Os poderes já estão dados e
estabelecidos, as responsabilidades são conhecidas e
foram assumidas como tal. Mas houve, de fato, algum
momento no passado do Homem-Aranha que nos fizesse cogitar
a possibilidade de que este não fosse o caminho a ser
seguido por ele? O lema moral agora é outro, reforçado
pela narração em off do próprio
herói na última seqüência do novo filme: “sempre temos
uma escolha”. Ora, esta escolha é toda a razão da trama
de Homem-Aranha 3, sabida
desde que suas primeiras imagens foram divulgadas. Temos,
de um lado, o herói de uniforme todo preto, mas seu
reflexo, no espelho de um arranha-céu, mantém o vermelho
e azul originais. Esta, no entanto, é uma imagem externa, do
mundo do marketing, que nunca aparece no mundo ficcional
criado por Sam Raimi. Ali dentro ela é mais
que símbolo desta suposta dualidade do ser. É sim a
própria base de segurança a partir da qual o diretor
dispara todas as situações de risco contra seu protagonista.
Porque tão óbvia quanto a dureza dos desafios (íntimos
ou públicos) que o Homem-Aranha terá que enfrentar é
a certeza de que ele nunca teve, verdadeiramente, uma
escolha a fazer: o mal pode até vesti-lo eventualmente,
mas é do bem, puro e simples, que sua imagem e o reflexo
de seu interior são feitos.
O mundo de Raimi nunca suportou
a idéia do mal. Todos os vilões da série foram, antes
de tudo, vítimas. Norman Osborn
e Otto Octavius eram homens
da ciência, seus engenhos visavam revoluções no modo
de viver da humanidade, mas em algum momento do processo
os dois eram transtornados por este “excesso de boa
vontade” para com os outros, e acabavam virando-se para
si mesmos, despertando personalidades que nem supunham
ter. Os vilões de Homem-Aranha 3
são menos grandiosos. Flint
Marko apenas queria dar de
comer à sua filha, Harry Osborn precisava acertar postumamente a relação com seu pai,
Eddie Brock só queria levar
alguma vantagem, seja com a namorada ou com o patrão.
Assim, não é apenas por uma certa obrigação-de-manual que o herói aqui é bom: sua condição obedece
a própria natureza constitutiva
deste universo de fantasia do qual é a figura mais destacada.
E se assim o é, por que então trazer o mal para o centro
da mesa?
Difícil imaginar o motivo como sendo a abertura de uma
nova fronteira para a experiência do Homem-Aranha no
mundo, uma vez que Raimi responde
à introdução deste elemento de diferença com as mesmas
armas que já havia usado tantas vezes antes. Teremos
novamente uma cena romântica de Peter Parker e Mary Jane deitados numa teia de aranha ao luar, outra
piada sobre a diferença entre o enorme arranjo de flores
presenteado por Harry e o ramalhete ridiculamente pequeno de Peter, mais uma
briga envolvendo o herói, um vilão e um trem em movimento,
a repetição da mesma estratégia de representação ao
mostrar Harry se confrontando
com a memória fantasmática de seu pai ao olhar no espelho
da sala de sua casa.
Mais ainda: a mesma estrutura narrativa pontuada por
pequenos clipes totalizantes, onde uma idéia simples é lançada e, em poucos
minutos, encenada e esgotada no máximo do didatismo.
Se no filme anterior o momento musical-libertador se
dava logo após a decisão do protagonista em abandonar
o fardo de herói, agora veremos a semente da
disco dance germinar em Peter tão
logo sinta o lado bom do mal – mas Raimi não se dá nem ao trabalho de mudar o registro, e reutiliza
o mesmo enquadramentro frontal,
recuando à medida que o rapaz avança soberbo pela rua,
a mesma iluminação dourada e ofuscante à Janusz
Kaminski, o mesmo ar paródico
e descontraído.
São as cada vez maiores cenas de ação, estes videoclipes
que introduzem novos estados de espírito do protagonista,
e as seqüências de sermão, onde o valor moral daquilo
que se está encenando, diante da incapacidade de virar
imagem, sobra em palavra, reflexo da crescente Yoda-ização
dos roteiros do gênero (e que aqui tem sua maior representante
na absolutamente nula Tia May).
