A interminável lista de patrocinadores
que dá cara ao cinema brasileiro das leis de incentivo
entra em cena como um bando de helicópteros sobrevoando
o espaço escuro. Quando a lista termina, começam os
créditos de produção, com a cidade de São Paulo bela
e ameaçadora ao fundo, tomada de um helicóptero. Aos
poucos, ainda durante os créditos, vamos descendo cada
vez mais perto do chão, ficando mais próximos dos habitantes,
mais colados à urbanidade que aparenta ser muito mais
caótica do que realmente é. Mas nunca chegamos ao solo
da cidade, pois a câmera termina os créditos acompanhando,
rente ao asfalto, os carros que correm pelo minhocão
(conhecido complexo de viadutos que liga a zona leste à oeste,
passando por cima de boa parte do centro da cidade).
Estamos no terreno formalista que tanto agrada ao diretor
Philippe Barcinski. Mas, ao contrário das imagens que
procuravam um sentido e uma razão de ser dos seus curtas,
particularmente os mais problemáticos Palíndromo e A
Janela Aberta – justamente os mais estilosos e
de maiores excessos formais –, as imagens de abertura
de Não Por Acaso nos convidam a testemunhar
duas histórias paulistaníssimas. Dessa idéia dos créditos
vem uma primeira brincadeira. "Um filme de Philippe
Barcinski", diz o penúltimo letreiro. Em seguida, "Não
por acaso". A simples maneira de colocar esses letreiros
nessa ordem, um imediatamente depois do outro, ambos
sendo quase apagados pela sombra dos prédios, já sugere
que, tanto diretor quanto filme estariam impregnados
de paulicéia. O resultado poderia ser catastrófico,
pois esse mergulho poderia significar uma total subordinação
do diretor aos próprios cacoetes que faziam implodir
seus curtas. A prisão do exercício deixaria os personagens
enclausurados, sem muito espaço para adesões apaixonadas.
Não é o que acontece. Não Por Acaso harmoniza muito bem suas apostas formais – mais
diluídas, por se tratar de um longa, com necessidade maior de uma dramaturgia – e
até seus riscos. Mesmo as inconseqüências e incoerências dos personagens parecem
ter razão de ser, o que demonstra a felicidade que Barcinski teve ao costurar
essas duas histórias, fazendo com que apenas parte de uma se misture com parte
de outra, e que ecos de uma assombrem a outra, sem nunca deixar de ser um eco
de superfície, uma simples brincadeira que não abala a dramaturgia. Não temos,
assim, o entroncamento forçado que normalmente existe quando duas ou mais histórias
correm em paralelo, e o autor se sente na obrigação de juntá-las de qualquer
maneira. Temos apenas uma campainha que toca em uma história e uma porta que
se abre em seguida na outra, ou um café que está perdido numa história e que
aparece em outra como uma maneira de se estabelecer um vínculo afetivo, ou ainda
as ladeiras pelas quais passam personagens de ambas as histórias, geralmente
em sentido opostos. Barcinski optou por situar o filme todo num espaço bem delimitado
da cidade, criando uma espécie de bolha (como seriam alguns bairros como Santana,
Moema ou Vila Madalena, que são auto-suficientes, e permitem que seus moradores
passem a vida inteira neles se quiserem). Mas essa bolha, contrariamente ao que
o paulistano conhece, é situada no coração da cidade, o centro velho, nas imediações
do Vale do Anhangabaú (o leitor não familiarizado com a cidade que me perdoe: é que
o filme usa essas locações com muita propriedade). Ali veremos tudo se desenrolar,
mesmo que em certo momento a geografia da cidade seja subvertida com um carro
descendo a rua Cardeal Arcoverde, conhecida por se afastar do centro rumo a Pinheiros
e outros bairros da Zona Oeste.
Acompanhamos, assim, o cotidiano de Ênio (Leonardo Medeiros), um empregado da
CET – a Companhia de Engenharia do Tráfego, com a qual quase todo paulistano
parece ter uma relação de amor e ódio – divorciado ou coisa parecida, que mal
conhece a própria filha. Um nerd de escritório, que tinha um futuro promissor,
mas se vê diariamente plantado em um mecanismo controlador do qual não consegue
escapar. Graças ao brilhante trabalho de composição de Medeiros, com silêncios,
desajeitos e falas macias, a empatia com ele é praticamente certa, o que o torna
o grande trunfo do filme. Em certo momento, ele é convencido pelo chefe a retrabalhar
sua famosa tese de mestrado, sobre fluxos, partículas, em suma, controle. Da
tela do computador com poucas palavras, partimos para uma narração que transforma
a linguagem formal da tese em algo mais coloquial, ainda que impregnado de cientificidade.
