Apesar do longo espaço de tempo
que os separa, La Jetée e Sem Sol são
dois filmes que se complementam. Não são filmes que
precisam, necessariamente, ser vistos juntos; porém,
quando postos lado a lado, o mínimo que se pode dizer
é que se potencializam. Se Sem Sol se impõe como
um ensaio livre, inclassificável até, La Jetée
é um dos poucos filmes de ficção de Marker. Justamente
o cineasta que nunca conta histórias constrói, neste
curta-metragem (29 minutos), uma das mais bonitas histórias
já contadas - a história de um homem assombrado por
uma imagem de infância. Na verdade, La Jetée
pode ser considerado um foto-romance, uma seqüência
de fotos inanimadas e que, no entanto, se movimentam,
criam escalas dentro do quadro, através do ritmo da
edição - o excepcional trabalho de Marker com o som
e com a montagem, próximos, como quase todos os trabalhos
do cineasta, da linguagem multimídia. Mas a opção do
artista em fazer um filme com uma simples máquina fotográfica
não se pode justificar apenas por questões econômicas.
La Jetée é um filme sobre recordações, registros
da memória em um mundo destruído, o que faz suas imagens
paradas ganharem, por conseqüência, uma força assustadora.
La Jetée funciona por zonas. Zonas de memória,
zonas de tempo e de espaço, zonas de registro. A função
de seu herói é justamente viajar por essas diferentes
zonas, todas indefinidas, e trazer aos cientistas que
lhe fazem de cobaia o seu registro. Sua obrigação é
fazer de um registro pessoal, imagens particulares de
uma afeição particular (e não há nada mais bonito do
que essas imagens de natureza, de crepúsculo, visões
ou instantes parados da vida do herói, que aparecem
de repente, tão quentes, habitáveis, acolhedoras aos
nossos olhos...) um guia para a humanidade. É juntar
sua história íntima à História. Porém, à medida que
a narração se desenvolve, e as imagens se sucedem, as
zonas se confundem, e não sabemos mais se, na verdade,
o herói não estaria viajando dentro de sua própria zona.
Sua visão do passado, ou do que acreditamos ser passado,
surge como um símbolo do cinema: essa capacidade de
"objetivar" os elementos registrados – e, portanto,
ser um instrumento de memória. Mas trata-se da memória
sob um ponto de vista pessoal, relativo... A confusão
parte do princípio de que não sabemos ao certo se os
cientistas o projetam para um passado real, ou se ele
próprio fabrica ou adapta suas próprias lembranças.
Nesse caso, mais do que uma viagem no tempo, estaríamos
diante de uma viagem na memória.
Viagem na memória que parece amplificada em Sem Sol,
levada ao paroxismo (o filme possui, inclusive, algumas
imagens tiradas do curta anterior), através de uma outra
linguagem. Como já foi dito antes, Sem Sol é
um filme-ensaio. Viajando entre os "dois pólos da sobrevivência",
Japão e África, fica nítida a presença de Marker, sua
visão da existência; embora mascarada, ela assombra
cada plano, pronta para juntar mundo íntimo e coletivo.
Aqui ela se esconde sob esse nome misterioso de Sandor
Krasna, um cineasta que, como Marker, está "sempre muito
longe", nos quatro cantos do planeta, e que manda fragmentos
de seu trabalho a seus amigos, para que eles os juntem,
como se junta um quebra-cabeças. E se a montagem desse
quebra-cabeças se dá através dessas famosas "cartas
de Sandor Krasna", lidas no filme pela narradora Florence
Delay, não é apenas para criar um "clima misterioso",
mas também para remeter à nostalgia e à ternura que
existe no ato de enviar uma carta. Repetindo a metáfora
de La Jetée, o cinema é mesmo uma arte da memória.