Não há sinal daquilo que se prometia como “a batalha
interior”. Toda briga de Homem-Aranha 3
é travada no exterior, todo seu desejo é pela superficialidade.
Nenhum problema de partida nisso, não fosse a criação
de um enorme ruído entre o passado de construção do
Homem-Aranha (e ele importa muito para Raimi, não só pelo sumário, presente nos créditos iniciais,
das aventuras acontecidas até ali, mas também pelo apego
aos modelos repetitivos de encenação a que já nos referimos)
e aquilo em que este contato tão estreito entre o diretor
e seu protagonista se transformou. O movimento feito
pelos dois filmes anteriores da série era de um mergulho
naquilo que muito pobremente tem se chamado de “humanização”
dos super-heróis de quadrinhos. Diferente do Superman, que é naturalmente fantástico e precisa vestir a
fantasia de Clark Kent para
se mundanizar, e mais ainda
dos X-Men, em que seus poderes
são (ou se tornam) um desdobramento direto da personalidade
e da psicologia de cada um, o Homem-Aranha mantém uma
curiosa separação entre seu papel público e sua existência
privada. Não podemos nem dizer que Peter Parker
seja seu alter ego, ou vice-versa:
há uma só pessoa ali, naturalmente humana, já devidamente
preenchida de traumas e crises, e a aquisição casual
de super-poderes se torna apenas
mais uma delas. Assim, não é o Homem-Aranha em si que
precisa de qualquer carga de humanidade, mas sim a imagem
que se criou dele. Não é mais o herói que interessa
(e a falta de inventividade das cenas de ação de Homem-Aranha
3 nos mostra exatamente isso). Estamos agora lidando com
o ícone.
O que não é nenhuma novidade, e a grande cena de Homem-Aranha
2 já parecia ter resolvido isto. Depois de se esgotar fisicamente
ao frear um trem em movimento, o herói
tinha sido carregado pelas mãos dos passageiros
como um verdadeiro rockstar, mas toda esta pose de diferença se confundia com
uma profunda sensação de proximidade à medida que seu
corpo era deitado no chão e, sem máscara, seu rosto
estava exposto pela primeira vez aos olhos daqueles
a quem protegia. “É só um menino”, diz um dos passageiros,
“tem a idade do meu filho”, e assim se criava uma relação
única entre aquela figura extraordinária e toda a massa
de gente comum que ele representava – agora não mais
apenas por dever moral ou cívico, mas por uma identidade
completa entre um e outro.
Aquele que aparece agora em Homem-Aranha 3
já não é o mesmo sujeito deitado no assoalho de um vagão
de trem. A saga deste herói tridimensional, disponível
ao toque (mãos que seguram seu peito e impedem que despenque
da frente do trem) parece terminada, e surge no lugar
dele um outro, que é imagem plana,
reflexo no espelho ou foto no jornal, passível
de todo tipo de manipulação, mas que veremos apenas
à distância (mãos que acenam de longe, mãos que interagem
com a ação que acontece lá onde nós já não podemos mais
estar). A relação se inverte, e já não temos mais um
filme que se molda aos humores daquele cuja vida decide
acompanhar, mas sim um personagem completamente submetido
aos experimentos impostos por esta fonte de registro.
A verdadeira “batalha interior” não diz respeito aos
dilemas morais do Homem-Aranha, mas sim ao momento em
que Sam Raimi
– tão naturalmente “bom” quanto todos os vilões de seus
filmes – fecha-se em si mesmo e, deslumbrado com o tamanho
do espetáculo que conseguiu produzir até ali, abandona
o action hero
em nome do action
figure: o verdadeiro protagonista de Homem-Aranha
3 não é mais Tobey
Maguire, mas sim o bonequinho
de brinquedo produzido a partir dele.
É por isso que a introdução do mal como grande elemento
dramático deste terceiro filme é tão completamente desastrosa.
