O controle e o fortuito. A
vida e a morte. A presença e a ausência. A lógica da
dualidade que pauta Não Por Acaso funda-se numa
perspectiva organizacionista da narrativa, na qual
o desenrolar do filme assemelha-se à estrutura de um
jogo de armar. Neste seu primeiro longa, Philippe Barcinski
reúne elementos, os dispõe temporal e espacialmente
e costura-os por uma série de acontecimentos.
Assim temos: a cidade que é mapa e é fluxo, os personagens
calculistas e controladores surpreendidos pelo acaso
e uma série
de substituições e paralelismos que informam as duas
histórias que se esbarram em um acidente de trânsito.
O impulso de planejamento, seja de uma vida ou de um filme, passa necessariamente
por uma série de projeções, de imagens mentais, que deverão se atualizar no concreto
por meio de ações a serem cumpridas. É desta forma que Pedro se aplica no jogar
sinuca e que Ênio é capaz de trabalhar como controlador de tráfego na capital
paulista. Não Por Acaso gera então imagens “sem substância” para “corporificar” estas
abstrações (ou desejo de ordem) dos personagens. No caso de Pedro, elas se manifestam
em antevisões das posições tomadas pelas bolas de sinuca no jogo, que são substituídas
pelas bolas reais, e pelo adiamento do trajeto de Teresa, sua namorada, que morre
no acidente; no caso de Ênio, pelos percursos a serem efetivados pelo tráfego
e pelas hipotéticas conseqüências das intervenções dos controladores no funcionamento
deste.
A já citada dualidade é que vai, pois, informar este espelhamento assimétrico
das duas narrativas. Pedro perdeu o pai; Bia conhece Ênio e conquista sua paternidade
não-realizada. Dona Iolanda perde a filha; Bia perde a mãe. Teresa vende o apartamento
para ir morar com Pedro; Ênio busca um apartamento novo e se depara com o desejo
de sua filha de compartilhar o teto com ele. Simultaneamente, para além do leit
motif do controle sobre a própria a vida, manifestado através das profissões
dos personagens, alguns elementos fazem eco entre as histórias, como a presença
do café estabelecendo os novos elos a serem cultivados.
Ainda neste espírito de “emparelhamento”, Não Por Acaso apresenta uma
série de compensações e substituições – cuja expressão visual maior está no uso
das imagens das abstrações de Pedro. Desta forma, Lúcia deverá ocupar o espaço
de Teresa no plano de vida de Pedro, que faz de tudo para repetir com ela suas
práticas com o amor perdido (fotografia no mirante, omelete de manhã, realização
das vontades do outro após elas terem sido ignoradas), não obstante o que o novo
apresenta de específico. Ênio, por outro lado, incorpora a novidade da presença
de Bia onde antes havia um vazio afetivo, remodelando suas práticas cotidianas.
A figura da circulação – do tempo, das pessoas, das idéias, dos sentimentos – presente
nas situações vividas pelos personagens, atravessa o filme na imagem negativa
do
acidente
(ponto
de
encontro entre as duas histórias), que interrompe o curso dos veículos e das
vidas das vítimas (diretas e indiretas), e nas imagens complementares: do trânsito
de veículos pelas vias paulistas e do baile das bolas de sinuca em cima da mesa
de jogo. E é neste elevado grau de coerência, que Não Por Acaso revela
sua alma. Se em A Janela Aberta e Palíndromo, para citar exemplos
famosos, Barcinski já apresentava uma genuína preocupação com a organização de
elementos (tanto diegética, quanto extra-diegeticamente) para dar conta de anseios
humanos
(a dúvida no primeiro; o binômio felicidade/insatisfação no segundo),
neste filme, esta preocupação demonstra mais expressamente seu verdadeiro poder:
o de empacotar a narrativa e as imagens do início ao fim, sem trégua.
Assim como o fluxo de veículos é planificado pelas imagens das câmeras de vigilância
e dos mapas de Ênio – ou pelos planos aéreos da cidade –, o fluxo da vida fica
preso nas artimanhas de roteiro do filme, deixando os personagens reféns não
apenas de suas próprias maquinações, mas também da armadura da narrativa montada
a partir deles. O título do filme revela-se então como a verdade oculta por trás
do embate apresentado entre planejamento e irrupção do acaso como constituinte
da experiência do mundo. A despeito da desordem da imprevisibilidade, o homem
pode tomar o destino nas mãos – da mesma forma que Ênio altera o tráfego de toda
a cidade de acordo com um razão pessoal –, se, paradoxalmente, houver uma vontade
maior do que ele que compactue com seu desejo e o imponha como fado. Esta “vontade
maior”, em Não Por Acaso, é, indistintamente, a instância narrativa do
filme (organizativa e propositiva) e o Destino, neste mundo sem deuses no pedestal.
Resta, portanto, aos habitantes deste universo, a múltipla projeção paranóica
de possibilidades.
Tatiana Monassa
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