A
maior proposta de cinema de Hércules 56 é justamente
a de desfazer imagens, e não há nisso
nenhuma afronta à arte, pelo contrário.
A principal fonte daquilo que Silvio Da-Rin constrói é exatamente
uma imagem, a foto que mostra 13 dos 15 presos políticos
libertos após o rapto, por organizações
revolucionárias, do embaixador americano no
Brasil, em 1969. Num primeiro movimento, o filme
recuperará imagens de arquivo do momento do
embarque dos prisioneiros para o exílio, e
por cima delas colocará o nome e a idade de
cada um à época da libertação.
São essas mesmas imagens em preto e branco
que irão se fundir a outras, coloridas, dos
mesmos personagens desse episódio dando seu
depoimento sobre o acontecido, hoje, mais de trinta
anos depois. Com essa operação simples, Hércules
56 equilibra as expressões da juventude
revolucionária com aquelas outras acumuladas
ao longo dos tempos, e faz dos rostos destas pessoas,
antes de qualquer discurso ou rememoração,
o próprio registro de uma história
brasileira esquecida.
E por uma via paralela a esta primeira, se aquela imagem da foto precisa ser
desfeita, reavivada pela presença atualizada de seus integrantes, é porque
seu conteúdo político foi todo esvaziado, e de recipiente dos sentimentos
de uma geração ela passou a ser simples adorno de época,
símbolo que foi deixado a falar por si só, mas que já não é capaz
de responder verdadeiramente à vontade de sabê-lo testemunha do
episódio. Assim, é preciso desmontar essa imagem, e colá-la
a várias outras, surgidas em cadeia, mas que estavam mudas por esta redução
política operada.
Ao falar sobre o filme, Da-Rin diz com ele propor uma "viagem" parecida àquela
vivida pelos 15 presos, mas não deixa de impressionar que Hércules
56 se furte de qualquer facilidade ou superficialidade generalista que possa
tornar esse caminho mais livre. Há sim uma vontade irresistível
de dramatização dos eventos por si já dramáticos
(a carta escrita pelos revolucionários e divulgada em rede nacional como
uma das condições da soltura do embaixador é lida em tom
de melodrama solene por um narrador), e também uma tentativa de avanço
narrativo cronológico, situando com datas escritas sobre a imagem todos
os acontecimentos que cercaram a libertação dos presos políticos.
Mas, ao mesmo tempo, Da-Rin monta os depoimentos, divididos entre nove remanescentes
do grupo de presos, todos registrados individualmente, e o reencontro em volta
de uma mesa de cinco dos responsáveis pelo seqüestro, sem que as
incongruências ideológicas e críticas sejam necessariamente
resolvidas, sem mesmo se esforçar para uma contextualização
maior (as siglas de todas as organizações políticas revolucionárias
são ditas e repetidas à exaustão pelos personagens sem que
o filme sinta necessidade de explicar o que significam ou a linha política
que seguiam), eventualmente até brecando a linearidade temporal dos relatos,
misturando momentos distintos da operação. A viagem, que prometia
apenas um revisionismo exaltador, tipo de documentário que se investe
de importância e nobreza por finalmente jogar luz sobre um grande assunto
oculto (há resquícios disso na mania do filme em entremear depoimentos
com pontas pretas e fades), acaba se transformando numa descida frontal, e bastante íntegra, às
memórias e às realidades presentes dessas pessoas, e estes descaminhos
positivos da narrativa são maior prova disso.
Desse modo, a força dos depoimentos acaba de fato reconstruindo a foto
de 1969, adicionando a ela uma série de novos significados e sentimentos
insuspeitos até então (Flávio Tavares condena um companheiro
por ter escondido as algemas quando todos haviam decidido mostrá-las,
dizendo que "quem faz isso é bandido, preso político tem que
mostrar a cara"; Franklin Martins re-situa o embaixador Charles Elbrick
no contexto da relação do governo americano com a ditadura, afirmando
que ele era um liberal e que, naquele momento, realmente não fazia parte
das negociações com o regime brasileiro; Vladimir Palmeira critica
duramente o treinamento de guerrilha que fizeram em Cuba; e assim fazem todos,
especialmente ao avaliarem negativamente toda lógica da operação). É provável
que Hércules 56 nunca alcance a divulgação e a permanência
que sua foto ponto-de-partida teve até hoje. Mas uma vez em contato com
o filme, ela certamente passa a ter muitas das outras dimensões que lhe
haviam sido negadas, e acima de tudo, se recusa definitivamente à posição
de símbolo estático de uma geração. Eis a verdadeira
viagem proporcionada pelo filme: movimento puro e desimpedido pela memória
do país.
Rodrigo de Oliveira
|