Trabalhando com as cartas imaginárias de um cineasta
imaginário, e com imagens reais que formam filmes imaginários
– que Marker sonha em fazer, mas que sabe que nunca
irá realizar – Sem Sol se aproxima do Ficções
de Jorge Luis Borges, livro que, através do comentário
de outros livros e escritores imaginários, tece uma
reflexão sobre o tempo, o espaço, e as ligações entre
arte, realidade e memória coletiva. O filme se abre
com um prefácio: a imagem de três garotinhas numa estrada,
na Islândia, em 1965. Como explica a narradora, esta
é para o Cineasta (a partir de agora usaremos este nome
para juntar, numa só figura, Marker, Krasna e o texto
da narradora) a imagem da felicidade absoluta. A narradora
também explica que o Cineasta já tentou diversas vezes
associar esta imagem a outras imagens – mas aquilo nunca
funcionou.
Essa idéia diz muito bem o que é Sem Sol: um
filme aberto, uma grande corrente, sem fonte de origem,
nem destino final. Aqui as imagens, as palavras e os
sons se abrem para a reflexão como janelas de um hipertexto.
As origens dessas imagens não têm muita importância:
elas vêm de todos os lugares. Algumas foram filmadas
por Marker, ao longo de sua vida, nos diferentes lugares
por onde passou; outras "pertencem" a diferentes cineastas,
são imagens emprestadas, que Marker vai embaralhar no
seu enorme brouillon, para dar um novo sentido
a todas elas (e aí tanto faz se são imagens de Marker
ou de outros cineastas. Não há, afinal, diferença entre
recriar uma imagem sua ou de outra pessoa). Na verdade,
Sem Sol é a perfeita definição do que é a complexidade,
ou seja, soma de idéias/imagens simples e conhecidas
que formam um conjunto inesperado. O trabalho de Marker
é juntar duas imagens com a narração, sem necessariamente
tirar daí uma idéia "objetiva" – a não ser que se trate
de uma objetividade da "desordem", uma desordem visual
e sonora, como as que vemos nas ruas da metrópole. Em
seu livro Le Depays, o próprio Marker explica:
“O texto não comenta as imagens, assim como as imagens
não ilustram o texto. São duas séries de seqüências
que, evidentemente, chegam a se cruzar e criar signos;
mas seria cansativo tentar confrontá-las. O melhor,
portanto, é tomá-las na desordem, na simplicidade e
no dédoublement, como convém tomar todas as coisas
no Japão.".
A edição de Marker é um maravilhoso fluxo de planos,
onde se juntam, num tempo indefinido, imagens presentes
e imagens de arquivo, registro e ficção (e registros
de ficções), e que absorve fragmentos do imaginário
humano, "pedaços de memória";. Como a televisão, essa
"caixa de lembranças". É, aliás, observando o louco
mosaico dos canais de TV do Japão, passando do erotismo
aos filmes de horror, das notícias de terremoto aos
ídolos adolescentes, do terror ao afeto, da tragédia
à vertigem, que Marker casa a instabilidade das imagens
à instabilidade do mundo, numa definição do imaginário
japonês: "A poesia nasce da insegurança: judeus errantes,
japoneses com medo. Vivendo sobre um tapete prestes
a ser puxado pela natureza zombeteira, habituaram-se
a viver num mundo de aparência frágil, fugaz, revogável.
Trens que voam de planeta em planeta, samurais que lutam
num passado imutável, isso se chama à instabilidade
das coisas".
