NÃO POR ACASO
Philippe Barcinski, Não Por Acaso, Brasil, 2006

O controle e o fortuito. A vida e a morte. A presença e a ausência. A lógica da dualidade que pauta Não Por Acaso funda-se numa perspectiva organizacionista da narrativa, na qual o desenrolar do filme assemelha-se à estrutura de um jogo de armar. Neste seu primeiro longa, Philippe Barcinski reúne elementos, os dispõe temporal e espacialmente e costura-os por uma série de acontecimentos. Assim temos: a cidade que é mapa e é fluxo, os personagens calculistas e controladores surpreendidos pelo acaso e uma série de substituições e paralelismos que informam as duas histórias que se esbarram em um acidente de trânsito.

O impulso de planejamento, seja de uma vida ou de um filme, passa necessariamente por uma série de projeções, de imagens mentais, que deverão se atualizar no concreto por meio de ações a serem cumpridas. É desta forma que Pedro se aplica no jogar sinuca e que Ênio é capaz de trabalhar como controlador de tráfego na capital paulista. Não Por Acaso gera então imagens “sem substância” para “corporificar” estas abstrações (ou desejo de ordem) dos personagens. No caso de Pedro, elas se manifestam em antevisões das posições tomadas pelas bolas de sinuca no jogo, que são substituídas pelas bolas reais, e pelo adiamento do trajeto de Teresa, sua namorada, que morre no acidente; no caso de Ênio, pelos percursos a serem efetivados pelo tráfego e pelas hipotéticas conseqüências das intervenções dos controladores no funcionamento deste.

A já citada dualidade é que vai, pois, informar este espelhamento assimétrico das duas narrativas. Pedro perdeu o pai; Bia conhece Ênio e conquista sua paternidade não-realizada. Dona Iolanda perde a filha; Bia perde a mãe. Teresa vende o apartamento para ir morar com Pedro; Ênio busca um apartamento novo e se depara com o desejo de sua filha de compartilhar o teto com ele. Simultaneamente, para além do leit motif do controle sobre a própria a vida, manifestado através das profissões dos personagens, alguns elementos fazem eco entre as histórias, como a presença do café estabelecendo os novos elos a serem cultivados.

Ainda neste espírito de “emparelhamento”, Não Por Acaso apresenta uma série de compensações e substituições – cuja expressão visual maior está no uso das imagens das abstrações de Pedro. Desta forma, Lúcia deverá ocupar o espaço de Teresa no plano de vida de Pedro, que faz de tudo para repetir com ela suas práticas com o amor perdido (fotografia no mirante, omelete de manhã, realização das vontades do outro após elas terem sido ignoradas), não obstante o que o novo apresenta de específico. Ênio, por outro lado, incorpora a novidade da presença de Bia onde antes havia um vazio afetivo, remodelando suas práticas cotidianas.

A figura da circulação – do tempo, das pessoas, das idéias, dos sentimentos – presente nas situações vividas pelos personagens, atravessa o filme na imagem negativa do acidente (ponto de encontro entre as duas histórias), que interrompe o curso dos veículos e das vidas das vítimas (diretas e indiretas), e nas imagens complementares: do trânsito de veículos pelas vias paulistas e do baile das bolas de sinuca em cima da mesa de jogo. E é neste elevado grau de coerência, que Não Por Acaso revela sua alma. Se em A Janela Aberta e Palíndromo, para citar exemplos famosos, Barcinski já apresentava uma genuína preocupação com a organização de elementos (tanto diegética, quanto extra-diegeticamente) para dar conta de anseios humanos (a dúvida no primeiro; o binômio felicidade/insatisfação no segundo), neste filme, esta preocupação demonstra mais expressamente seu verdadeiro poder: o de empacotar a narrativa e as imagens do início ao fim, sem trégua.

Assim como o fluxo de veículos é planificado pelas imagens das câmeras de vigilância e dos mapas de Ênio – ou pelos planos aéreos da cidade –, o fluxo da vida fica preso nas artimanhas de roteiro do filme, deixando os personagens reféns não apenas de suas próprias maquinações, mas também da armadura da narrativa montada a partir deles. O título do filme revela-se então como a verdade oculta por trás do embate apresentado entre planejamento e irrupção do acaso como constituinte da experiência do mundo. A despeito da desordem da imprevisibilidade, o homem pode tomar o destino nas mãos – da mesma forma que Ênio altera o tráfego de toda a cidade de acordo com um razão pessoal –, se, paradoxalmente, houver uma vontade maior do que ele que compactue com seu desejo e o imponha como fado. Esta “vontade maior”, em Não Por Acaso, é, indistintamente, a instância narrativa do filme (organizativa e propositiva) e o Destino, neste mundo sem deuses no pedestal. Resta, portanto, aos habitantes deste universo, a múltipla projeção paranóica de possibilidades.

Tatiana Monassa

 

 







Antevisão...


...e adiamento. Proporcionados por imagens mentais “corporificadas” por sobre as imagens “materiais” do filme, expressam visualmente o jogo de substituições e compensações que a narrativa dualista de Não Por Acaso encena.