Podemos
compreender melhor o universo ficcional proposto por
J.B Tanko em Como Ganhar na Loteria sem Perder a
Esportiva a partir da leitura de duas canções de
sua trilha sonora: Cidade Maravilhosa e Pra
Frente Brasil. Temos aqui dois hinos e toda a pompa
e força de sugestão que essa classificação nos remete.
O primeiro é o hino da cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro e o segundo, da seleção brasileira do mundial
de 1970. Cidade Maravilhosa aparece pela primeira
vez durante os créditos de abertura, onde juntamente
com os nomes do elenco e da equipe técnica vemos diversos
pontos da cidade e seus transeuntes. Esses respiram
o cotidiano da cidade ao lado de uma mania ou de um
vício que os perseguem noite e dia: o futebol. A grande
obsessão do carioca, que é entendido aqui como síntese
do ser brasileiro, é, sem sombra de dúvida, o futebol.
O futebol faz parte de sua essência, ponto que é, muitas
vezes, isento de discussão ou discórdia. Porém, nesse
filme de Tanko (um croata radicado no Brasil) a paixão
pelo futebol é indissociável de uma outra necessidade
do brasileiro: ficar rico ou “se dar bem”.
O desejo de ficar rico da noite para o dia, sem fazer
nenhum esforço, ou melhor, sem ter que trabalhar, é
tão presente no brasileiro quanto a gana de ver o seu
time vencer. É esse desejo que nos move e que une todas
as classes sociais. Do empresário ao chofer de táxi,
do padeiro à prostituta, do pai de família classe média
ao mendigo: todos querem completar os 13 pontos da loteria
esportiva. O sonho da “vida fácil” ou de uma vida sem
preocupações materiais é maior do que tudo. É maior
do que o discurso gasto e pouco sincero que o padre
profere contra a ganância. O coroinha (Agildo Ribeiro)
tenta persuadir seu superior alegando que o dinheiro
será “para a igreja”, para “pintar”, mas com apenas
“uma mão de tinta os santos e os anjinhos”. O padre
então vai aderir ao objetivo de ganhar na loteria, mas
nunca irá admiti-lo completamente. Ele oficialmente
declarará um discurso contrário ao jogo. O mesmo ocorre
com o hipócrita e falso moralista Coronel/Deputado Estadual
(Procópio Ferreira). Perante a família ele brada um
canto de louvor à moral e aos bons costumes, afirmando
com fervor que o brasileiro deve largar o vício e trabalhar
honestamente. De um lado um legado religioso, do outro,
um legado moral. Ambos rechaçam a procura da riqueza
material. Ambos caem por terra porque não são sinceros
ou efetivamente verdadeiros.
O Coronel, além de às escondidas fazer a sua aposta
na loteria, secretamente freqüenta um prostíbulo. Ou
seja, nenhum discurso contra o jogo ou contra qualquer
coisa prima pela autenticidade. A única verdade é que
todos, sem exceção, querem nadar em dinheiro. O famoso
“jeitinho” do brasileiro é citado na conversa de Seu
Jorge (Fregolente) com o médico, mas de fato ele aparece
praticamente durante todo o filme. A vontade de sempre
fazer parte do lado mais conveniente ou de “levar vantagem
em tudo” é um traço comum dos personagens. A esposa
dondoca do executivo, ao se inteirar que o marido ganhou
na loteria, larga imediatamente o amante. As prostitutas,
depois de terem destruído o bordel e de terem esculachado
a Cafetina, voltam ao antigo trabalho porque agora precisam
do emprego. Marilu, ao saber que o taxista Betinho ganhou
na loteria esportiva juntamente com mais de 100 apostadores
e não sozinho como antes achava, o abandona e retorna
para o seu velho amante. A lei da conveniência é a que
domina. A flexibilidade do mítico “jeitinho” é o que
vigora. Mas, ao mesmo tempo em que vemos nessa crônica
carioca bem humorada sobre a sede do brasileiro em se
dar bem, a preponderância do “jeitinho”, vemos também
o nosso permanente endividamento. Todos parecem estar
mergulhados em dívidas ou na completa falta de grana.
Severina, a empregada, não é remunerada pela família
de Seu Jorge há dois anos. A família, por sua vez, se
mantém em pé porque vive de favor na casa do tio Ananias.
