Nada mais honesto: as primeiras
imagens de Um Crime de Mestre mostram em detalhes
uma bolinha de vidro descendo pelos sinuosos caminhos
de uma gigantesca engenhoca cinética que o protagonista,
ás da engenharia, construiu sozinho. Interessa aqui
o engenho puro, o truque de roteiro, a encenação esconde-e-mostra,
a estrutura metálica (porque rígida e inabalável) de
uma narrativa dada a passos em falso e pistas erradas
mas que, no fim das contas, precisa da harmonia de uma
bolinha de vidro que é lançada no alto da geringonça
fílmica e chega seguramente ao seu destino. Anthony
Hopkins e Ryan Gosling não estão nessa à toa: são os
esconderijos perfeitos para esse tipo de construção,
atores que conseguem fazer-se de bons e maus mantendo
sempre a mesma expressão impassível, como se estivessem
num semi-coma induzido por eles próprios. Ali embaixo
deles, onde a câmera não chega, mas a vontade de inteligência
e sagacidade grita por um pouco de atenção, é que se
dá o filme.
Mas, ainda assim, talvez “filme” não seja bem a palavra.
Estamos aqui diante de um exemplar perfeito do imenso
desprestígio que o cinema clássico-narrativo vem sofrendo
nos últimos tempos lá pelas bandas em que nasceu e onde,
um dia, reinou absoluto. Em algum momento da incrível
profissionalização da linha industrial, os operários
que sabiam apertar os parafusos do cinema foram substituídos
por peões-de-obra incrivelmente especializados, mestres
do específico, incapazes de qualquer compreensão que
escape ao mínimo que aprenderam e exercitam diariamente.
É o primado dos consultants: não se faz mais
um filme de culinária sem uma equipe de cozinheiros
avisando o que é certo e o que é errado, não se ousa
fazer um filme de guerra sem a consultoria de um ex-soldado.
Nenhum problema nisso, não fosse a inversão de lógica
completa, onde é o cinema que precisa lutar para encontrar
seu lugar dentro da estrutura do “mundo real”, sem nunca
questionar seu modo de operação, aceitando suas regras
e substituindo-lhes às suas próprias.
Daí ser impossível chamar Um Crime de Mestre
de “filme”, propriamente dito, uma vez que o engenho
posto para funcionar ali dentro não é, em nenhum momento,
construído nas bases de qualquer idéia que se tenha
da arte. Autêntico “processo judicial animado por imagens”,
isto que Gregory Hoblit faz aqui só existe porque uma
outra matriz narrativa – o sistema legal americano –
se dispôs, por sua natureza rocambolesca e esburacada,
a fazer as vezes daquilo que antes chamávamos de cinema.
Nenhuma das viradas obrigatoriamente espertas que Um
Crime de Mestre apronta se baseia em outro artifício
que não uma burla à lei do país, um modo de interpretá-la,
uma manipulação possível a todo sujeito astuto que conheça
seu funcionamento intestino. Não será menos burocrático
o modo como Hoblit filmará todas essas sacadas de porta-de-cadeia,
utilizando a mesma estratégia de seus atores, só que
sem a capacidade de, efetivamente, sentir algo por debaixo
da superfície: a mise-en-scène de um cinema em
estado de coma. Imaginar, inventar, lidar com a matéria-prima
da criação da imagem, montar um filme todo de falsidades
mas que, ainda assim, mantenha como sua verdade um bem-mentir
tão próprio do cinema, isto está fora de questão. Vale
uma suposta emoção intrínseca do ambiente do tribunal,
do gênio do mal, do mocinho falível, como se não fosse
preciso encenar essa emoção, mas apenas estar ali perto
de onde ela “naturalmente” acontece. Erro fundamental
de Um Crime de Mestre: não se pode confiar demais
numa estrutura judicial tão imune a qualquer sentimento
(não é essa, afinal, a lição que aprendemos, quando
o promotor consegue finalmente escapar da submissão
intelectual à mente perversa do assassino e, racionalmente,
desvendar o mistério de seu crime perfeito?). Preferimos
os arrepios genuínos de toda a engenhosidade artificial
que o cinema soube tão bem inventar. Preferimos os filmes
dirigidos por cineastas e não por advogados.
Rodrigo de Oliveira
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