No
ano em que Luiz Sergio Person lançou São Paulo S/A.,
1965, o então jovem crítico de O Estado de S. Paulo
e futuro realizador Rogério Sganzerla publicava uma
série de três artigos no Suplemento Literário
sobre o cinema da “alma” (Bergman, Fellini, Zurlini)
e do “corpo” (Godard, Fuller, Hawks). Os textos “Cineastas
da Alma”, “Cineastas do Corpo” e “Corpo Mais Alma” (reproduzidos
no livro Por Um Cinema Sem Limites, ed. Azougue,
2001) opõem um cinema pretensamente “profundo”, que
busca dissecar a “alma humana” em dramas no fundo literários
e tradicionais (caso dos “cineastas da alma”) a um cinema
fundamentado pela “distância cínica” de uma câmera interessada
em registrar a violência e a agilidade das “tragédias
físicas” (os “cineastas do corpo”). Há ainda um cinema
que consegue unir essas duas tendências em filmes ao
mesmo tempo clássicos e modernos (ou melhor,
modernos porque clássicos e vice-versa). Nas palavras
de Sganzerla:
Fragmentos e faces da realidade unem-se num bloco indivisível;
os dramas interiores com os exteriores, sem predomínio
ou exclusão de um ou outro; o concreto dirige-se ao
abstrato e vice-versa; ficção é documentário e este
é ficção; fundem-se harmoniosamente gêneros e até estilos
diferentes, sem rupturas do tom geral; o belo e o feio
não se distinguem mais, etc. Idem o corpo e a alma.”
(“Corpo Mais Alma”, in Por Um Cinema Sem Limites,
cit., p. 89).
O plano inicial de São Paulo S/A mostra um apartamento
de classe-média, filmado pelo lado de fora da janela,
no interior do qual um casal (Walmor Chagas e Eva Wilma)
discute e briga. Não conseguimos ouvir as palavras dos
dois personagens, apenas alguns gritos. A certa altura,
o homem gira o braço por cima da mesa e derruba pratos,
copos, xícaras. Ela se agarra nele, ele a derruba no
chão, saindo em seguida. Como toda a ação é filmada
do exterior, vemos no reflexo do vidro da janela, como
uma sobre-impressão, os prédios vizinhos que desenham
e configuram a capital paulista, a pairar como um fantasma
sobre a cena conjugal. São Paulo S/A revela,
logo em sua primeira imagem, o extraordinário domínio
expressivo de seu realizador: cineasta da alma e do
corpo, Person estreava no longa-metragem com uma obra-prima
clássico-moderna, de um rigor e de uma densidade ainda
hoje bastante raros.
O que se promete na primeira imagem do filme será cumprido
até o fim: o drama de Carlos (Walmor Chagas) terá como
palco e motor principal a cidade de São Paulo. A imbricação
dos dramas (“interior” e “exterior”, do personagem central
e do país) será construída de forma a tornar São
Paulo S/A um dos mais amargos retratos da classe-média
brasileira, amargo porque necessariamente pessimista.
Carlos, um jovem recém-formado em desenho industrial,
arruma um emprego na Volkswagen, durante o boom
da indústria automobilística que se forma a reboque
da instalação das multinacionais no período JK (o filme
se passa entre 1957-61). Dividido entre as amantes Ana
(Darlene Glória) e Hilda (Ana Esmeralda), Carlos acaba
por se casar, mais por cansaço do que por amor, com
Luciana (Eva Wilma). Com as amantes Carlos experimenta
uma liberdade frustrada, não consegue dominá-las nem
render-se a elas. O casamento com Luciana surge com
a mesma lógica de um emprego: é o percurso que cabe
a um jovem cuja perspectiva de vida é traçada não propriamente
pelos seus desejos e ações, mas pela ordem capitalista.
Arturo Carrari (Otelo Zelloni), imigrante italiano que
prospera rapidamente no ramo de autopeças, conta com
Carlos para facilitar a venda de suas peças para a Volkswagen.
Uma vez posto na rua, Carlos se torna empregado de Arturo,
que prospera rapidamente. Para Luciana, Arturo é um
modelo, é rico, pai de família e possui uma casa no
campo. Tanto em seu casamento como em seu trabalho,
Carlos é possuído por um constante mal-estar: se pudesse,
abandonaria Luciana, Arturo, a própria cidade. Sua revolta,
no entanto, é frágil. O conformismo é a tônica de Carlos,
irremediavelmente preso à engrenagem que o consome e
que resseca, dia após dia, a sua alma.