De um lado temos um personagem completamente imune a
qualquer desvio do caminho do bem (e já nem é possível
falar que existia nele uma tendência maligna, nascida
da culpa pela morte de seu tio e da imediata vontade
de vingança a qualquer custo, uma vez que Peter Parker não só perdoa o assassino no final, como a câmera ainda
consegue flagrar um suspiro de alívio do mocinho, finalmente
liberto da carga negativa que nunca coube de fato em
seus ombros). Do outro temos um diretor que trabalha
herculeamente para constranger
qualquer manifestação do lado negro que não esteja dominada
por seu poder de controle da encenação. Se Peter Parker
viveu profundamente a crise do heroísmo, do equilíbrio
entre vida pessoal e dever social, seu boneco agora
é incapaz de experimentar o mal, mergulhar nele, deixar-se
contaminar verdadeiramente. O que é, afinal de contas,
o mal em Homem-Aranha 3?
Um botão de on/off:
franja penteada significa bondade, franja caída sobre
a testa significa maldade. Quando a potência do pacto
faustiano se manifesta em
seu corpo, incomodando o herói? Toda vez que, pensando
em fazer alguma bobagem, Parker
dá uma coçadinha nada discreta
na fantasia negra que veste por debaixo da roupa.
Sam Raimi
é incapaz de filmar aquilo que não pertença aos domínios
de sua missa campal. Por isso torna o mal um elemento
tão exterior, um truque barato de roteiro: a gosma negra
cai na Terra encapsulada num meteorito, justamente ao
lado da teia de amor de Parker e M.J., e não há qualquer outra explicação para ela
senão o fato de que é preciso algum grande evento que
detone as aventuras do terceiro capítulo da série. E
pelo mesmo motivo, Raimi se
acovarda quando percebe que seu truque pode lhe custar
a vida, pode abalar a estrutura
tão harmonicamente desarranjada de seu filme.
São dois momentos, de longe os mais interessantes de
Homem-Aranha 3, em que quase podemos reencontrar o Peter Parker anterior, momentos de crise de consciência absoluta.
Como já havíamos visto em X-Men
3: O Confronto Final, o que pode realmente ameaçar um filme
de ação dessa natureza não é apenas a introdução de
uma força oposta e potencialmente destrutiva, mas sim
a assimilação desta por aqueles que mais capacidade
teriam de lutar contra este novo poder. Há, em algum
momento do filme de Brett
Ratner, a possibilidade real
de que aquele seja mesmo o confronto final, uma vez
que Jean Grey retorna como
a Fênix Negra e passa a aniquilar, um a um e sem qualquer
piedade, diversos protagonistas até então importantíssimos
para o andamento da série. Com o rosto todo deformado
pelo mal, e espalhando uma febre pela mise-en-scène
que parece poder explodi-la literalmente a qualquer
momento, a Fênix é assumida por X-Men
3 sem qualquer restrição,
mesmo que o filme saiba que está a abraçar sua provável
executora – cabe ao universo ficcional criado ali a
tarefa de impedir sua própria extinção.
Em Homem-Aranha 3 vemos,
primeiro, Peter Parker tirar mais uma onda de dançarino e sedutor fatal no
clube de jazz em que Mary Jane trabalha para, então,
se envolver numa briga com os seguranças do lugar e,
meio sem querer e meio consciente, dar um soco na própria
namorada, fazendo-a cair no chão. Depois será no confronto
derradeiro com Harry Osborn,
em que Parker claramente vence a luta, mas ainda assim abusa de seus
poderes (com toques de sadismo), para então terminar
deformando o rosto do próprio amigo, numa reação friamente
calculada e completamente desnecessária. A resposta
de Sam Raimi
às duas únicas explosões realmente genuínas do mal que
ele mesmo plantou em seu protagonista é de puro apaziguamento,
e não poderia ser diferente. De um filme que propõe
que a badalada dos sinos de uma igreja é a arma secreta
contra o grande mal alienígena se pode esperar tudo,
menos honestidade. E assim, colocar Peter Parker
para dizer, na última seqüência, que todos sempre temos
uma escolha é de uma crueldade incomparável. No mundo
de Homem-Aranha 3 ninguém
tem direito a escolha nenhuma, e é esse seu único e
verdadeiro mal.
Rodrigo de Oliveira
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