Bárbaro
e Nosso
E que culpa poderia ter Ó Paí, Ó por
cair nas mãos de Monique Gardenberg? Estamos aqui diante
da mesma variante cinematográfica já percebida em Trair
e Coçar É Só Começar, aquilo que lá chamamos de “cinema
brasileiro espontâneo”, onde a simples ocorrência de
uma câmera com negativo e de alguns atores diante dela
já consegue produzir, automaticamente, imagens para
um filme, sem precisar de qualquer mente humana por
trás disso. Esse desleixo absoluto com a construção
das imagens, fruto de certa agilidade de produção nos
trabalhos de Moacyr Góes e Diler Trindade, atinge aqui
também o “cinema de autor”, do qual Gardenberg é uma
titubeante personagem. Não são poucas as vezes em que
nos perguntamos, diante de Ó Paí, Ó, se havia
de fato alguém olhando no visor da câmera enquanto
tal plano era filmado, ou se devemos engolir toda a
indigência com que o filme se apresenta como “traço
estilístico”. A simples operação de acertar o foco
numa cena em que dois personagens estejam conversando
(e não deixá-lo perdido no fundo do cenário, onde não
há interesse dramatúrgico nenhum), saber enquadrar
os rostos dos atores no mais simples mecanismo de campo
e contracampo, ou mesmo conseguir rodar planos que
tenham consciência de que não são independentes, de
que precisarão se ligar a outros na montagem, tudo
isto completamente negligenciado por Gardenberg e sua
equipe, e nos perguntamos se seremos obrigados a ouvir
que tudo não passa de “radicalismo de linguagem”, ou “experimentação
dramática”, ultra-consciente de si. Não: não há consciência
em Ó Paí, Ó, em nenhuma das partes.
Atrás das câmeras, isso não dá em outra coisa senão num completo desastre. Vemos
que o filme tem questões, que se preocupa em elencar problemas (sejam eles temáticos
ou estéticos), mas, em nenhum momento, interessa a Ó Paí, Ó pensar neles,
trabalhá-los dentro de um discurso próprio, que equilibre aquilo que se quer
dizer com um modo de dizê-lo, usando as armas que o cinema – ele mesmo, tão abandonado
aqui – oferece. Sabemos que o “embranquecimento” do Pelourinho baiano é um assunto
para a diretora e para o grupo de teatro que trabalha com ela aqui, mas nunca
teremos a certeza se o filme sabe disso, porque tudo o que vemos é uma careta
feita por uma atendente de loja quando recebe um cliente branco, depois mais
um plano de um gringo loiríssimo fazendo trancinhas afro em seu cabelo, e no
meio disso a explosão injustificada do personagem de Wagner Moura contra Lázaro
Ramos, tirando da cartola insultos de “negro!”, quando a questão da raça nem
sequer havia sido aventada até então pelos dois. Aqui corremos o risco de ouvir
a resposta de que “a realidade é assim mesmo, e o racismo aparece mesmo naqueles
que nunca suspeitamos conter tal sentimento”, mas outra coisa da qual Ó Paí, Ó se
afasta terminantemente é de qualquer traço de realidade.
Porém, novamente, Monique Gardenberg tem um desejo e seu filme outro completamente
diferente, como se instâncias independentes fossem. A diretora quer sim fazer
de todo esse painel da personalidade festiva baiana a plataforma de um chamamento à responsabilidade,
elevando a adrenalina de seus personagens ao longo do filme de maneira tão cúmplice
para, no final, aplicar-lhes um belo choque anafilático: responder à overdose
de alegria com um golpe duro de realidade, crianças assassinadas cruelmente na
mesma ladeira em que, poucos minutos antes, a malandragem pulava carnaval. Nisso,
no entanto, Ó Paí, Ó não está sozinho, sendo uma característica tão própria
do cinema brasileiro contemporâneo essa incapacidade de lidar com a alegria,
com a felicidade e com a fantasia sem, em algum momento, se deixar abater por
uma culpa súbita e fatal por não contaminar este universo idílico de algum traço
da realidade nacional gritante (pensemos em Proibido Proibir e em Cafuné como
os exemplares que menos se comprometem com esta culpa, mas onde ela ainda existe,
no meio disso um Ódique? e um Cama de Gato, que a parasitam, ou
ainda num insuspeito O Casamento de Romeu e Julieta, obrigando-se a falar
da divisão social nas torcidas de futebol quase por um fetiche paternalista).
A Ó Paí, Ó, universo que acontece por debaixo daquilo que Gardenberg filma,
interessa mesmo é o irreal, a tinta carregada, o estereótipo, e nisso vai muito
bem. Logo numa das primeiras seqüências do filme vemos um grupo de foliões tropeçando
pela rua, e a câmera alta permite apenas que vejamos o asfalto no fundo, para
que então vá se descobrir que aquele carnaval todo acontecia ao mesmo tempo em
que a cidade, lá no fundo, seguia seu curso normal de tarefas e obrigações. Ora,
o plano (e todo o filme) parece ter saltado daquela primeira imagem de Dona
Flor e Seus Dois Maridos, ali onde Vadinho morria e um tipo boêmio novo,
o Roque de Lázaro Ramos, parecia pegar seu bastão. A referência não é casual:
em Ó Paí, Ó temos sempre a impressão de estar diante do mundo de um Jorge
Amado viajando em ácido, tudo sempre dois ou três tons acima, muito além da tipificação,
mas já lidando com a própria mitologia da personalidade baiana. Esse caráter
alucinógeno sobrevive duramente, mas está lá num Wagner Moura encarnando um bandidinho
pernicioso e retardado patológico, no número musical que toma todos os personagens
da trama e que é conduzido por uma horrorosamente divertida Virgínia Rodrigues,
ou mesmo na incorporação sem politicagem correta do universo homossexual. Tudo
isso, no entanto, parece ser constrangido por uma presença que deveria, ao contrário,
impulsionar esse barato todo. Ó Paí, Ó talvez se saísse melhor se não
houvesse uma câmera ali a oprimi-lo tão implacavelmente – na verdade, não uma câmera,
mas esta câmera específica, careta e “socialmente responsável”, de Monique
Gardenberg.
Rodrigo
de Oliveira
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