O DEMÔNIO DA NOITE
Alfred L. Werker/Anthony Mann, He walked by night, EUA, 1948

Como fazer um filme noir, depois de tantos filmes noir, e ainda ser, de fato, um filme noir? Ou como evolui um ciclo consolidado, que em suas próprias bases teve tão forte a idéia da não-conformidade? Para onde ir quando aquilo que outrora era exceção, vira o establishment?

Não é novidade que Hollywood sempre agiu com cautela, incorporando vagarosamente as conquistas de um cinema menos clássico-narrativo, ao mesmo tempo em que, uma vez encontrada uma mina de ouro, fazia-a rapidamente explodir dentro da indústria. Isto se deu, por exemplo, na lenta e comedida aceitação de códigos surrealistas e, para a segunda afirmação, em toda uma produção de filmes de gângsters da década de 1930. Sem dúvida que, em se tratando do noir, seus diversos aspectos logo estariam presentes, em menor ou maior grau, nas mais variadas produções, sendo particularmente interessante seu impacto sobre o western. Mas ele em si, extraído dos Chandlers, Hammets e Cains, com o detetive e a femme fatale, logo se demonstrou ser um sistema demasiadamente fechado para um público tão ávido por novidades.

Inicialmente, esta nova literatura policial, hard-boiled, encontrou no início da década de 1940, com o afrouxamento do Código Hays e uma nova conjuntura sócio-cultural, o ambiente cinematográfico propício para se desenvolver. Era uma literatura que – como Raymond Chandler coloca em seu celebre texto “The Simple Art of Murder” – se voltava para o real, em suas situações, seus personagens, seus diálogos mas, sobretudo, que colocava o assassinato, e suas motivações, em contato com esse real. O passo seguinte foi então a extrapolação dele. Foi se voltar diretamente para a fonte.

Chandler diz que assassinatos acontecem todos os dias, e que nem sempre são os mordomos que os cometem: basta ler o jornal para saber disso. E foi o que o cinema fez. Voltou-se ao real. Não é de se estranhar que em 1948 dois dos filmes noir lançados assumam o documentário e os jornais em sua estética: A Cidade Nua, de Jules Dassin, e este O Demônio da Noite. É o filme noir se reinventando a partir de um novo contexto hollywoodiano, impactado pelo neo-realismo.

Tendo em vista o realismo e a crueza em que se desenvolve o gênero, é fácil entender o destaque conseguido pelo cinematógrafo John Alton. Já trabalhando na indústria desde a década de 1920, é no noir que seu trabalho será melhor valorizado, estabelecendo seu estilo pessoal como parâmetro para a estilização do ciclo. Seu plano final de O Império do Crime (Joseph H. Lewis, 1955), com as silhuetas em meio à bruma, será figurinha presente em qualquer livro sobre o ciclo, por ser uma das melhores representações visuais de toda a instabilidade e existencialismo do gênero, sem nunca perder do foco de atenção a noção de diegese da luz. A fotografia, ao mesmo tempo realista e expressiva, somada à rapidez com a qual trabalhava, tornaram Alton ideal para estas produções de baixo orçamento.

É difícil trabalhar com segurança dentro de noções autorais em O Demônio da Noite. Se não bastasse a forte presença de John Alton, temos a substituição do diretor Alfred L. Werker por Anthony Mann no meio das filmagens (sem que este último, no entanto, tenha sido creditado por isso). Conhecendo melhor a filmografia de Mann é possível identificar vários pontos em comum deste filme com o restante de sua obra – o que mesmo assim ainda é nebuloso, visto a intensa parceria de Mann e Alton, filmando juntos 6 trabalhos entre 1947 e 1950. Mas o que se nota no filme é um crescente da violência e do desespero, culminando na antológica e simbólica seqüência no subterrâneo de Los Angeles, confirmando a claustrofobia de um mundo sem saída para Mann e a primazia fotográfica de Alton. A verdade é que assim como o estilo de Alton coube tão bem no noir, Mann também encontrou ali o espaço para desenvolver sua visão de mundo.

A fita é inteiramente impregnada pelo clima de paranóia. Todos desconfiam de todos, e até uma velinha acha que sua senhoria está envenenando seu leite. Mas para capturar Roy Martin (Richard Basehart) não adianta apelar para os criminosos conhecidos, tipos malandros e esguios que perambulam à noite. Os criminosos não serão sempre tão rotineiros, não seguirão sempre padrões convencionais. É uma fábula sobre o macarthismo, logo depois que o comitê inicia seu ataque à Hollywood, em 1947. E, por fim, todas as testemunhas montarão, juntas, o rosto deste criminoso.

A cartela inicial de O Demônio da Noite explicita que a história é inspirada em fatos reais, no caso o criminoso Erwin Walker, preso em 1946. Mais importante, no entanto, é o tom de cinejornal que a narração assume, em oposição às narrações em primeira pessoa comum aos primeiros noir. Trata-se agora de uma narração que apenas observa e especula, que está totalmente fora da ação e, mais importante, que está totalmente fora do personagem. Acompanhamos então, minuciosamente, os procedimentos policiais nessa busca pelo criminoso, e vemos que ele se mantém fugitivo justamente por saber de tais procedimentos.

Dentro de uma reinvenção do noir, retirar a famosa femme fatale é algo interessante, pois é retirar, por total, um dos mais famosos arquétipos, a mais clara identificação do que, mesmo 50 anos depois, ainda será visto como algo imprescindível ao ciclo. Mas aqui significa muito mais. Significa tirar a motivação, o objetivo do crime – e nada será dado em troca. Quando o filme acaba, nada é de fato solucionado. É apenas um criminoso a menos, morto na sarjeta, em uma cidade que tem tantos crimes. Toda a busca por uma resposta, um porquê ou um objetivo, é irresoluta diante de uma morte tão longe de ser conclusiva. Isto porque buscar um homem é buscar respostas. Mas ao invés de entrar cada vez mais na mente do criminoso, ficamos cada vez mais distantes. Roy Martin não é psicologizado, praticamente não possui história, no máximo vemos que ele é, apesar de tudo, humano. Os close-ups de Mann aqui nos entregam isso, sentimos sua dor e seu medo, abalando qualquer noção maniqueísta de um assassino.

A narração de cinejornal, como nós, apenas o especula; e a polícia, como nós, busca entender essa figura que tanto fascina quanto amedronta. Um personagem que sabe tanto sobre a polícia, mas se mantém uma incógnita para ela é, sobretudo, um personagem que apreende algo sobre o previsível que é uma instituição, em oposição a algo tão complexo e profundo quanto o ser humano. É um anti-herói que não se encaixa em fórmulas fáceis, que nunca nos é dado. A fuga pelos túneis acima mencionada é, acima de tudo, de nós mesmos, pois ele corre para o ponto-de-fuga da câmera. É o próprio cinema que tenta capturar aqui o seu protagonista.


Lucas Barbi

(DVD Aurora)

 

 










Roy Martin é perseguido nos subterrâneos
de Los Angeles: escapa da polícia,
mas também do filme e do próprio espectador