O agente funerário precisa vender o caixão para poder
garantir a sua janta. Em Como Ganhar na Loteria sem
Perder a Esportiva a maré está realmente braba.
E essa maré que “não está pra peixe” não é suficiente
para impedir que o brasileiro sonhe com o dia em que
se tornará milionário. As dificuldades do cotidiano
são combatidas a cada minuto com muito jogo de cintura
e bom humor. A capacidade de rir de si mesmo é aqui
uma de nossas características mais originais. Tanko
lança o seu olhar sobre o Brasil e os brasileiros interagindo
a sua posição de estrangeiro com a maneira como o próprio
brasileiro comum se enxerga. O senso comum é retrabalhado
na sua porção verossímil, na sua porção mais próxima
da “realidade”. O próprio ar de crônica que permeia
o filme permite essa operação. O lugar comum ou o clichê
do “ser brasileiro” é disposto nos personagens de maneira
estratégica e consciente. A utilização dos tipos, a
bicha estereotipada (Costinha), os mendigos beberrões,
o político rústico do interior, o clássico pai de classe
média, a empregada negra e gorda, a esposa gastadeira,
a amante interesseira, o taxista galã, é trabalhada
de modo que eles extrapolem, em certa medida, o recorte
específico e bem delimitado. O micro torna-se macro.
Nós reconhecemos que eles são clichês ou semi-caricaturas,
mas ao mesmo tempo nos vemos neles. Eles estão ali,
dispostos em um enredo “ameno” de comédia popular, e
simultaneamente nos representam. Tanko é bem sucedido
na elaboração desse jogo de identificação entre o espectador
e os seus personagens. O espectador popular de seu filme
se vê na tela e compartilha com aqueles tipos o desejo
de riqueza instantânea e as dificuldades financeiras
do dia a dia.
Como Ganhar na Loteria sem Perder a Esportiva
celebra as belezas do Rio e o seu cotidiano. Viver no
Rio e respirar os seus ares é um ato de beleza em si.
Cidade Maravilhosa é então adicionada por cima
das paisagens/personagens/ações de maneira oportuna.
A mesma fusão entre música e proposta conceitual ocorre
com Pra Frente Brasil. Se a primeira canção foi
escolhida por ilustrar e representar as qualidades da
cidade, a segunda cabe aqui por conclamar um sentido
de “união”. Pra Frente Brasil canta que todos
estão “juntos em uma mesma emoção” e que “parece que
todo o Brasil deu a mão”. “Todos juntos em uma mesma
corrente” torcendo para que a seleção levasse o título
de tricampeã. O filme reforça essa idéia da coletividade
unida em prol de um mesmo objetivo. Só que aqui o objetivo
comum não é mais a vitória do tricampeonato e sim a
vitória individual. Todos estão juntos no mesmo projeto
de acertar os 13 pontos da loteria esportiva. Todos
querem o mesmo para si e não pretendem dividir o prêmio
com ninguém. Se a taça do Tri é simbolicamente de todos,
a grana da loteria precisa ser de um só.
O número de apostadores que acertaram todos os pontos
aumenta ao longo do filme, ocasionando situações amplamente
cômicas (como o fato de que a cada vez que mais um apostador
acerta os 13 pontos, o caixão do tio Ananias diminui
de classe). No final das contas, como sempre, os acertadores
vencem a frustração de dividir o prêmio com 4.150 apostadores,
o que o torna irrisório, e tentam jogar novamente. O
agente funerário, para sair da crise, resolve mudar
de ramo. Larga a funerária e abre uma lotérica. A mesma
atitude é tomada pelo Coronel em parceria com a Cafetina.
Os dois abandonam seus antigos negócios e se associam
para lucrar em cima da “febre” do povo. A narrativa
termina com todos os personagens apostando nessa nova
casa lotérica, e inclusive o padre, está presente para
abençoá-la. Sob a desculpa de que a casa estaria promovendo
um processo de “reeducação profissional” para as prostitutas,
que agora são atendentes, até o religioso de certa forma
admite veladamente que a maior fé do brasileiro está
em “se dar bem”.
Estevão Garcia
(DVD Europa Filmes)
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