UM CRIME DE MESTRE
Gregory Hoblit, Fracture, EUA, 2007

Nada mais honesto: as primeiras imagens de Um Crime de Mestre mostram em detalhes uma bolinha de vidro descendo pelos sinuosos caminhos de uma gigantesca engenhoca cinética que o protagonista, ás da engenharia, construiu sozinho. Interessa aqui o engenho puro, o truque de roteiro, a encenação esconde-e-mostra, a estrutura metálica (porque rígida e inabalável) de uma narrativa dada a passos em falso e pistas erradas mas que, no fim das contas, precisa da harmonia de uma bolinha de vidro que é lançada no alto da geringonça fílmica e chega seguramente ao seu destino. Anthony Hopkins e Ryan Gosling não estão nessa à toa: são os esconderijos perfeitos para esse tipo de construção, atores que conseguem fazer-se de bons e maus mantendo sempre a mesma expressão impassível, como se estivessem num semi-coma induzido por eles próprios. Ali embaixo deles, onde a câmera não chega, mas a vontade de inteligência e sagacidade grita por um pouco de atenção, é que se dá o filme.

Mas, ainda assim, talvez “filme” não seja bem a palavra. Estamos aqui diante de um exemplar perfeito do imenso desprestígio que o cinema clássico-narrativo vem sofrendo nos últimos tempos lá pelas bandas em que nasceu e onde, um dia, reinou absoluto. Em algum momento da incrível profissionalização da linha industrial, os operários que sabiam apertar os parafusos do cinema foram substituídos por peões-de-obra incrivelmente especializados, mestres do específico, incapazes de qualquer compreensão que escape ao mínimo que aprenderam e exercitam diariamente. É o primado dos consultants: não se faz mais um filme de culinária sem uma equipe de cozinheiros avisando o que é certo e o que é errado, não se ousa fazer um filme de guerra sem a consultoria de um ex-soldado. Nenhum problema nisso, não fosse a inversão de lógica completa, onde é o cinema que precisa lutar para encontrar seu lugar dentro da estrutura do “mundo real”, sem nunca questionar seu modo de operação, aceitando suas regras e substituindo-lhes às suas próprias.

Daí ser impossível chamar Um Crime de Mestre de “filme”, propriamente dito, uma vez que o engenho posto para funcionar ali dentro não é, em nenhum momento, construído nas bases de qualquer idéia que se tenha da arte. Autêntico “processo judicial animado por imagens”, isto que Gregory Hoblit faz aqui só existe porque uma outra matriz narrativa – o sistema legal americano – se dispôs, por sua natureza rocambolesca e esburacada, a fazer as vezes daquilo que antes chamávamos de cinema. Nenhuma das viradas obrigatoriamente espertas que Um Crime de Mestre apronta se baseia em outro artifício que não uma burla à lei do país, um modo de interpretá-la, uma manipulação possível a todo sujeito astuto que conheça seu funcionamento intestino. Não será menos burocrático o modo como Hoblit filmará todas essas sacadas de porta-de-cadeia, utilizando a mesma estratégia de seus atores, só que sem a capacidade de, efetivamente, sentir algo por debaixo da superfície: a mise-en-scène de um cinema em estado de coma. Imaginar, inventar, lidar com a matéria-prima da criação da imagem, montar um filme todo de falsidades mas que, ainda assim, mantenha como sua verdade um bem-mentir tão próprio do cinema, isto está fora de questão. Vale uma suposta emoção intrínseca do ambiente do tribunal, do gênio do mal, do mocinho falível, como se não fosse preciso encenar essa emoção, mas apenas estar ali perto de onde ela “naturalmente” acontece. Erro fundamental de Um Crime de Mestre: não se pode confiar demais numa estrutura judicial tão imune a qualquer sentimento (não é essa, afinal, a lição que aprendemos, quando o promotor consegue finalmente escapar da submissão intelectual à mente perversa do assassino e, racionalmente, desvendar o mistério de seu crime perfeito?). Preferimos os arrepios genuínos de toda a engenhosidade artificial que o cinema soube tão bem inventar. Preferimos os filmes dirigidos por cineastas e não por advogados.

Rodrigo de Oliveira