Durante
a primeira metade de Marcas da Vida, boa parte da ação
se passa num departamento de vigilância de Glasgow em
que a protagonista (Kate Dickie) trabalha observando
a população através de câmeras, em busca de possíveis
comportamentos suspeitos. Seqüências e mais seqüências
do filme nos dão esta mulher a observar algo nos seus
monitores. Estamos, portanto, diante de alguma reflexão
langiana sobre as sociedades de controle? Algum estudo
sobre o estado da imagem contemporânea? Balela. Na segunda
metade, tão logo o filme consegue encaminhar sua trama,
o motivo das câmeras de vigilância desaparece por completo.
Este desaparecimento diz muito sobre a fragilidade do
projeto de cinema de Arnold, porque a única função das
câmeras de vigilância de Marcas da Vida é existir como
um significante de que há algum pensamento cinematográfico
por trás daquelas imagens. O filme gasta um longo período
com estas imagens, mas a encenação de Arnold tem pouquíssimo
interesse por elas para além deste dado decorativo,
e a mesma lógica parece tomar conta de quase tudo no
filme.
O que realmente resta é um projeto de dramaturgia redentora
dos mais vagabundos. Não é à toa que Marcas da Vida
se torna progressivamente desinteressante. O material
que Arnold trabalha é tão banal que o específico joga
contra o que ela filma. A falta de informações e tom
generalizante é bem mais útil para Arnold, que consegue,
assim como suas câmeras de vigilância, criar uma impressão
de que o filme talvez possa trilhar um caminho interessante.
À medida que precisa preencher lacunas e dar corpo específico
ao que trabalha, Arnold pouco pode fazer para esconder
que seu filme se constrói a partir de uma estrutura
muito pobre. As viradas seguem devidamente calculadas,
com o ex-presidiário por quem a protagonista é obcecada
não sendo bem o que aparentava e as razões da obsessão
dela se comprovando aquelas que eram óbvias desde o
primeiro momento. A fauna de personagens que ela encontra
segue a mesma regra: nada em Marcas da Vida se sustenta
quando visto de perto. O passeio da mulher pelo lado
sujo de Glasgow só resiste como um seguro turismo miserável,
algo funcional quando visto em plano geral mas que se
desmancha no momento em que o filme precisa colocá-la
lá dentro interagindo com este mundo.
Um pouco de contexto talvez ajude a explicar como o
filme é prisioneiro de uma estrutura pobre: trata-se
do primeiro de uma série de filmes produzidos por Lars
von Trier centrados num mesmo grupo de personagens que
vivem em Glasgow, criados por Lone Scherfig (Meu
Irmão quer se Matar) e Anders Thomas Jensen (Brothers).
Logo, sobra a Andrea Arnold pouco mais do que enfeitar
o material que os dinamarqueses lhe deram. Marcas da Vida
acaba sendo exemplar de um estranho paradoxo: o filme
de autor feito por comitê. No fim, talvez este seja
seu único interesse.
Filipe Furtado
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