SUNSHINE - ALERTA SOLAR
Danny Boyle, Sunshine, Reino Unido, 2007

Sunshine - Alerta Solar é um filme sobre a retina, sobre o fundo do olho como lugar da visão e como lugar da cegueira. Tudo nele, da construção dos personagens à mise-en-scène da filmagem, é baseado na idéia de um olhar fascinado pela intensidade da luz e pelas impressões inapagáveis que esse fascínio pode produzir. É, portanto, um filme sobre as seqüelas da iluminação, sobre as cicatrizes deixadas no corpo e no espírito pela visão ampliada.

Portanto, é um filme luciferiano.

Um dos mitos religiosos mais curiosos é o de Lúcifer, o anjo da luz que, de tanto iluminar, cegou a todos nos céus e foi decaído, transformando-se no mais poderoso dos demônios, Satanás. Pois não deixa de ser curioso o jogo que faz o filme de Danny Boyle: o mal da Terra é o final de uma estrela, de algo que queima como os infernos. Mais que isso, a história do filme é justamente a de uma jornada na direção da “iluminação”, de Lúcifer, de um anjo que ameaça cair e se transformar na desgraça de todos. É uma jornada para a salvação da divindade.

Por isso mesmo, o primeiro ponto que impressiona no filme, logo em sua abertura, não é a grandiosidade de seu visual - uma mecânica típica da sci-fi -, é mais a fala doce de Robert Cappa, o físico que construiu uma bomba para refazer o sol, e que, curiosamente, tem o mesmo nome do fotógrafo que redefiniu o fotojornalismo, o jornalismo de egistro “historiográfico” do “real”, particularmente o jornalismo de guerra. Pouco depois, Cappa ainda nos será dado como marcante: ele tem olhos grandes, claros, expressivos. Olhos que destoam de uma normalidade da íris. É um filme sobre o olho e o que nele e dele fica como registro.

A imagem mais recorrente, o plano de cobertura mais utilizado pelo filme, será o de pupilas que se dilatam. Diafragmas fotográficos que se dão a um aumento de luminosidade. O médico se dará a este aumento pelo fascínio do encontro com a luz - e pagará por isso o preço de uma degradação “a olhos vistos”. Igualmente, o capitão da nave se dará à mesma lógica, pelo fascínio com a luz perdida do Icarus I – a nave que não obteve seu intento, batizada, assim como a Icarus II que ora tenta novamente completá-lo, com uma ironia sem precedentes ou como uma vontade profética, com o nome do herói grego que teve as asas de cera e penas derretidas ao voar perto demais do sol e morreu na queda! A botânica - oriental, como outros integrantes da equipe, o que demarcará também um chamar a atenção para o olho - é ligada à luz pela clorofila que tenta cultivar. A piloto terá (assim como Cappa) uma imagem recorrente “diante de seus olhos” imediatamente ao adormecer. Todos terão, digamos, visões pessoais da história.

Danny Boyle faz filmes de jovem. Seus personagens são constantemente aqueles que estão, pela idade, distantes da morte. E por isso mesmo flertam com ela. Mas sua maneira de lidar com esses jovens é constantemente decepcionada: eles são cínicos, desengajados moralmente. Para eles, o horizonte é o proveito próprio. A única utopia é a de si mesmo. É a relação dos jovens com o dinheiro em Cova Rasa, com as drogas em Trainspotting, com o prazer em A Ilha, com a epidemia em Extermínio. Em Sunshine – Alerta Solar, entretanto, vemos jovens heróicos. Eles estão prontos a morrer pela sobrevivência da Terra. Eles “olham para frente” sem pensar em si. Tanto é que os jogos de poder estabelecidos pelas relações - o segundo personagem mais importante do filme, logo depois da luz - são centrados na disputa entre cenários, entre futuros possíveis. O único personagem deslocado, o oficial de comunicações, volta-se para si mesmo apenas porque perdeu a função como elo comunicacional. Mas o resto da tripulação está envolvido no jogo de um poder mais complexo, o poder de ver o futuro. De vê-lo por autoria. De sabê-lo de antemão por tê-lo projetado.

