enredo de sonho, recorrentemente alimentado pela invasão da psicanálise no cinema hollywoodiano dos anos 40 e 50, se serve aqui de cenários cuja arquitetura remete tanto às gravuras de Escher (geometrias do impossível, escadas que se curvam e se bifurcam de maneira a desafiar a coerência do espaço) quanto ao expressionismo alemão e suas “paisagens imbuídas de alma” (Landschaft mit Seele).

Em Os 5000 Dedos de Dr. T, o ditador se veste com roupas coloridas e repletas de adornos, um tipo de vilão que os desenhos animados trariam com muito mais freqüência que o cinema. Roy Rowland parece ter feito mesmo um desenho animado filmado, mas seus grafismos precisam negociar com o “realismo” da imagem fotográfica. Para atingir o grau de fantasia exigido, ocorre então um pesado investimento nos detalhes da cenografia, dos figurinos e da iluminação. A vivacidade do Technicolor se alia ao poder do cinema de dar vida a sombras e a cenários gigantescos, promovendo um curioso encontro do expressionismo com as comédias musicais americanas. O diretor de fotografia Franz Planer, que teve sua formação estética no cinema mudo alemão, está lá para trabalhar a luz e o enquadramento de modo a ressaltar a impressão de que adentramos um mundo de cabeça para baixo, como uma cidade legendária submersa, lugar indeterminado onde vivem não exatamente os homens, mas seus demônios íntimos, suas neuroses inconfessáveis à luz do dia.

Vendo Os 5000 Dedos de Dr. T hoje, essa sensação se acentua, pois é também o filme em si, seu universo simbólico e sua forma, o que nos parece uma cidade fantasma, um elo perdido no imaginário do século XX. Essa geografia morta recebe a visita graciosa de um menino que, em última análise, sente a falta de um pai, e projeta essa ausência na figura simpática do encanador que vai a sua casa no início do filme. Isso fica mais claro na primeira vez em que eles se encontram no mundo dos sonhos: enquanto conversam, Bart procura nele tanto um protetor quanto uma companhia para os fins de semana. Quando o menino adormece no ombro do encanador, a ternura do momento aponta um novo pai para ele. Não precisamos entrar na mente de Bart, ver o sonho dentro do sonho, para saber o que se passa na sua imaginação enquanto dorme: ele sonha com a nova família que ali se insinua.

Toda a narrativa pode ser resumida aos movimentos de Bart pelo interior da cidade cenográfica construída para o filme. Fugindo do exército de Dr. T (que inclui dois gêmeos que andam de patins e estão ligados pela barba, personagens bem à moda Lewis Carroll), Bart divide seu tempo entre subidas e descidas, desvios por corredores que oprimem e distorcem o ambiente, criando uma narrativa pautada em unidades de pura ação que o filme soma, uma a uma. A meta de Bart é se libertar de Dr. T e salvar sua mãe de um estado de hipnose permanente. Sob a simplicidade e a literal infantilidade dessa trama, no entanto, revela-se um filme misterioso, que sugere muito mais do que o desejo de família e de bem-estar – algo bem natural para uma ficção alojada no imaginário do subúrbio americano dos anos 50 –: descobrimos, em paralelo, que entre as muralhas e as sombras da fortaleza do Dr. T escondem-se também alguns dos cadáveres da Segunda Guerra. A começar pelo próprio vilão, a figura grotesca e anedótica que o nazismo inspirou como forma de purgação daquele horror histórico/político então recente. A premissa de disciplina absoluta seguida por Dr. T (“prática é perfeição”, ele diz) é acompanhada de uma ideologia de pureza: nenhum outro instrumento além do piano é permitido em seu reino. Todos aqueles que tocam outros instrumentos são levados a um arcabouço subterrâneo onde vivem torturados, aos frangalhos, como em verdadeiros campos de concentração. A mãe de Bart, hipnotizada, se encarrega da burocracia local, vivendo uma espécie de prisão consentida.

Essa sociedade disciplinar e purista, que Dr. T sustenta com a ajuda de toda uma população que age como que enfeitiçada, possuiu seu mais próximo paralelo no mundo real na Alemanha nazista – o mesmo país que anteriormente, nos anos 20, produzira o conjunto de filmes em que se acha a matriz de alguns dos traços estéticos mais marcantes de Os 5000 Dedos de Dr. T. O fantasma da bomba atômica está também presente, encarnado na poção mágica que Bart e o encanador inventam para suprimir os sons e derrotar Dr. T na hora da execução de sua peça musical grandiloqüente (uma bela paródia do conceito de obra de arte total). A poção põe fim aos poderes do ditador, mas seu revés destrutivo é uma potência atômica que o filme ilustra pela pirotecnia que encerra o sonho de Bart. A guerra terminou, mas ao preço de um poder de aniquilação massiva.

O mistério desse filme pode ser ainda melhor exemplificado pela cena musical ambientada no subterrâneo onde ficam os músicos renegados, os não-pianistas. Lá Rowland realiza a cena mais grandiosa do filme. Vestidos como farrapos humanos, dezenas de dançarinos ocupam de um lado a outro o cenário fazendo uma coreografia complexa e inventiva. Os cortes e os movimentos de câmera são extraordinários, vão de um pedaço da cena ao outro para criar sua própria música visual. Através dessa coreografia estranha e exuberante, o filme desencava o capítulo mais cruel da história a que alude: o Holocausto. Os 5000 Dedos de Dr. T, portanto, não é um testemunho somente da perda de inocência, mas também dos novos poderes de abstração que a arte sinistramente adquiriu após os traumas das guerras mundiais.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Magnus Opus)

 

 








Bart Collins (Tommy Retting) em meio a seu pesadelo


Um menino à procura de um pai


Bart oprimido pelo cenário expressionista
e pelas curvas do piano gigante de dois andares


A cena musical com os prisioneiros subterrâneos