CARO DIÁRIO
Nanni Moretti, Caro Diario, Itália/França, 1993

Perfeitamente compreensível e até esperado que em um diário haja tantas idiossincrasias. É preciso coragem em um cineasta para que a escritura de seu próprio diário seja, de forma confessional, seu próprio filme? Ainda: é preciso coragem em um cineasta para, em sua obra, expor tanto suas idiossincrasias e seu processo criativo? Eu diria que sim, entretanto uma coragem que não se encerra nela mesma; advém de sentimentos muito genuínos de um homem apaixonado e instigado pela vida.

As vivências cotidianas de Nanni Moretti, personagem cineasta/homem (no sentido de indivíduo, pessoa humana), nos revelam suas paixões, afetos e desafetos. Essas experiências e os sentimentos e as opiniões que as acompanham são simples, comuns e despretensiosas a ponto de serem notas em um diário de papel ou, que não haja espanto, a ponto de serem motivos para um filme. Porque, para Moretti, não é necessária a pompa de um grandioso fato histórico para que exista um argumento, uma idéia para um filme. Não é preciso fazer um épico grandiloqüente, como o diretor bem defende em cenas de O Crocodilo, seu último filme. Não é preciso tantas tralhas (caravelas!), traquitanas. Para o diretor/personagem Nanni Moretti, e isso se explicita em falas tanto de Caro Diário como de Aprile, é, antes de tudo, necessário que haja carinho pelo “objeto” tratado, que se fale das coisas que se gosta. Nanni precisa nos contar isso em seus filmes; nos gritar, até. Às vezes precisa de mais: descer de sua vespa, chamar um personagem no meio do trânsito, incomodá-lo em seu conversível vinho para dizê-lo “o problema é que os diretores não crêem nas pessoas, em seus personagens. Eu creio!”.

Desde o início de Caro Diário, cantando e bailando em sua vespa, Moretti se queixa de certos filmes, de certas posturas criativas ou críticas. Vai ao cinema e resmunga do que o personagem da película projetada diz “... hoje em dia somos todos cúmplices; somos corruptos em nossos trabalhos; gritávamos coisas horríveis, violentíssimas...”. Moretti replica: “Por que, todos cúmplices? Vocês gritavam coisas horríveis, violentíssimas. Eu gritava coisas justas e hoje sou um esplêndido quarentão”. Moretti anda sobre a vespa e sua narração sobre a imagem, defendendo ou repugnando posturas, nos conta de seus gostos, da cidade, de suas vontades, idéias, ideais, e aos poucos vai construindo, de forma bastante pessoal, sua ode à vida. Mostra que é possível fazê-lo em cenas de um filme, nas quais um “esplêndido quarentão” anda em sua vespa pela cidade ao som da trilha sonora. Leonard Cohen canta “I’m Your Man.

O passeio de vespa e as ruas da cidade são apenas a primeira parte do filme, que se divide em três. Nela, Moretti parte de si para o mundo e do mundo volta para si. Diz que gosta da cidade, de tal bairro, que não gosta de outro, que gosta de casas, gostaria de filmá-las, “que belo seria um filme só de casas”, sim, vindo de alguém que filma tão bem a intimidade, que sabe conciliá-la tão bem com o mundo que o cerca. Também entre os passeios de vespa Moretti diverte-se com suas próprias inquietações e obsessões: diz que não sabe sobre o que quer filmar, talvez um musical sobre um doceiro trotskista na Itália dos anos 50. Diz que adoraria saber dançar, sai à procura da atriz do filme Flashdance, Jennifer Beals. Sabe como fazer um filme divertido e, antes de tudo, diverte-se ao filmá-lo.

Unindo-se à primeira parte, “Vespa”, as outras duas partes nas quais o filme se divide, “Ilhas” e “Médicos”, fecham os três motivos que Moretti elege e dos quais parte para falar de tantas outras coisas. Para ele, a cultura, a política, a família e a TV são tão relevantes quanto atos do cotidiano: é que ele os aproxima, tira o quê de instituição das coisas. Porque estas, na verdade, são coisas da vida e atingem o ser humano o tanto quanto por ele e por seus atos são atingidas.

A vespa: veículo para apenas uma pessoa. A ilha: metáfora para indivíduo, solidão. O médico: profissional que cuida do corpo de cada indivíduo; cada corpo, muito particular, de cada pessoa. Os títulos de cada parte em que Caro Diário se divide tratam, de alguma forma, de uma noção do individual, do particular, como um diário também o faz. Aqui, contudo, não se trata de uma narrativa intimista: Moretti pode ser egocêntrico, mas isto não o faz ensimesmado. Seu jeito idiossincrático, peculiar, é, na verdade, um jeito que poderia ser de qualquer um; nós o notamos em Moretti simplesmente porque ele se expõe. Ele se expõe porque não tem medo, porque uma coragem enorme infla seu peito e o faz realizar filmes. Essa coragem vem de desejos e de um grande senso de humanidade. É preciso apaixonar-se diante da vida, das coisas mais sérias às mais bobas. E mesmo as mais sérias das coisas, que sejam leves, descontraídas.


Luisa Marques

(DVD Platina Filmes)

 

 








Moretti e sua vespa


Em meio à dança, procurando Jennifer Beals


Depois de passar por muitos médicos para tratar de sua
alergia, sem sucesso: as sessões no Centro Chinês também
não melhoraram as coceiras, mas lá os médicos eram lúdicos
e gentis, ótimo motivo para Moretti continuar freqüentando.


Em Aprile (1998), Moretti ainda é o diretor/personagem
"ele mesmo", com as mesmas obsessões: finalmente
realiza o musical do "doceiro trotskista na Itália dos anos 50