NÃO POR ACASO
Philippe Barcinski, Não Por Acaso, Brasil, 2006

A interminável lista de patrocinadores que dá cara ao cinema brasileiro das leis de incentivo entra em cena como um bando de helicópteros sobrevoando o espaço escuro. Quando a lista termina, começam os créditos de produção, com a cidade de São Paulo bela e ameaçadora ao fundo, tomada de um helicóptero. Aos poucos, ainda durante os créditos, vamos descendo cada vez mais perto do chão, ficando mais próximos dos habitantes, mais colados à urbanidade que aparenta ser muito mais caótica do que realmente é. Mas nunca chegamos ao solo da cidade, pois a câmera termina os créditos acompanhando, rente ao asfalto, os carros que correm pelo minhocão (conhecido complexo de viadutos que liga a zona leste à oeste, passando por cima de boa parte do centro da cidade). Estamos no terreno formalista que tanto agrada ao diretor Philippe Barcinski. Mas, ao contrário das imagens que procuravam um sentido e uma razão de ser dos seus curtas, particularmente os mais problemáticos Palíndromo e A Janela Aberta – justamente os mais estilosos e de maiores excessos formais –, as imagens de abertura de Não Por Acaso nos convidam a testemunhar duas histórias paulistaníssimas. Dessa idéia dos créditos vem uma primeira brincadeira. "Um filme de Philippe Barcinski", diz o penúltimo letreiro. Em seguida, "Não por acaso". A simples maneira de colocar esses letreiros nessa ordem, um imediatamente depois do outro, ambos sendo quase apagados pela sombra dos prédios, já sugere que, tanto diretor quanto filme estariam impregnados de paulicéia. O resultado poderia ser catastrófico, pois esse mergulho poderia significar uma total subordinação do diretor aos próprios cacoetes que faziam implodir seus curtas. A prisão do exercício deixaria os personagens enclausurados, sem muito espaço para adesões apaixonadas.

Não é o que acontece. Não Por Acaso harmoniza muito bem suas apostas formais – mais diluídas, por se tratar de um longa, com necessidade maior de uma dramaturgia – e até seus riscos. Mesmo as inconseqüências e incoerências dos personagens parecem ter razão de ser, o que demonstra a felicidade que Barcinski teve ao costurar essas duas histórias, fazendo com que apenas parte de uma se misture com parte de outra, e que ecos de uma assombrem a outra, sem nunca deixar de ser um eco de superfície, uma simples brincadeira que não abala a dramaturgia. Não temos, assim, o entroncamento forçado que normalmente existe quando duas ou mais histórias correm em paralelo, e o autor se sente na obrigação de juntá-las de qualquer maneira. Temos apenas uma campainha que toca em uma história e uma porta que se abre em seguida na outra, ou um café que está perdido numa história e que aparece em outra como uma maneira de se estabelecer um vínculo afetivo, ou ainda as ladeiras pelas quais passam personagens de ambas as histórias, geralmente em sentido opostos. Barcinski optou por situar o filme todo num espaço bem delimitado da cidade, criando uma espécie de bolha (como seriam alguns bairros como Santana, Moema ou Vila Madalena, que são auto-suficientes, e permitem que seus moradores passem a vida inteira neles se quiserem). Mas essa bolha, contrariamente ao que o paulistano conhece, é situada no coração da cidade, o centro velho, nas imediações do Vale do Anhangabaú (o leitor não familiarizado com a cidade que me perdoe: é que o filme usa essas locações com muita propriedade). Ali veremos tudo se desenrolar, mesmo que em certo momento a geografia da cidade seja subvertida com um carro descendo a rua Cardeal Arcoverde, conhecida por se afastar do centro rumo a Pinheiros e outros bairros da Zona Oeste.

