Como
fazer um filme noir, depois de tantos filmes
noir, e ainda ser, de fato, um filme noir?
Ou como evolui um ciclo consolidado, que em suas próprias
bases teve tão forte a idéia da não-conformidade? Para
onde ir quando aquilo que outrora era exceção, vira
o establishment?
Não é novidade que Hollywood sempre agiu com cautela,
incorporando vagarosamente as conquistas de um cinema
menos clássico-narrativo, ao mesmo tempo em que, uma
vez encontrada uma mina de ouro, fazia-a rapidamente
explodir dentro da indústria. Isto se deu, por exemplo,
na lenta e comedida aceitação de códigos surrealistas
e, para a segunda afirmação, em toda uma produção de
filmes de gângsters da década de 1930. Sem dúvida que,
em se tratando do noir, seus diversos aspectos
logo estariam presentes, em menor ou maior grau, nas
mais variadas produções, sendo particularmente interessante
seu impacto sobre o western. Mas ele em si, extraído
dos Chandlers, Hammets e Cains, com o detetive e a femme
fatale, logo se demonstrou ser um sistema demasiadamente
fechado para um público tão ávido por novidades.
Inicialmente, esta nova literatura policial, hard-boiled,
encontrou no início da década de 1940, com o afrouxamento
do Código Hays e uma nova conjuntura sócio-cultural,
o ambiente cinematográfico propício para se desenvolver.
Era uma literatura que – como Raymond Chandler coloca
em seu celebre texto “The Simple Art of Murder” – se
voltava para o real, em suas situações, seus personagens,
seus diálogos mas, sobretudo, que colocava o assassinato,
e suas motivações, em contato com esse real. O passo
seguinte foi então a extrapolação dele. Foi se voltar
diretamente para a fonte.
Chandler diz que assassinatos acontecem todos os dias,
e que nem sempre são os mordomos que os cometem: basta
ler o jornal para saber disso. E foi o que o cinema
fez. Voltou-se ao real. Não é de se estranhar que em
1948 dois dos filmes noir lançados assumam o
documentário e os jornais em sua estética: A Cidade
Nua, de Jules Dassin, e este O Demônio da Noite.
É o filme noir se reinventando a partir de um
novo contexto hollywoodiano, impactado pelo neo-realismo.
Tendo em vista o realismo e a crueza em que se desenvolve
o gênero, é fácil entender o destaque conseguido pelo
cinematógrafo John Alton. Já trabalhando na indústria
desde a década de 1920, é no noir que seu trabalho
será melhor valorizado, estabelecendo seu estilo pessoal
como parâmetro para a estilização do ciclo. Seu plano
final de O Império do Crime (Joseph H. Lewis,
1955), com as silhuetas em meio à bruma, será figurinha
presente em qualquer livro sobre o ciclo, por ser uma
das melhores representações visuais de toda a instabilidade
e existencialismo do gênero, sem nunca perder do foco
de atenção a noção de diegese da luz. A fotografia,
ao mesmo tempo realista e expressiva, somada à rapidez
com a qual trabalhava, tornaram Alton ideal para estas
produções de baixo orçamento.
É difícil trabalhar com segurança dentro de noções autorais
em O Demônio da Noite. Se não bastasse a forte
presença de John Alton, temos a substituição do diretor
Alfred L. Werker por Anthony Mann no meio das filmagens
(sem que este último, no entanto, tenha sido creditado
por isso). Conhecendo melhor a filmografia de Mann é
possível identificar vários pontos em comum deste filme
com o restante de sua obra – o que mesmo assim ainda
é nebuloso, visto a intensa parceria de Mann e Alton,
filmando juntos 6 trabalhos entre 1947 e 1950. Mas o
que se nota no filme é um crescente da violência e do
desespero, culminando na antológica e simbólica seqüência
no subterrâneo de Los Angeles, confirmando a claustrofobia
de um mundo sem saída para Mann e a primazia fotográfica
de Alton. A verdade é que assim como o estilo de Alton
coube tão bem no noir, Mann também encontrou
ali o espaço para desenvolver sua visão de mundo.
A fita é inteiramente impregnada pelo clima de paranóia.
Todos desconfiam de todos, e até uma velinha acha que
sua senhoria está envenenando seu leite. Mas para capturar
Roy Martin (Richard Basehart) não adianta apelar para
os criminosos conhecidos, tipos malandros e esguios
que perambulam à noite. Os criminosos não serão sempre
tão rotineiros, não seguirão sempre padrões convencionais.
É uma fábula sobre o macarthismo, logo depois que o
comitê inicia seu ataque à Hollywood, em 1947. E, por
fim, todas as testemunhas montarão, juntas, o rosto
deste criminoso.
A cartela inicial de O Demônio da Noite explicita
que a história é inspirada em fatos reais, no caso o
criminoso Erwin Walker, preso em 1946. Mais importante,
no entanto, é o tom de cinejornal que a narração assume,
em oposição às narrações em primeira pessoa comum aos
primeiros noir. Trata-se agora de uma narração
que apenas observa e especula, que está totalmente fora
da ação e, mais importante, que está totalmente fora
do personagem. Acompanhamos então, minuciosamente, os
procedimentos policiais nessa busca pelo criminoso,
e vemos que ele se mantém fugitivo justamente por saber
de tais procedimentos.
Dentro de uma reinvenção do noir, retirar a famosa
femme fatale é algo interessante, pois é retirar,
por total, um dos mais famosos arquétipos, a mais clara
identificação do que, mesmo 50 anos depois, ainda será
visto como algo imprescindível ao ciclo. Mas aqui significa
muito mais. Significa tirar a motivação, o objetivo
do crime – e nada será dado em troca. Quando o filme
acaba, nada é de fato solucionado. É apenas um criminoso
a menos, morto na sarjeta, em uma cidade que tem tantos
crimes. Toda a busca por uma resposta, um porquê ou
um objetivo, é irresoluta diante de uma morte tão longe
de ser conclusiva. Isto porque buscar um homem é buscar
respostas. Mas ao invés de entrar cada vez mais na mente
do criminoso, ficamos cada vez mais distantes. Roy Martin
não é psicologizado, praticamente não possui história,
no máximo vemos que ele é, apesar de tudo, humano. Os
close-ups de Mann aqui nos entregam isso, sentimos sua
dor e seu medo, abalando qualquer noção maniqueísta
de um assassino.
A narração de cinejornal, como nós, apenas o especula;
e a polícia, como nós, busca entender essa figura que
tanto fascina quanto amedronta. Um personagem que sabe
tanto sobre a polícia, mas se mantém uma incógnita para
ela é, sobretudo, um personagem que apreende algo sobre
o previsível que é uma instituição, em oposição a algo
tão complexo e profundo quanto o ser humano. É um anti-herói
que não se encaixa em fórmulas fáceis, que nunca nos
é dado. A fuga pelos túneis acima mencionada é, acima
de tudo, de nós mesmos, pois ele corre para o ponto-de-fuga
da câmera. É o próprio cinema que tenta capturar aqui
o seu protagonista.
Lucas Barbi
(DVD Aurora)
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