Durante a narração vemos uma câmera do alto, com a simulação digital de carros
interagindo em vários cruzamentos. A simetria do movimento dos carros revela-se
assustadora, numa cena que dá até certa tontura. Aí temos muito claramente a
idéia de controle que envolve a maneira de viver de Ênio. Um controle que parece
funcionar como uma couraça que o protege das emoções que ele tanto quer abraçar,
mas que ao mesmo tempo faz o possível para evitar. O encontro com a ex-mulher
(Graziella Moretto) se dá dessa maneira controlada, com a barba cuidadosamente
aparada e uma mesa escolhida num ponto chave, num mezanino de um bar, de onde
ele pode acompanhar a movimentação dela e o carro do novo marido estacionado
na porta. Quando, momentos depois, ele vê que o grave acidente acontecido perto
de sua central de trabalho envolvia o mesmo carro que levara sua ex-mulher ao
barzinho, resolve ir até o local, de forma apressada, mas não desesperada. Ainda
existe um controle, que é mostrado sobretudo quando ele vê os corpos empacotados
no chão.
Corte para outra história, a do fabricante de mesas de sinuca Pedro (Rodrigo
Santoro), também obcecado por controle, que, no entanto, parece também um fantasma
de si mesmo. Teresa (Branca Messina), sua namorada, se torna uma das vítimas
do acidente que já vimos na outra história. Ele passa a lamentar pelos dois segundos
de diferença que, hipoteticamente, a livrariam do atropelamento. Curioso que
o personagem pense dessa forma. Na verdade, é comum esse pensamento de que alguma
escolha, ou mesmo alguma demora, afete os acontecimentos futuros. Alain Resnais
fez até um díptico a partir da escolha de fumar ou não fumar em Smoking /
No Smoking, em que essa simples escolha desencadearia uma séria de outras
escolhas, algumas teriam seu espelho na outra parte do díptico. Tem gente que
até enlouquece por causa disso. É o que parece acontecer com o Pedro de Não
Por Acaso. Quando vemos as imagens de Teresa interagindo com ela mesma dois
segundos antes, percebemos como finalmente os cacoetes formais de Barcinski estão
a serviço de uma dramaturgia, do drama de uma pessoa. Pois tudo que vemos é o
que se passa na cabeça martirizada de Pedro, da mesma forma que, minutos antes,
havíamos visto o percurso que a bola de sinuca deveria percorrer sobre a mesa
com o mesmo efeito de transparência que vemos na cena do atropelamento.
Por causa do acidente, Pedro se envolve com Lúcia (Letícia Sabatella), a inquilina
do apartamento em que Teresa morava antes, e Ênio finalmente conhece sua filha
Bia (Rita Batata). As histórias se distanciam novamente (apesar dos ecos entre
uma e outra existirem sempre na superfície), para retomar o contato próximo ao
final, numa cena que, dependendo dos rumos tomados pelo filme, poderia ser sua
desgraça. Mas Barcinski é hábil em transformar uma medida inconseqüente de Ênio
em uma espécie de nova chance para ele, ao mesmo tempo em que permite que a surpresa
idealizada por Pedro aconteça de outra maneira, talvez até melhor para ele: uma
mesa improvisada na porta do apartamento, no lugar de uma porta que se abre para
que ele se desculpe, pois tudo que Lúcia queria era um pouco de café. Interessante
como um expediente comum às comédias românticas – um gesto inconseqüente que
prejudica um monte de pessoas, mas que serve unicamente ao amor – se aplique
de forma tão enviezada e interessante. Não é o amor de sua vida que Ênio quer
segurar fechando as ruas da cidade, mas sua filha, o novo amor descoberto, uma
possibilidade de sair de um autocontrole aprisionador. Da mesma forma, não é para
que tenhamos o encontro de Pedro com Lúcia, e o esperado beijo romântico final,
que o congestionamento existiu dentro do filme, mas para que esse beijo definitivo
fosse adiado, curtido no pensamento de ambos, como um futuro próximo, algo que
deveria ser alcançado após o término da projeção. Sabemos que o caso virará romance,
mas não veremos isso. Assim como não vemos o descontrole de Ênio ao implorar
que a filha não viaje para o intercâmbio internacional e fique com ele. No final,
as elipses funcionam como se fosse um controle imposto ao espectador, que termina
por se sentir exatamente como os personagens antes da libertação. Questão de
prioridades, como diz o próprio Ênio em um momento do filme: o minhocão por onde
os carros transitavam durante os créditos iniciais agora dá lugar a Ênio e sua
filha, e a tantos outros habitantes. É necessário, porém, que o espectador também
se liberte desse controle, e sinta que o passeio de bicicleta significa muito
mais do que o clichê recorrente dos finais felizes. É também uma forma de sua
libertação.
Sérgio
Alpendre
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