As relações entre o filme de Luiz Sergio Person e o
movimento do Cinema Novo costumam ser pouco exploradas,
fato que em parte se justifica pela tradicional indisposição
dos cinemanovistas cariocas com o cinema paulista. Ainda
assim, a importância de São Paulo S/A para o
cinema brasileiro dos anos 1960 merece sempre ser lembrada,
bastando dizer que, embora em outro plano estilístico,
a estrutura de São Paulo S/A já antecipa a de
um filme como Terra em Transe (Glauber Rocha,
1967): acontecimentos passados, mais ou menos recentes,
emergem e se embaralham na cabeça do personagem central,
que vive um momento extremo de crise. No filme de Person,
como no de Glauber, a realidade está “lá fora” e ao
mesmo tempo “dentro” do personagem, sem que se possam
distinguir fronteiras precisas. Daí a supressão da ordem
cronológica, o vai-e-vem das lembranças e das personagens,
a interpenetração do drama interior na tragédia do país.
Se Carlos é um personagem que tem sua vida aprisionada
pelas injunções sócio-econômicas, oscilando entre a
revolta e o conformismo, Paulo Martins (Jardel Filho),
em Terra em Transe, também é regido pelo conflito
e pela ambigüidade, dividido entre a política e a poesia,
o populismo e a revolução. Em São Paulo S/A,
a euforia desenvolvimentista dos anos 1950 fundida à
tragédia pessoal de Carlos fazem parte de uma mesma
leitura simbólica sobre o país pós-golpe de 1964; no
filme de Glauber Rocha, o dilaceramento de Paulo Martins
atualiza e generaliza o desespero da intelectualidade,
num prenúncio de um novo tempo de violência e arbítrio
que se concretizaria após o AI-5, em 1968.
Há um outro elemento que aproxima São Paulo S/A
de Terra em Transe: ambos os filmes se constroem
como um discurso interior do personagem principal. Nesse
ponto, há que se ressaltar também o que diferencia essas
duas grandes obras: as narrações em off de Carlos
e de Paulo Martins apontam para direções não exatamente
opostas, mas muito diversas. Em Terra em Transe,
a poesia; em São Paulo S/A, o romance.
Nesse sentido, para retomarmos a divisão proposta por
Rogério Sganzerla em 1965, Luiz Sergio Person seria
eventualmente um “cineasta da alma” (porém não mais
do que o Glauber de Terra em Transe!). O que
felizmente torna insuficiente tal classificação – se
nela quisermos enxergar, como faz Sganzerla, uma “falsa
profundidade” –, é o fato de que Person consegue realizar
um quase miraculoso meio-termo entre o drama interior
envolvente e a crítica distanciada do personagem. É
justamente isso que aproxima São Paulo S/A de
alguns traços do cinema de Michelangelo Antonioni e
de Luchino Visconti (o que talvez traia a formação de
Person no Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma,
entre os anos 1961-63). Uma narrativa realista, notavelmente
amparada pela excelência fotográfica de Ricardo Aronovitch
e pelas performances de Walmor Chagas e de Otelo Zelloni,
é habilmente des/construída em saltos e desvios pela
montagem poética não-linear de Glauco Mirko Laurelli:
um alto padrão técnico, nunca a serviço do virtuosismo,
funde-se à consistência de um drama livremente arquitetado.
Em relação à tradição paulista, São Paulo S/A
representa um salto considerável por sobre a Vera Cruz,
Tambellini/Biáfora e Walter Hugo Khoury, sem deixar
de com eles dialogar.
Em um certo sentido, porém, São Paulo S/A é como
Limite (1930), de Mário Peixoto: um filme sem
continuidade. A perspectiva aberta por Person mesmo
hoje parece pouco experimentada. O próprio realizador
não se repetiu: São Paulo S/A quase nada tem
a ver com O Caso dos Irmãos Naves (1967), com
o episódio que dirigiu para a Trilogia do Terror
(1968), com Panca de Valente (1969) ou com Cassy
Jones, o Magnífico Sedutor (1972). Morto prematuramente
em 1976, aos 40 anos de idade, Person deixou uma obra
heterogênea, composta não só de longas mas de curtas-metragens
e muitos comerciais (os extras do DVD trazem alguns,
imperdíveis). Para uma historiografia interessada em
classificar correntes e ciclos, a obra de Person - como
a de um Fernando Cony Campos, por exemplo - cria sérios
problemas, pois escapa às deduções mais óbvias e preguiçosas.
Tudo isso aumenta ainda mais a importância do lançamento
em DVD deste filme. Assisti-lo hoje significa reatar
com uma obra única e ao mesmo tempo tão fértil para
o cinema brasileiro passado e atual. Num momento em
que se produzem tantos filmes sem corpo e sem alma é
quase uma surpresa verificar o imenso legado de um filme
como São Paulo S/A.
Luís Alberto Rocha Melo
(DVD Videofilmes)
|