Acompanhamos, assim, o cotidiano de Ênio (Leonardo Medeiros), um empregado da CET – a Companhia de Engenharia do Tráfego, com a qual quase todo paulistano parece ter uma relação de amor e ódio – divorciado ou coisa parecida, que mal conhece a própria filha. Um nerd de escritório, que tinha um futuro promissor, mas se vê diariamente plantado em um mecanismo controlador do qual não consegue escapar. Graças ao brilhante trabalho de composição de Medeiros, com silêncios, desajeitos e falas macias, a empatia com ele é praticamente certa, o que o torna o grande trunfo do filme. Em certo momento, ele é convencido pelo chefe a retrabalhar sua famosa tese de mestrado, sobre fluxos, partículas, em suma, controle. Da tela do computador com poucas palavras, partimos para uma narração que transforma a linguagem formal da tese em algo mais coloquial, ainda que impregnado de cientificidade. Durante a narração vemos uma câmera do alto, com a simulação digital de carros interagindo em vários cruzamentos. A simetria do movimento dos carros revela-se assustadora, numa cena que dá até certa tontura. Aí temos muito claramente a idéia de controle que envolve a maneira de viver de Ênio. Um controle que parece funcionar como uma couraça que o protege das emoções que ele tanto quer abraçar, mas que ao mesmo tempo faz o possível para evitar. O encontro com a ex-mulher (Graziella Moretto) se dá dessa maneira controlada, com a barba cuidadosamente aparada e uma mesa escolhida num ponto chave, num mezanino de um bar, de onde ele pode acompanhar a movimentação dela e o carro do novo marido estacionado na porta. Quando, momentos depois, ele vê que o grave acidente acontecido perto de sua central de trabalho envolvia o mesmo carro que levara sua ex-mulher ao barzinho, resolve ir até o local, de forma apressada, mas não desesperada. Ainda existe um controle, que é mostrado sobretudo quando ele vê os corpos empacotados no chão.

Corte para outra história, a do fabricante de mesas de sinuca Pedro (Rodrigo Santoro), também obcecado por controle, que, no entanto, parece também um fantasma de si mesmo. Teresa (Branca Messina), sua namorada, se torna uma das vítimas do acidente que já vimos na outra história. Ele passa a lamentar pelos dois segundos de diferença que, hipoteticamente, a livrariam do atropelamento. Curioso que o personagem pense dessa forma. Na verdade, é comum esse pensamento de que alguma escolha, ou mesmo alguma demora, afete os acontecimentos futuros. Alain Resnais fez até um díptico a partir da escolha de fumar ou não fumar em Smoking / No Smoking, em que essa simples escolha desencadearia uma séria de outras escolhas, algumas teriam seu espelho na outra parte do díptico. Tem gente que até enlouquece por causa disso. É o que parece acontecer com o Pedro de Não Por Acaso. Quando vemos as imagens de Teresa interagindo com ela mesma dois segundos antes, percebemos como finalmente os cacoetes formais de Barcinski estão a serviço de uma dramaturgia, do drama de uma pessoa. Pois tudo que vemos é o que se passa na cabeça martirizada de Pedro, da mesma forma que, minutos antes, havíamos visto o percurso que a bola de sinuca deveria percorrer sobre a mesa com o mesmo efeito de transparência que vemos na cena do atropelamento.

Por causa do acidente, Pedro se envolve com Lúcia (Letícia Sabatella), a inquilina do apartamento em que Teresa morava antes, e Ênio finalmente conhece sua filha Bia (Rita Batata). As histórias se distanciam novamente (apesar dos ecos entre uma e outra existirem sempre na superfície), para retomar o contato próximo ao final, numa cena que, dependendo dos rumos tomados pelo filme, poderia ser sua desgraça. Mas Barcinski é hábil em transformar uma medida inconseqüente de Ênio em uma espécie de nova chance para ele, ao mesmo tempo em que permite que a surpresa idealizada por Pedro aconteça de outra maneira, talvez até melhor para ele: uma mesa improvisada na porta do apartamento, no lugar de uma porta que se abre para que ele se desculpe, pois tudo que Lúcia queria era um pouco de café. Interessante como um expediente comum às comédias românticas – um gesto inconseqüente que prejudica um monte de pessoas, mas que serve unicamente ao amor – se aplique de forma tão enviezada e interessante. Não é o amor de sua vida que Ênio quer segurar fechando as ruas da cidade, mas sua filha, o novo amor descoberto, uma possibilidade de sair de um autocontrole aprisionador. Da mesma forma, não é para que tenhamos o encontro de Pedro com Lúcia, e o esperado beijo romântico final, que o congestionamento existiu dentro do filme, mas para que esse beijo definitivo fosse adiado, curtido no pensamento de ambos, como um futuro próximo, algo que deveria ser alcançado após o término da projeção. Sabemos que o caso virará romance, mas não veremos isso. Assim como não vemos o descontrole de Ênio ao implorar que a filha não viaje para o intercâmbio internacional e fique com ele. No final, as elipses funcionam como se fosse um controle imposto ao espectador, que termina por se sentir exatamente como os personagens antes da libertação. Questão de prioridades, como diz o próprio Ênio em um momento do filme: o minhocão por onde os carros transitavam durante os créditos iniciais agora dá lugar a Ênio e sua filha, e a tantos outros habitantes. É necessário, porém, que o espectador também se liberte desse controle, e sinta que o passeio de bicicleta significa muito mais do que o clichê recorrente dos finais felizes. É também uma forma de sua libertação.

Sérgio Alpendre