Perfeitamente
compreensível e até esperado que em um diário haja tantas
idiossincrasias. É preciso coragem em um cineasta para
que a escritura de seu próprio diário seja, de forma
confessional, seu próprio filme? Ainda: é preciso coragem
em um cineasta para, em sua obra, expor tanto suas idiossincrasias
e seu processo criativo? Eu diria que sim, entretanto
uma coragem que não se encerra nela mesma; advém de
sentimentos muito genuínos de um homem apaixonado e
instigado pela vida.
As vivências cotidianas de Nanni Moretti, personagem
cineasta/homem (no sentido de indivíduo, pessoa humana),
nos revelam suas paixões, afetos e desafetos. Essas
experiências e os sentimentos e as opiniões que as acompanham
são simples, comuns e despretensiosas a ponto de serem
notas em um diário de papel ou, que não haja espanto,
a ponto de serem motivos para um filme. Porque, para
Moretti, não é necessária a pompa de um grandioso fato
histórico para que exista um argumento, uma idéia para
um filme. Não é preciso fazer um épico grandiloqüente,
como o diretor bem defende em cenas de O Crocodilo,
seu último filme. Não é preciso tantas tralhas (caravelas!),
traquitanas. Para o diretor/personagem Nanni Moretti,
e isso se explicita em falas tanto de Caro Diário
como de Aprile, é, antes de tudo, necessário
que haja carinho pelo “objeto” tratado, que se fale
das coisas que se gosta. Nanni precisa nos contar isso
em seus filmes; nos gritar, até. Às vezes precisa de
mais: descer de sua vespa, chamar um personagem no meio
do trânsito, incomodá-lo em seu conversível vinho para
dizê-lo “o problema é que os diretores não crêem nas
pessoas, em seus personagens. Eu creio!”.
Desde o início de Caro Diário, cantando e bailando
em sua vespa, Moretti se queixa de certos filmes, de
certas posturas criativas ou críticas. Vai ao cinema
e resmunga do que o personagem da película projetada
diz “... hoje em dia somos todos cúmplices; somos corruptos
em nossos trabalhos; gritávamos coisas horríveis, violentíssimas...”.
Moretti replica: “Por que, todos cúmplices? Vocês gritavam
coisas horríveis, violentíssimas. Eu gritava coisas
justas e hoje sou um esplêndido quarentão”. Moretti
anda sobre a vespa e sua narração sobre a imagem, defendendo
ou repugnando posturas, nos conta de seus gostos, da
cidade, de suas vontades, idéias, ideais, e aos poucos
vai construindo, de forma bastante pessoal, sua ode
à vida. Mostra que é possível fazê-lo em cenas de um
filme, nas quais um “esplêndido quarentão” anda em sua
vespa pela cidade ao som da trilha sonora. Leonard Cohen
canta “I’m Your Man.
O passeio de vespa e as ruas da cidade são apenas a
primeira parte do filme, que se divide em três. Nela,
Moretti parte de si para o mundo e do mundo volta para
si. Diz que gosta da cidade, de tal bairro, que não
gosta de outro, que gosta de casas, gostaria de filmá-las,
“que belo seria um filme só de casas”, sim, vindo de
alguém que filma tão bem a intimidade, que sabe conciliá-la
tão bem com o mundo que o cerca. Também entre os passeios
de vespa Moretti diverte-se com suas próprias inquietações
e obsessões: diz que não sabe sobre o que quer filmar,
talvez um musical sobre um doceiro trotskista na Itália
dos anos 50. Diz que adoraria saber dançar, sai à procura
da atriz do filme Flashdance, Jennifer Beals.
Sabe como fazer um filme divertido e, antes de tudo,
diverte-se ao filmá-lo.
Unindo-se à primeira parte, “Vespa”, as outras duas
partes nas quais o filme se divide, “Ilhas” e “Médicos”,
fecham os três motivos que Moretti elege e dos quais
parte para falar de tantas outras coisas. Para ele,
a cultura, a política, a família e a TV são tão relevantes
quanto atos do cotidiano: é que ele os aproxima, tira
o quê de instituição das coisas. Porque estas, na verdade,
são coisas da vida e atingem o ser humano o tanto quanto
por ele e por seus atos são atingidas.
A vespa: veículo para apenas uma pessoa. A ilha: metáfora
para indivíduo, solidão. O médico: profissional que
cuida do corpo de cada indivíduo; cada corpo, muito
particular, de cada pessoa. Os títulos de cada parte
em que Caro Diário se divide tratam, de alguma
forma, de uma noção do individual, do particular, como
um diário também o faz. Aqui, contudo, não se trata
de uma narrativa intimista: Moretti pode ser egocêntrico,
mas isto não o faz ensimesmado. Seu jeito idiossincrático,
peculiar, é, na verdade, um jeito que poderia ser de
qualquer um; nós o notamos em Moretti simplesmente porque
ele se expõe. Ele se expõe porque não tem medo, porque
uma coragem enorme infla seu peito e o faz realizar
filmes. Essa coragem vem de desejos e de um grande senso
de humanidade. É preciso apaixonar-se diante da vida,
das coisas mais sérias às mais bobas. E mesmo as mais
sérias das coisas, que sejam leves, descontraídas.
Luisa Marques
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