Por isso mesmo, o jogo de citações do filme - um referencialismo superficial, que remete apenas ao fato de construir o filme como sci-fi, como as alusões a 2001, Solaris, Alien e toda uma gama de universos espaciais de cinema - não passa de uma sustentação para esse jogo. É uma forma de olhar o que está em jogo. Por exemplo, na construção de uma tecnologia dotada de sentido na mitologia da história - outro elemento central no gênero -, isso fica (impossível fugir do jogo de palavras aqui) claro: os espelhos de absoluta reflexividade que rebatem a luz do sol, permitindo que tudo que está atrás deles seja protegido de seu calor intenso, formam o índice mais efetivo dessa mitologia. O olhar pode matar. Não apenas o calor, mas a luz em si. Também o momento mais “impressionista” da filmagem, o bloco em que a payload adentra o sol, se justifica por essa mecânica. Enxergamos um fluxo alterado no tempo e no estatuto da imagem porque há um deslocamento na lógica do tempo em decorrência da Teoria da Relatividade - uma vez que o objeto se desloca por meio de um “buraco de minhoca” einsteiniano, ele não opera mais nas dimensões tradicionais etc. Mas esse efeito é menos próprio de uma emulação ou, se é, é uma emulação, é digamos, uma emulação “preenchida”: é assim para que haja o mistério.

No sentido em que o filme permite uma boa pergunta sobre a visualidade: a significação visual é sempre referente, ou seja, uma coisa sempre será um signo, será outra coisa, um símbolo? Neste filme, o visual permite não um em si da ordem do maneirismo estético, mas de uma outra ordem, naquela em que se quer produzir uma instância de um deslumbramento tão absoluto que seja centrado não na imagem, mas em seus efeitos. Cappa é cientista, tem como principal horizonte uma noção de ausência de porquê para a existência das coisas. Mas ao mesmo tempo, diz: “Vamos criar uma estrela e isso deve ser lindo”. Ele, então, morrerá para que o sol retorne e para que a vida prossiga. Veja: não é para que a vida tenha sentido, é para que ela faça sentido. Não é para que ela seja justificada em si, mas sim para que ela seja justificada por seu poder de criar.

O que conduz para o que faz Boyle como cineasta. Seu filme opera uma espécie de tabula rasa visual. Fundos habitualmente brancos, mas sempre limpos, sobre os quais se movem personagens. Parece mesmo um incômodo espaço para propaganda de objetos em uma loja de catálogo. Nem mesmo no espaço mais “natural” de sua espacialidade, a pequena horta do interior da nave, há lugar para a sujeira. Até a poeira da nave abandonada será clean. Até seu suicídio é limpo, forma uma poça de sangue de limites definidos. Não há indefinições entre os corpos, não há contaminações, salvo justamente no momento do encontro derradeiro com o “vilão”, o homem tão “possuído” pela luz que deixou de ser humano, encontro esse passado justamente no momento da contaminação do visual pela Teoria da Relatividade. Ali, o espaço “coordenado” de Boyle “perde o sentido”, o principal deles nesse caso, aliás, o olhar.

Pago o preço desse efeitismo, Boyle cria um universo voltado para o deslumbramento. Não o deslumbramento puro e simples diante da intensidade de seus planos - seus personagens já são os agentes desse fascínio, aliás, como pode se constatar na seqüência da passagem de Mercúrio diante do Sol -, mas para uma noção de grandiosidade central para seu filme: assim como no que impulsiona Cappa para lutar, há algo para além do visual que pode habitar os planos. Algo misterioso e sem nome. Mas que pulsa e, afinal, dilata pupilas.

Alexandre Werneck