Dentro do ritmo frenético do cotidiano, lugar de acumulação
e eco, o Cineasta abre uma hipótese: a de ele próprio
ser imagem. Movimentando-se dentro da cidade, o olhar
perdido entre a velocidade das luzes, as galerias subterrâneas,
os rostos fantasmagóricos que vêm e que passam, surgem
e desaparecem, o Cineasta acaba duvidando de sua própria
função dentro dos campos de percepção: "Me pergunto
se estes sonhos são realmente meus, ou se fazem parte
de um conjunto, de um gigantesco sonho coletivo, do
qual a cidade seria uma projeção". As imagens mostram
filas humanas, e o Cineasta se interroga se cada mente
contida naquela multidão não estaria ali, construindo
aquele espaço: "O trem, cheio de pessoas que dormem,
junta todos os fragmentos dos sonhos, e faz deles um
só filme, o filme absoluto". E, mostrando imagens da
enorme massa passando nas catracas do metrô, com seus
bilhetes, comenta: "Os bilhetes do distribuidor automático
tornam-se tíquetes de entrada". Tudo não passa de um
grande sonho, um grande filme, sonhado e dirigido por
você, por mim, por todos nós. Já que "os que olham imagens
são vistos, por sua vez, como imagens ainda maiores
que eles mesmos", o espaço se torna impessoal, como
o simulacro de Jean Baudrillard: "ser apenas a imagem
de uma imagem". Daí a necessidade de Marker em ligar
a imagem a uma memória. É o que Jean Giraudoux chamava
de enumeração: colocar entre as coisas o afeto de como
as percebemos, para não nos perdermos entre elas – e
nem as esquecermos. No entanto, se existe uma memória
involuntária (e Marker se interessa especialmente pelas
novas tecnologias audiovisuais, os videogames e as imagens
eletrônicas, que moldam parte de nossa realidade), nos
resta compreender, como bem observou Jean-Xavier Ridon,
como Marker tenta reconstruir a dinâmica dessa "memória
involuntária". E nos resta, também, buscar nossa própria
relação com a imagem como indivíduo, as diferenças de
recepção... O que sou Eu? O que é o Outro? O que é o
Eu dentro do Outro? O que é o Outro dentro de mim? A
exemplo do herói de La Jetée, trata-se de dar
sentido a uma imagem pessoal, encaixá-la dentro de um
imaginário coletivo. Mais uma vez, ligar nossa percepção
da História a História. Exatamente como a imagem das
três garotinhas islandesas, esse plano solitário, perdido,
esperando ser ligado a outro plano.
Em determinado momento do ensaio, o Cineasta tenta fugir
do espaço impessoal e sonha "um mundo em que cada memória
pode criar sua lenda" – e aí saímos do Japão para irmos
até San Francisco, a San Francisco de Um Corpo Que
Cai, que se encontra, forçosamente, com a Paris
de La Jetée, no símbolo das linhas concêntricas
no tronco da árvore, presente nos dois filmes, e nas
duas cidades. Nesse ponto de Sem Sol, Marker
cita explicitamente sua própria memória, seu próprio
imaginário, criando associações de seus próprios filmes
com o de um outro cineasta, Alfred Hitchcock. Um
Corpo Que Cai, filme da "memória impossível, louca",
visto 19 vezes pelo Cineasta, obriga-o a fazer essa
peregrinação por San Francisco, em busca das memórias
das imagens, do que sobrou do que foi registrado (o
museu, o cemitério, a sequóia...). Assim como Marker
em La Jetée, Hitchcock trata de um homem que
acaba na "impossibilidade de viver com a memória a não
ser que se a falseie, criando um dublê de Madeleine,
em outra dimensão do tempo, uma zona só dele, de onde
poderia decifrar a história indecifrável". Mais tarde,
Terry Gilliam cruzaria mais uma vez os dois filmes,
na cena do cinema de Os Doze Macacos, em que
Bruce Willis e Madeleine Stowe, como dois fugitivos
do Tempo, emperucados, criando dublês de si próprio,
assistem a uma sessão noturna de Um Corpo Que Cai.
Um dos filmes imaginários propostos por Marker é uma
ficção científica sobre um homem do futuro vindo de
uma civilização dotada de uma memória total, que nada
esquece, e que retorna ao passado para compreender o
esquecimento (como se vê, algo próximo de La Jetée).
Não é mais uma história sobre um homem que perdeu a
memória, e sim a história de um homem que perdeu o esquecimento
("uma memória total é uma memória anestesiada"). E que,
ao voltar a uma humanidade primitiva, se afeiçoa com
seus antepassados, esses seres capazes de se emocionar
com um retrato, uma lembrança, uma música... O viajante
do futuro compreende que todos esses sentimentos causados
pela lembrança, vestígios dolorosos de uma pré-história,
é que fazem a beleza trágica da humanidade. Sem a possibilidade
do esquecimento, não há memória, nem tentativa de registro.
A memória humana é "como garrafas jogadas ao mar".
É essa parte de nós que "se obstina a desenhar nas
paredes das prisões", traçando os contornos do "que
não existe, não existe mais, ou ainda não existe". Sua
construção é a verdadeira aventura humana, nossa viagem
através do tempo, nossa permanência, nossa passagem
de bastão. Haverá algum dia uma última carta?
Bolívar Torres
(DVD Aurora)
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